sexta-feira, 16 de junho de 2017

OS DIÁRIOS DE ADÃO E EVA

Eliana Cardoso*
Cris Bierrenbach
Ao contrário do que você pensa, coração, Deus não criou o mundo a partir do nada. Quatro palavras-chave no versículo dois do primeiro capítulo do "Gênesis" simbolizam o caos antes da criação: "No princípio, a terra era sem forma e vazia e havia escuridão sobre a face do abismo". Essas palavras indicam a pré-existência de algo ruim, matéria ou buraco negro. Então Deus introduziu a ordem. Disse: "Haja luz". E houve luz. "E Deus viu que a luz era boa e Deus separou a luz da escuridão".

O tema geral do primeiro capítulo, a criação da ordem e de um mundo bom, se desenvolve de acordo com o princípio literário de que a forma deve seguir o conteúdo. Os seis dias da criação 
obedecem o padrão: 1-4, 2-5, 3-6. A luz no primeiro dia corresponde às luzes no quarto. As águas e o céu no segundo, correspondem aos peixes e às aves no quinto. Os dois estágios da criação no terceiro dia (a terra seca e a vegetação) correspondem a dois estágios no sexto: a criação dos animais terrestres e dos seres humanos que habitam a Terra e se alimentam da vegetação.


No meio do versículo 4 do capítulo 2 começa outra versão da origem do mundo. Enquanto na primeira história, homens e mulheres são criados de uma só vez - "E Deus criou o homem à Sua imagem [...]; macho e fêmea criou-os" -, na segunda história, o homem é criado primeiro, e a mulher depois. Tendo colocado o homem no jardim, Deus o fez dormir, lhe tomou uma costela e "fez da costela que tinha tomado do homem, uma mulher".

Há mais diferenças importantes entre os dois relatos, segundo Gary A. Rendsburg, professor de estudos judaicos na Universidade Rutgers nos EUA e co-autor de "The Bible and the Ancient Near East" (Norton). Enumero: (1) diferentes nomes para Deus: Elohim ou Deus na primeira história e Yahweh Elohim ou Senhor Deus na segunda; (2) diferentes métodos de criação: pela palavra na primeira história e por meios físicos na segunda, na qual Deus forma o homem do pó da terra e planta um jardim; (3) diferentes ordenações dos eventos: a primeira história avança da vegetação aos animais até aos seres humanos, enquanto a segunda começa com o homem e depois vem o jardim e os animais. Tudo isso, porque enquanto o ponto de vista da primeira história é cosmocêntrica - incluindo o céu, o Sol, a Lua e as estrelas - o ponto de vista da segunda história é antropocêntrica, com ênfase no homem e suas atividades.


Para esclarecer o problema do mal no mundo, o primeiro capítulo mostra o caos preexistente à criação do Éden. O problema - que não existia para o politeísmo com deuses bons e maus - perturba o monoteísmo, cujo único Deus é bom. Para que Deus não seja responsável por nossos sofrimentos, era preciso que o mal existisse antes da criação da Terra.


A segunda história oferece uma explicação alternativa: o homem violou o mandamento de Deus e inaugurou a existência do mal. A trama se desenrola a partir da advertência de que se o homem comer da árvore do conhecimento ele morrerá. Por que Deus cria uma árvore, apenas para dizer às pessoas que não a toquem?

Claude Lévy-Starauss disse que o propósito de um mito é criar um arcabouço lógico capaz de superar uma contradição. Façanha impossível no caso de uma contradição real, ele observa. Acredito que existe uma contradição insuperável na proposição que afirma a existência de um deus onipotente, onisciente e bondoso ao mesmo tempo.


