Amós
Oz é provavelmente o maior e mais conhecido escritor israelense vivo. É
também autor de uma obra umbilicalmente ligada à história de Israel:
alguns de seus grandes romances, como Uma Certa Paz (1982), A Caixa
Preta (1987), Fima (1991) e Pantera no Porão (1995), fazem uma crônica
artística da trajetória do país, suas crises e marés políticas, suas
guerras. Ao mesmo tempo, Oz é um dos escritores mais controversos dentro
da própria nação de Israel, dado que sua militância pela paz na região e
as críticas duras que costuma dirigir a governos israelenses (como o do
primeiro-ministro da direita linha-dura Benjamin Netanyahu) provocaram
ataques virulentos de seus próprios compatriotas.
Oz, 78 anos, é o
palestrante desta quarta-feira no ciclo Fronteiras do Pensamento, e vem
a Porto Alegre falar de sua literatura e de suas visões políticas. Ele é
cofundador do movimento de esquerda Paz Agora, com outros políticos e
acadêmicos de Israel, e já tratou do conflito na região em ensaios e
artigos. Um volume selecionando três desses ensaios mais longos será
lançado pela Companhia das Letras durante a vinda do autor: Mais de uma
Luz, no qual Oz retoma e amplia questões de que já havia tratado em Como
Curar um Fanático. Em entrevista concedida por telefone de Israel, Oz
falou sobre a pecha de “traidor” com a qual é rotulado pelos seus
adversários políticos, de sua visão da literatura como uma necessidade
humana e da adaptação para o cinema feita recentemente por Natalie
Portman de seu livro de memórias, De Amor e Trevas (2003).
Que temas o senhor pretende abordar em sua palestra em Porto Alegre?
Eu
vou falar, primeira e principalmente, a respeito de meu país, Israel, e
vou compartilhar com a audiência um pouco da minha visão política, que é
bem diferente da política do governo israelense. E também vou falar
sobre a minha obra literária.
O senhor comentou as diferenças de
sua visão política com relação ao governo de Israel. O senhor e outros
escritores israelenses, como seu amigo David Grossman, já foram
ferozmente criticados pela direita israelense e tachados de inimigos do
país. Como o senhor se sente a respeito desse tipo de acusação?
Me
sinto triste e orgulhoso. Sinto-me triste porque muitos israelenses não
entendem minhas ideias ou não as aceitam. Mas também me sinto orgulhoso
porque, a cada vez que alguns de meus compatriotas me chamam de
“traidor”, eles me colocam em muito boa companhia, ao lado de alguns dos
grandes escritores, poetas, profetas, intelectuais e estadistas na
História que foram chamados de traidores por seus próprios
contemporâneos. A cada vez que alguém aqui me chamar de traidor, eu
usarei esta comenda na minha lapela, como um distintivo de honra, ao
lado da Legion d’Honneur que (o então presidente francês) Jacques Chirac
me concedeu há cerca de 10 anos. Assim, penso que ser considerado
traidor por alguns de seus compatriotas é uma honra.
Essa é a razão pela qual o senhor decidiu escrever um romance sobre Judas?
Sim,
eu escrevi sobre lealdade e traição, e quão complicada é a relação
entre lealdade e traição e sobre o fato de que, algumas vezes, o que
muitas pessoas chamam de traição parece a outras uma lealdade mais
profunda. No meu romance Judas, há muitas personagens que traem outras
pessoas, mas Judas não é uma delas. Judas é, no livro, extremamente leal
a seu mestre, Jesus. Judas acredita em Jesus mais do que o próprio
Jesus acredita em si mesmo.
Nesse sentido, o Judas apresentado em seu romance é um pouco o retrato que o senhor também já fez do fanático.
Sim.
Judas no romance acredita em redenção instantânea. Ele gostaria de
apressar a chegada do Reino dos Céus. Ele queria pôr os eventos em ação
de tal modo que a salvação universal ocorreria imediatamente. E esse é
um pensamento típico de fanáticos que perseguem a salvação instantânea.
E o que atraiu em um personagem como esse?
Bem,
muitas pessoas, não apenas as religiosas, mas também as revolucionárias
e radicais acreditam em salvação instantânea. Muitos dos meus
personagens têm crenças que eu não compartilho. Não acredito nas mesmas
coisas que meus protagonistas. Alguns deles acreditam em salvação
instantânea, eu acredito em soluções práticas. Alguns deles acreditam em
fraternidade global, eu acredito mais na coexistência pragmática entre
vizinhos, não em amor universal. Com frequência, escrevo sobre
protagonistas que não compartilham minhas ideias e crenças políticas,
mas como figuras elas me entusiasmam e eu escrevo a respeito.
Qual é o alcance social da atividade de um escritor em Israel e no Oriente Médio, dada a situação atual de conflitos na região?
Eu
não gosto de fazer generalizações a respeito do papel social de
escritores ou da literatura. Eu prefiro falar sobre o dom da literatura.
