Eliana Cardoso*
Ao contrário do que você pensa, coração, Deus não criou o
mundo a partir do nada. Quatro palavras-chave no versículo dois do primeiro
capítulo do "Gênesis" simbolizam o caos antes da criação: "No
princípio, a terra era sem forma e vazia e havia escuridão sobre a face do
abismo". Essas palavras indicam a pré-existência de algo ruim, matéria ou
buraco negro. Então Deus introduziu a ordem. Disse: "Haja luz". E
houve luz. "E Deus viu que a luz era boa e Deus separou a luz da
escuridão".
O tema geral do primeiro capítulo, a criação da ordem e de
um mundo bom, se desenvolve de acordo com o princípio literário de que a forma
deve seguir o conteúdo. Os seis dias da criação
obedecem o padrão: 1-4, 2-5, 3-6. A luz no primeiro dia corresponde às luzes no
quarto. As águas e o céu no segundo, correspondem aos peixes e às aves no
quinto. Os dois estágios da criação no terceiro dia (a terra seca e a
vegetação) correspondem a dois estágios no sexto: a criação dos animais
terrestres e dos seres humanos que habitam a Terra e se alimentam da vegetação.
No meio do versículo 4 do capítulo 2 começa outra versão da
origem do mundo. Enquanto na primeira história, homens e mulheres são criados
de uma só vez - "E Deus criou o homem à Sua imagem [...]; macho e fêmea
criou-os" -, na segunda história, o homem é criado primeiro, e a mulher
depois. Tendo colocado o homem no jardim, Deus o fez dormir, lhe tomou uma
costela e "fez da costela que tinha tomado do homem, uma mulher".
Há mais diferenças importantes entre os dois relatos, segundo Gary A.
Rendsburg, professor de estudos judaicos na Universidade Rutgers nos EUA e
co-autor de "The Bible and the Ancient Near East" (Norton). Enumero:
(1) diferentes nomes para Deus: Elohim ou Deus na primeira história e Yahweh
Elohim ou Senhor Deus na segunda; (2) diferentes métodos de criação: pela
palavra na primeira história e por meios físicos na segunda, na qual Deus forma
o homem do pó da terra e planta um jardim; (3) diferentes ordenações dos
eventos: a primeira história avança da vegetação aos animais até aos seres
humanos, enquanto a segunda começa com o homem e depois vem o jardim e os
animais. Tudo isso, porque enquanto o ponto de vista da primeira história é
cosmocêntrica - incluindo o céu, o Sol, a Lua e as estrelas - o ponto de vista
da segunda história é antropocêntrica, com ênfase no homem e suas atividades.
Para esclarecer o problema do mal no mundo, o primeiro capítulo mostra o caos
preexistente à criação do Éden. O problema - que não existia para o politeísmo
com deuses bons e maus - perturba o monoteísmo, cujo único Deus é bom. Para que
Deus não seja responsável por nossos sofrimentos, era preciso que o mal
existisse antes da criação da Terra.
A segunda história oferece uma explicação alternativa: o
homem violou o mandamento de Deus e inaugurou a existência do mal. A trama se
desenrola a partir da advertência de que se o homem comer da árvore do
conhecimento ele morrerá. Por que Deus cria uma árvore, apenas para dizer às
pessoas que não a toquem?
Claude Lévy-Starauss disse que o propósito de um mito é criar um arcabouço
lógico capaz de superar uma contradição. Façanha impossível no caso de uma
contradição real, ele observa. Acredito que existe uma contradição insuperável
na proposição que afirma a existência de um deus onipotente, onisciente e
bondoso ao mesmo tempo.
Não importa. A história se refere ao desejo humano de
superar suas limitações. A serpente pergunta a Eva se Deus realmente lhe disse
para não comer de nenhuma árvore no jardim. A mulher repete a advertência de
Deus. A serpente constrói o suspense com suas meias-verdades e para aumentar a
tensão, o narrador observa que a mulher já pode ver que o fruto é bom. Se ela
já sabe o que é bom, então o que mais ela deseja? Aprender o que é mau?
A resposta está nos "Diários de Adão e Eva" de
Mark Twain (tradução de Hanna Betina Gotz e Sérgio Romanelli, Editora Hedra).
