domingo, 25 de junho de 2017

AMÓS OZ: MUITOS DOS MAIORES MALES DESTE MUNDO COMEÇAM COM A CORRUPÇÃO DA LINGUAGEM

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Amós Oz é provavelmente o maior e mais conhecido escritor israelense vivo. É também autor de uma obra umbilicalmente ligada à história de Israel: alguns de seus grandes romances, como Uma Certa Paz (1982), A Caixa Preta (1987), Fima (1991) e Pantera no Porão (1995), fazem uma crônica artística da trajetória do país, suas crises e marés políticas, suas guerras. Ao mesmo tempo, Oz é um dos escritores mais controversos dentro da própria nação de Israel, dado que sua militância pela paz na região e as críticas duras que costuma dirigir a governos israelenses (como o do primeiro-ministro da direita linha-dura Benjamin Netanyahu) provocaram ataques virulentos de seus próprios compatriotas.

Oz, 78 anos, é o palestrante desta quarta-feira no ciclo Fronteiras do Pensamento, e vem a Porto Alegre falar de sua literatura e de suas visões políticas. Ele é cofundador do movimento de esquerda Paz Agora, com outros políticos e acadêmicos de Israel, e já tratou do conflito na região em ensaios e artigos. Um volume selecionando três desses ensaios mais longos será lançado pela Companhia das Letras durante a vinda do autor: Mais de uma Luz, no qual Oz retoma e amplia questões de que já havia tratado em Como Curar um Fanático. Em entrevista concedida por telefone de Israel, Oz falou sobre a pecha de “traidor” com a qual é rotulado pelos seus adversários políticos, de sua visão da literatura como uma necessidade humana e da adaptação para o cinema feita recentemente por Natalie Portman de seu livro de memórias, De Amor e Trevas (2003).

Que temas o senhor pretende abordar em sua palestra em Porto Alegre?

Eu vou falar, primeira e principalmente, a respeito de meu país, Israel, e vou compartilhar com a audiência um pouco da minha visão política, que é bem diferente da política do governo israelense. E também vou falar sobre a minha obra literária.

O senhor comentou as diferenças de sua visão política com relação ao governo de Israel. O senhor e outros escritores israelenses, como seu amigo David Grossman, já foram ferozmente criticados pela direita israelense e tachados de inimigos do país. Como o senhor se sente a respeito desse tipo de acusação?

Me sinto triste e orgulhoso. Sinto-me triste porque muitos israelenses não entendem minhas ideias ou não as aceitam. Mas também me sinto orgulhoso porque, a cada vez que alguns de meus compatriotas me chamam de “traidor”, eles me colocam em muito boa companhia, ao lado de alguns dos grandes escritores, poetas, profetas, intelectuais e estadistas na História que foram chamados de traidores por seus próprios contemporâneos. A cada vez que alguém aqui me chamar de traidor, eu usarei esta comenda na minha lapela, como um distintivo de honra, ao lado da Legion d’Honneur que (o então presidente francês) Jacques Chirac me concedeu há cerca de 10 anos. Assim, penso que ser considerado traidor por alguns de seus compatriotas é uma honra.

Essa é a razão pela qual o senhor decidiu escrever um romance sobre Judas?

Sim, eu escrevi sobre lealdade e traição, e quão complicada é a relação entre lealdade e traição e sobre o fato de que, algumas vezes, o que muitas pessoas chamam de traição parece a outras uma lealdade mais profunda. No meu romance Judas, há muitas personagens que traem outras pessoas, mas Judas não é uma delas. Judas é, no livro, extremamente leal a seu mestre, Jesus. Judas acredita em Jesus mais do que o próprio Jesus acredita em si mesmo.

Nesse sentido, o Judas apresentado em seu romance é um pouco o retrato que o senhor também já fez do fanático.

Sim. Judas no romance acredita em redenção instantânea. Ele gostaria de apressar a chegada do Reino dos Céus. Ele queria pôr os eventos em ação de tal modo que a salvação universal ocorreria imediatamente. E esse é um pensamento típico de fanáticos que perseguem a salvação instantânea.

E o que atraiu em um personagem como esse?

Bem, muitas pessoas, não apenas as religiosas, mas também as revolucionárias e radicais acreditam em salvação instantânea. Muitos dos meus personagens têm crenças que eu não compartilho. Não acredito nas mesmas coisas que meus protagonistas. Alguns deles acreditam em salvação instantânea, eu acredito em soluções práticas. Alguns deles acreditam em fraternidade global, eu acredito mais na coexistência pragmática entre vizinhos, não em amor universal. Com frequência, escrevo sobre protagonistas que não compartilham minhas ideias e crenças políticas, mas como figuras elas me entusiasmam e eu escrevo a respeito.

Qual é o alcance social da atividade de um escritor em Israel e no Oriente Médio, dada a situação atual de conflitos na região?