Não importa. A história se refere ao desejo humano de superar suas limitações. A serpente pergunta a Eva se Deus realmente lhe disse para não comer de nenhuma árvore no jardim. A mulher repete a advertência de Deus. A serpente constrói o suspense com suas meias-verdades e para aumentar a tensão, o narrador observa que a mulher já pode ver que o fruto é bom. Se ela já sabe o que é bom, então o que mais ela deseja? Aprender o que é mau?
A resposta está nos "Diários de Adão e Eva" de Mark Twain (tradução de Hanna Betina Gotz e Sérgio Romanelli, Editora Hedra).
Twain cria narradores em primeira pessoa, aparentemente sem arte e de uma ingenuidade totalmente convincente. Ele tira partido de situações artificiais nas quais seu gênio insere autenticidade. Ilumina a rotina com percepções inesperadas. Torna o impossível, plausível. O humor, irresistível. O autor dá um piparote na criação do mundo e reorienta a hierarquia entre os gêneros dando mais inteligência a Eva do que a Adão. Ambos dão donos da autoridade que lhes permite contar a própria versão dos eventos bíblicos e da vida cotidiana na pré-história. O leitor aprecia as duas personalidades que refletem o melhor da condição humana, e o par amadurece junto.

Adão aparece como um caladão que gostava de ficar à toa, mas cuja curiosidade, uma vez despertada por Eva, o carrega. Eva, bisbilhoteira incansável, quer entender tudo ao seu redor e compartilhar sua experiência. Enquanto Adão exprime irritação quando Eva não para de dar nomes a tudo o que vê e chama o Jardim do Éden de "o parque de Niagara Falls", Eva inventa os pronomes pessoais, as diferenças de gênero e ensina a Adão a palavra "nós". Você já pensou, coração, quando foi que "nós" se tornou um conceito claro para você e eu e o resto da humanidade?

Twain faz uma paródia do estilo alegórico e questiona com sutileza a veracidade do relato bíblico. Em Eva, Twain descobre como expressar sutilmente seu ceticismo sobre a religião. Eva, perspicaz, se pergunta por que os leões comem grama quando seus dentes indicam que eles tinham sido "projetados" para comer outros animais. Adão observa que Eva lhe disse que ela foi enganada pela serpente por causa de uma falta de comunicação sobre um termo figurativo que significa uma velha piada. O motivo da queda não passou de uma piada ruim e Adão comeu a maçã porque estava morto de fome. "Era contra os meus princípios, mas quando a gente está com fome os princípios não contam muito".


Não falta lirismo à mulher que nasceu adulta, mas que Twain descreve como uma criança descobrindo o mundo, louca para agarrar tudo que achava bonito naquele cenário quase perfeito, apesar de concluído em tão poucos dias. "Há estrelas demais em algumas partes e de menos em outras [...]. A lua se soltou ontem, e caiu fora do esquema - uma grande perda: me corta o coração pensar nisso". Ela se alegra quando a Lua reaparece e, depois de tentar alcançar as estrelas com um bambu, confessa que chorou um pouco, "o que é natural, suponho, para alguém da minha idade, e depois de descansar acabei pegando uma cesta e fui caminhando em direção à borda do círculo, lá onde as estrelas ficam perto do solo.


Eva se considera um experimento e Adão outro experimento, como se Deus fosse um cientista louco. Na parte intitulada "Depois da Queda", Eva se pergunta por que é que ela adora Adão. Não é por causa de sua inteligência (ele não é culpado de sua pouca inteligência e sim Deus que a criou). Não é por causa de seu modo atencioso e delicado (nesses quesitos). Não é por causa de seu modo atencioso e delicado (ele é pobre nesses quesitos). Não é por causa de sua educação (ele é autodidata). "Então por que é que o amo? Acho que é só porque ele é masculino". E cada um deles se admira do amor que o outro sente por ele. Não é sempre um espanto, coração, ser amado de volta?

O amor de Eva por Adão nunca vacila e se expande à medida que a família cresce: a prole inclui além de Caim e Abel, outros sete filhos e filhas, entre elas, Gladys e Edwina. Eva adora as crianças, admirando os talentos de cada uma.

Twain inventa a noção da queda afortunada. Tanto Adão quanto Eva percebem que perder o Éden - "sua propriedade", como Adam o chama - não foi uma perda tão grande à luz do que ganharam. Ainda assim, a qualidade trágica da vida se manifesta quando Eva chora a perda de Abel, o que torna a morte - até então uma palavra vazia - real, e ela percebe o significado da mortalidade. Adão, também, sofre sua própria tristeza quando Eva morre. Ele escreve no túmulo da amada: "Onde quer que ela estivesse, lá estava o Éden".

* Eliana Cardoso, economista e escritora, escreve neste espaço quinzenalmente E-mail: eliana.anastasia@gmail.com

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