Twain cria narradores em primeira pessoa, aparentemente sem
arte e de uma ingenuidade totalmente convincente. Ele tira partido de situações
artificiais nas quais seu gênio insere autenticidade. Ilumina a rotina com
percepções inesperadas. Torna o impossível, plausível. O humor, irresistível. O
autor dá um piparote na criação do mundo e reorienta a hierarquia entre os
gêneros dando mais inteligência a Eva do que a Adão. Ambos dão donos da
autoridade que lhes permite contar a própria versão dos eventos bíblicos e da
vida cotidiana na pré-história. O leitor aprecia as duas personalidades que
refletem o melhor da condição humana, e o par amadurece junto.
Adão aparece como um caladão que gostava de ficar à toa, mas
cuja curiosidade, uma vez despertada por Eva, o carrega. Eva, bisbilhoteira
incansável, quer entender tudo ao seu redor e compartilhar sua experiência.
Enquanto Adão exprime irritação quando Eva não para de dar nomes a tudo o que
vê e chama o Jardim do Éden de "o parque de Niagara Falls", Eva
inventa os pronomes pessoais, as diferenças de gênero e ensina a Adão a palavra
"nós". Você já pensou, coração, quando foi que "nós" se
tornou um conceito claro para você e eu e o resto da humanidade?
Twain faz uma paródia do estilo alegórico e questiona com sutileza a veracidade
do relato bíblico. Em Eva, Twain descobre como expressar sutilmente seu
ceticismo sobre a religião. Eva, perspicaz, se pergunta por que os leões comem
grama quando seus dentes indicam que eles tinham sido "projetados"
para comer outros animais. Adão observa que Eva lhe disse que ela foi enganada
pela serpente por causa de uma falta de comunicação sobre um termo figurativo
que significa uma velha piada. O motivo da queda não passou de uma piada ruim e
Adão comeu a maçã porque estava morto de fome. "Era contra os meus
princípios, mas quando a gente está com fome os princípios não contam
muito".
Não falta lirismo à mulher que nasceu adulta, mas que Twain descreve como uma
criança descobrindo o mundo, louca para agarrar tudo que achava bonito naquele
cenário quase perfeito, apesar de concluído em tão poucos dias. "Há
estrelas demais em algumas partes e de menos em outras [...]. A lua se soltou
ontem, e caiu fora do esquema - uma grande perda: me corta o coração pensar
nisso". Ela se alegra quando a Lua reaparece e, depois de tentar alcançar
as estrelas com um bambu, confessa que chorou um pouco, "o que é natural,
suponho, para alguém da minha idade, e depois de descansar acabei pegando uma
cesta e fui caminhando em direção à borda do círculo, lá onde as estrelas ficam
perto do solo.
Eva se considera um experimento e Adão outro experimento, como se Deus fosse um
cientista louco. Na parte intitulada "Depois da Queda", Eva se
pergunta por que é que ela adora Adão. Não é por causa de sua inteligência (ele
não é culpado de sua pouca inteligência e sim Deus que a criou). Não é por
causa de seu modo atencioso e delicado (nesses quesitos). Não é por causa de
seu modo atencioso e delicado (ele é pobre nesses quesitos). Não é por causa de
sua educação (ele é autodidata). "Então por que é que o amo? Acho que é só
porque ele é masculino". E cada um deles se admira do amor que o outro
sente por ele. Não é sempre um espanto, coração, ser amado de volta?
O amor de Eva por Adão nunca vacila e se expande à medida que a família cresce:
a prole inclui além de Caim e Abel, outros sete filhos e filhas, entre elas,
Gladys e Edwina. Eva adora as crianças, admirando os talentos de cada uma.
Twain inventa a noção da queda afortunada. Tanto Adão quanto Eva percebem que
perder o Éden - "sua propriedade", como Adam o chama - não foi uma
perda tão grande à luz do que ganharam. Ainda assim, a qualidade trágica da
vida se manifesta quando Eva chora a perda de Abel, o que torna a morte - até
então uma palavra vazia - real, e ela percebe o significado da mortalidade.
Adão, também, sofre sua própria tristeza quando Eva morre. Ele escreve no
túmulo da amada: "Onde quer que ela estivesse, lá estava o Éden".
* Eliana Cardoso, economista e escritora, escreve neste espaço quinzenalmente
E-mail: eliana.anastasia@gmail.com
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