Eu não gosto de fazer generalizações a respeito do papel social de escritores ou da literatura. Eu prefiro falar sobre o dom da literatura. Penso que romances, contos, poesia podem abrir para o leitor diversas janelas para o mundo exterior e para dentro de si mesmo. Então, em vez de discutir o papel da literatura e dos escritores, eu prefiro falar sobre o presente que é a literatura. Para mim, como leitor, os livros que eu gosto foram um presente. Não são apenas veículos para carregar ideias ou conclusões ou algum tipo de manifesto político. Não, primeira e principalmente foram uma fonte de deleite. Acredito que contar e ouvir histórias são necessidades humanas básicas. Quando temos dois anos de idade, gostamos de ouvir histórias antes de dormir. Um pouco mais e estamos querendo que as pessoas ouçam as histórias que contamos. É uma necessidade humana, como o sonho ou o sexo. Não sinto que a literatura seja algum tipo de veículo carregando mensagens de um ponto a outro ou de uma pessoa para outra. Não é sobre manifestos ou balanços. A literatura é um jogo, e eu adoro esse jogo.

Sim, mas eu pensava mais em dois papéis diversos que o escritor assume. O senhor é um narrador, publica romances e histórias, são sua literatura, mas também publica ensaios e discursos a respeito de política e fanatismo.

Certamente. E nessas obras o que me move é principalmente uma responsabilidade para com a linguagem. Eu sou um escritor, trabalho com palavras todos os dias, do mesmo modo que um carpinteiro trabalha com a madeira ou um pedreiro com tijolos. Assim, eu sinto uma responsabilidade para com a linguagem. Penso que muitos dos maiores males deste mundo começam com a corrupção da linguagem, e é meu dever gritar a cada vez que vejo alguém usando uma linguagem contaminada. Quando algumas pessoas chamam outras de “estrangeiros indesejáveis”, “elementos negativos”, “câncer social” ou “parasitas”, sei que é sempre aí que começam a violência, a perseguição e a crueldade. Daí meu senso de dever de trabalhar como o corpo de bombeiros do idioma, ou como um detector de fumaça, eu preciso gritar “fogo” sempre que leio ou ouço essas palavras que, mais cedo ou mais tarde, vão gerar violência.

Em 2016, seu amigo David Grossman veio a Porto Alegre para a mesma série de palestras. Ele disse, em uma entrevista: “Gosto da ideia de um Estado binacional para israelenses e palestinos, mas não acho apropriado agora, porque exigiria uma verdadeira maturidade política que não temos”. Esse é o motivo por que o senhor defende dois Estados, um para israelenses e outro para palestinos?

É preciso não confundir um Estado binacional com uma solução binacional. A solução binacional significa dividir a casa em dois apartamentos menores, um para israelenses e outro para palestinos. Um Estado binacional é um sistema que parece ter levado a derramamento de sangue em toda parte, na antiga Iugoslávia, no Chipre ou na antiga União Soviética. Há muito poucos exemplos de um Estado binacional funcionando de forma pacífica: Suíça, Suíça e, novamente, Suíça. Outros Estados binacionais hoje enfrentam problemas, como na Espanha e na Catalunha, e mesmo no Reino Unido. Então não acho que a solução para Israel e Palestina é se tornar um único estado. Eles devem se tornar duas nações vizinhas separadas.

Mas as duas propostas parecem soar utópicas, devido à escala de agressividade do conflito.

Não acho que ambas sejam utópicas. Acho que é utópico presumir que Israel e Palestina possam, após cem anos de conflito, partir em lua de mel e dividir o leito nupcial. Isso é utópico. Mas a ideia de dividir a terra em dois Estados soberanos, Israel e Palestina, em paz e coexistindo, não é utopia, é apenas uma saída pragmática e realista. Se você me perguntar quando isso deve acontecer, responderei que não sei, porque isso depende de uma liderança corajosa em ambos os lados e ao mesmo tempo.

O senhor falou de ser rotulado de traidor no início da entrevista. O senhor fala do tipo de liderança que não tem medo de ser odiada e rotulada da mesma forma?

Certamente. É o tipo de liderança de Abraham Lincoln, que insistiu para que os Estados Unidos abolissem a escravidão, e milhões de americanos se voltaram contra ele, que acabou morto por um deles, no fim. É o tipo de liderança apresentada por Charles de Gaulle quando retirou a França da Argélia, contra a opinião dos colonos franceses. É o tipo de liderança demonstrada por Anwar Sadat e Menachem Begin quando assinaram a paz entre Egito e Israel. É o tipo de liderança que Yitzhak Rabin e Shimon Peres demonstraram quando assinaram o acordo de Oslo com Yasser Arafat. Isso significa ter coragem. E significa também que algumas pessoas de seu próprio povo o chamarão de traidor.

O senhor mencionou Lincoln. Como a presença de Donald Trump na presidência dos Estados Unidos pode complicar esse cenário?