Penso que romances, contos, poesia podem abrir para o leitor diversas
janelas para o mundo exterior e para dentro de si mesmo. Então, em vez
de discutir o papel da literatura e dos escritores, eu prefiro falar
sobre o presente que é a literatura. Para mim, como leitor, os livros
que eu gosto foram um presente. Não são apenas veículos para carregar
ideias ou conclusões ou algum tipo de manifesto político. Não, primeira e
principalmente foram uma fonte de deleite. Acredito que contar e ouvir
histórias são necessidades humanas básicas. Quando temos dois anos de
idade, gostamos de ouvir histórias antes de dormir. Um pouco mais e
estamos querendo que as pessoas ouçam as histórias que contamos. É uma
necessidade humana, como o sonho ou o sexo. Não sinto que a literatura
seja algum tipo de veículo carregando mensagens de um ponto a outro ou
de uma pessoa para outra. Não é sobre manifestos ou balanços. A
literatura é um jogo, e eu adoro esse jogo.
Sim, mas eu pensava
mais em dois papéis diversos que o escritor assume. O senhor é um
narrador, publica romances e histórias, são sua literatura, mas também
publica ensaios e discursos a respeito de política e fanatismo.
Certamente.
E nessas obras o que me move é principalmente uma responsabilidade para
com a linguagem. Eu sou um escritor, trabalho com palavras todos os
dias, do mesmo modo que um carpinteiro trabalha com a madeira ou um
pedreiro com tijolos. Assim, eu sinto uma responsabilidade para com a
linguagem. Penso que muitos dos maiores males deste mundo começam com a
corrupção da linguagem, e é meu dever gritar a cada vez que vejo alguém
usando uma linguagem contaminada. Quando algumas pessoas chamam outras
de “estrangeiros indesejáveis”, “elementos negativos”, “câncer social”
ou “parasitas”, sei que é sempre aí que começam a violência, a
perseguição e a crueldade. Daí meu senso de dever de trabalhar como o
corpo de bombeiros do idioma, ou como um detector de fumaça, eu preciso
gritar “fogo” sempre que leio ou ouço essas palavras que, mais cedo ou
mais tarde, vão gerar violência.
Em 2016, seu amigo David
Grossman veio a Porto Alegre para a mesma série de palestras. Ele disse,
em uma entrevista: “Gosto da ideia de um Estado binacional para
israelenses e palestinos, mas não acho apropriado agora, porque exigiria
uma verdadeira maturidade política que não temos”. Esse é o motivo por
que o senhor defende dois Estados, um para israelenses e outro para
palestinos?
É preciso não confundir um Estado binacional com uma
solução binacional. A solução binacional significa dividir a casa em
dois apartamentos menores, um para israelenses e outro para palestinos.
Um Estado binacional é um sistema que parece ter levado a derramamento
de sangue em toda parte, na antiga Iugoslávia, no Chipre ou na antiga
União Soviética. Há muito poucos exemplos de um Estado binacional
funcionando de forma pacífica: Suíça, Suíça e, novamente, Suíça. Outros
Estados binacionais hoje enfrentam problemas, como na Espanha e na
Catalunha, e mesmo no Reino Unido. Então não acho que a solução para
Israel e Palestina é se tornar um único estado. Eles devem se tornar
duas nações vizinhas separadas.
Mas as duas propostas parecem soar utópicas, devido à escala de agressividade do conflito.
Não
acho que ambas sejam utópicas. Acho que é utópico presumir que Israel e
Palestina possam, após cem anos de conflito, partir em lua de mel e
dividir o leito nupcial. Isso é utópico. Mas a ideia de dividir a terra
em dois Estados soberanos, Israel e Palestina, em paz e coexistindo, não
é utopia, é apenas uma saída pragmática e realista. Se você me
perguntar quando isso deve acontecer, responderei que não sei, porque
isso depende de uma liderança corajosa em ambos os lados e ao mesmo
tempo.
O senhor falou de ser rotulado de traidor no início da
entrevista. O senhor fala do tipo de liderança que não tem medo de ser
odiada e rotulada da mesma forma?
Certamente. É o tipo de
liderança de Abraham Lincoln, que insistiu para que os Estados Unidos
abolissem a escravidão, e milhões de americanos se voltaram contra ele,
que acabou morto por um deles, no fim. É o tipo de liderança apresentada
por Charles de Gaulle quando retirou a França da Argélia, contra a
opinião dos colonos franceses. É o tipo de liderança demonstrada por
Anwar Sadat e Menachem Begin quando assinaram a paz entre Egito e
Israel. É o tipo de liderança que Yitzhak Rabin e Shimon Peres
demonstraram quando assinaram o acordo de Oslo com Yasser Arafat. Isso
significa ter coragem. E significa também que algumas pessoas de seu
próprio povo o chamarão de traidor.
O senhor mencionou Lincoln. Como a presença de Donald Trump na presidência dos Estados Unidos pode complicar esse cenário?