É muito cedo para dizer. Sei muito pouco a respeito de Trump a não ser o fato de que ele tem um temperamento extravagante e mesmo adolescente, mas ele não é um fanático, ao menos comparado com outros candidatos republicanos ao mesmo cargo. Ele não é um fanático, é um hedonista, é mais parecido com Berlusconi do que com Hitler ou Mussolini. Não é segredo que eu, se fosse um cidadão americano, não teria votado nele, nem o estou defendendo, mas acho que ainda é cedo para saber o que ele vai fazer. Acho que nem ele sabe ainda. Algumas vezes, coisas muito inesperadas são realizadas por pessoas de quem ninguém gostava ou esperava alguma coisa, e elas surpreendem todo mundo. Sou velho o bastante para ter visto um quadro produzido no dogmático Komsomol comunista, Mikhail Gorbatchov, desmantelar todo o bloco soviético. Não sabemos. Pessoas são capazes de surpreender não apenas aos outros, mas a si mesmos, todos nós somos, não apenas Trump. Eu, você, qualquer ser humano, já nos surpreendemos uma ou duas vezes na vida, já fizemos coisas que nos fizeram perguntar: “Fui eu mesmo que fiz aquilo?”. Eu ganho a vida baseado no fato de que as pessoas são imprevisíveis, que as pessoas podem ser surpreendidas. Se elas fossem como blocos de lego, ninguém leria ou escreveria romances.

O senhor tem uma visão do escritor como um otimista, então?

Nem sempre otimista, apenas consciente do fato de que as pessoas mudam. Com muita frequência, escrevi romances sobre pessoas que mudam. Elas não nascem de novo, não se tornam anjos, não se tornam o oposto do que eram, apenas mudam. Mesmo meu último romance, Judas, é sobre três pessoas que, no decorrer de um inverno, mudam umas às outras. A Pantera no Porão é sobre como um jovem muda no decorrer de umas poucas semanas.

O senhor já disse em uma entrevista que a personagem Atalia, de Judas, lembrava a Jerusalém de sua juventude: “Ela não é jovem. Ela é muito bonita. Ela está profundamente ferida. Ela é ferozmente independente e está muito brava”. Como o senhor definiria a Jerusalém atual?

A Jerusalém em que eu nasci e passei a infância era uma cidade triste. Excitante, fascinante, mas muito triste. Jerusalém ao longo da história atraiu todos os tipos de messias inspiradores, redentores, reformadores, judeus, cristãos, muçulmanos, radicais, intelectuais, é uma cidade fascinante, mas muito difícil. Por muitos anos, foi uma cidade dividida, com arame farpado, campos minados, snipers atirando em quem cruzasse as divisas, então era uma cidade dolorosa, mas muito atraente. Em alguns aspectos, ela ainda é assim. Jerusalém não é um lugar em que você vai apenas para se divertir e fazer compras.

O senhor relembrou essa Jerusalém de sua infância no livro de memórias De Amor e Trevas, que foi recentemente adaptado por Natalie Portman para o cinema, dirigindo o filme e interpretando o papel sua mãe. Como foi rever essa história tão sua por essa perspectiva?

Foi uma experiência muito inusitada, mas acho que Natalie Portman desenvolveu um trabalho de amor em De Amor e Trevas. Ela era de fato devotada ao livro, realmente o amava, realmente amou o personagem que estava interpretando, minha mãe. Claro que foi uma experiência muito estranha para mim, mas provavelmente sou o último homem que pode julgar e criticar este filme, porque eu conheci as pessoas reais, os lugares reais, suas esquinas. Vou repetir: para mim, o filme dela é um verdadeiro trabalho de amor, e eu sou muito grato a ela.

Nas últimas décadas, houve uma sensação de que o mundo estava progredindo no caminho da democracia e da modernização. O que pensa deste momento de ascensão do terrorismo islâmico, de volta da xenofobia e de extremismos políticos?

Acho que há um aumento do fanatismo no mundo todo. Não apenas o fanatismo islâmico. Há muitos tipos diferentes de fanatismo em várias partes do mundo: fanatismo islâmico, judaico, cristão, radical, revolucionário, até mesmo ambiental. Acho que nós todos desfrutamos de algumas boas décadas porque Stalin e Hitler nos deram um presente inadvertido. Depois deles, por talvez 50 ou 60 anos, a maioria de nós aprendeu a temer os extremismos, os fanatismos e as ideologias totalitárias. Acho que agora, infelizmente, esse “presente” está expirando seu prazo de validade e a humanidade está voltando ao normal: fanática, militante e bastante violenta. Logo, o curto episódio de moderação muito relativa está desaparecendo.
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Reportagem por CARLOS ANDRÉ MOREIRA
Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a9823817.xml&template=3898.dwt&edition=31392&section=4572 Cad.Doc ZH Fim de semana. 24/06/2017 p. 14 e 15

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