É
muito cedo para dizer. Sei muito pouco a respeito de Trump a não ser o
fato de que ele tem um temperamento extravagante e mesmo adolescente,
mas ele não é um fanático, ao menos comparado com outros candidatos
republicanos ao mesmo cargo. Ele não é um fanático, é um hedonista, é
mais parecido com Berlusconi do que com Hitler ou Mussolini. Não é
segredo que eu, se fosse um cidadão americano, não teria votado nele,
nem o estou defendendo, mas acho que ainda é cedo para saber o que ele
vai fazer. Acho que nem ele sabe ainda. Algumas vezes, coisas muito
inesperadas são realizadas por pessoas de quem ninguém gostava ou
esperava alguma coisa, e elas surpreendem todo mundo. Sou velho o
bastante para ter visto um quadro produzido no dogmático Komsomol
comunista, Mikhail Gorbatchov, desmantelar todo o bloco soviético. Não
sabemos. Pessoas são capazes de surpreender não apenas aos outros, mas a
si mesmos, todos nós somos, não apenas Trump. Eu, você, qualquer ser
humano, já nos surpreendemos uma ou duas vezes na vida, já fizemos
coisas que nos fizeram perguntar: “Fui eu mesmo que fiz aquilo?”. Eu
ganho a vida baseado no fato de que as pessoas são imprevisíveis, que as
pessoas podem ser surpreendidas. Se elas fossem como blocos de lego,
ninguém leria ou escreveria romances.
O senhor tem uma visão do escritor como um otimista, então?
Nem
sempre otimista, apenas consciente do fato de que as pessoas mudam. Com
muita frequência, escrevi romances sobre pessoas que mudam. Elas não
nascem de novo, não se tornam anjos, não se tornam o oposto do que eram,
apenas mudam. Mesmo meu último romance, Judas, é sobre três pessoas
que, no decorrer de um inverno, mudam umas às outras. A Pantera no Porão
é sobre como um jovem muda no decorrer de umas poucas semanas.
O
senhor já disse em uma entrevista que a personagem Atalia, de Judas,
lembrava a Jerusalém de sua juventude: “Ela não é jovem. Ela é muito
bonita. Ela está profundamente ferida. Ela é ferozmente independente e
está muito brava”. Como o senhor definiria a Jerusalém atual?
A
Jerusalém em que eu nasci e passei a infância era uma cidade triste.
Excitante, fascinante, mas muito triste. Jerusalém ao longo da história
atraiu todos os tipos de messias inspiradores, redentores, reformadores,
judeus, cristãos, muçulmanos, radicais, intelectuais, é uma cidade
fascinante, mas muito difícil. Por muitos anos, foi uma cidade dividida,
com arame farpado, campos minados, snipers atirando em quem cruzasse as
divisas, então era uma cidade dolorosa, mas muito atraente. Em alguns
aspectos, ela ainda é assim. Jerusalém não é um lugar em que você vai
apenas para se divertir e fazer compras.
O senhor relembrou essa
Jerusalém de sua infância no livro de memórias De Amor e Trevas, que foi
recentemente adaptado por Natalie Portman para o cinema, dirigindo o
filme e interpretando o papel sua mãe. Como foi rever essa história tão
sua por essa perspectiva?
Foi uma experiência muito inusitada,
mas acho que Natalie Portman desenvolveu um trabalho de amor em De Amor e
Trevas. Ela era de fato devotada ao livro, realmente o amava, realmente
amou o personagem que estava interpretando, minha mãe. Claro que foi
uma experiência muito estranha para mim, mas provavelmente sou o último
homem que pode julgar e criticar este filme, porque eu conheci as
pessoas reais, os lugares reais, suas esquinas. Vou repetir: para mim, o
filme dela é um verdadeiro trabalho de amor, e eu sou muito grato a
ela.
Nas últimas décadas, houve uma sensação de que o mundo
estava progredindo no caminho da democracia e da modernização. O que
pensa deste momento de ascensão do terrorismo islâmico, de volta da
xenofobia e de extremismos políticos?
Acho que há um aumento do
fanatismo no mundo todo. Não apenas o fanatismo islâmico. Há muitos
tipos diferentes de fanatismo em várias partes do mundo: fanatismo
islâmico, judaico, cristão, radical, revolucionário, até mesmo
ambiental. Acho que nós todos desfrutamos de algumas boas décadas porque
Stalin e Hitler nos deram um presente inadvertido. Depois deles, por
talvez 50 ou 60 anos, a maioria de nós aprendeu a temer os extremismos,
os fanatismos e as ideologias totalitárias. Acho que agora,
infelizmente, esse “presente” está expirando seu prazo de validade e a
humanidade está voltando ao normal: fanática, militante e bastante
violenta. Logo, o curto episódio de moderação muito relativa está
desaparecendo.
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Reportagem por CARLOS ANDRÉ MOREIRA
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a9823817.xml&template=3898.dwt&edition=31392§ion=4572 Cad.Doc ZH Fim de semana. 24/06/2017 p. 14 e 15
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