Luiz Felipe Pondé*
A recusa do mundo sempre foi um clássico na filosofia. Talvez os mais
famosos nisso tenham sido os estoicos romanos, como Marco Aurélio
(121-180) e Sêneca (4 a.C. - 65 d.C.). Um imperador, outro senador,
gente de posses, como dizia minha avó. Se gente de posses diz que o
mundo é uma farsa, há algo de verdade nisso. Uma das maiores razões para
se recusar o mundo sempre foi a ideia que ele era o lugar da mentira.
Várias espiritualidades pregam essa recusa do mundo. Das mais profundas
até aquelas que no lugar do mundo recusado colocam viver fazendo geleia
em Gonçalves.
A moçada que recusa o mundo hoje não abre mão do wi-fi. O mundo pode ser
o lugar da mentira, mas o wi-fi é, seguramente, o lugar da vida. Você
pode ser um "monge contemporâneo" que se comunica via mídias sociais.
Antão (251 - 356) e Pacômio (292 - 348), que ruminavam trechos dos
Salmos nos desertos do Egito, jamais imaginariam uma vida de monge
assim.
Mas o mundo como lugar da mentira é mesmo uma questão muito séria em
filosofia. Se num vilarejo onde moram dez pessoas pode ser difícil se
saber o que é a verdade, como podemos falar em buscar a verdade num
mundo com 7 bilhões de Sapiens ligados nas mídias sociais? Sei que nem
todo mundo tem boa internet no mundo, mas isso vai mudar com o tempo.
Timothy Snyder, em seu excelente e didático "Sobre Tirania" (Companhia
das Letras), chama-nos a atenção para o risco de abdicarmos da verdade,
entre outras formas de risco da tirania dissolver a democracia. Jamais
devemos abdicar de conhecer os fatos: "investigue", diz ele. Concordo.
Mas, em nosso mundo contemporâneo, "buscar os fatos" é, sempre, em si,
um fato mediado. Isto é, temos de confiar em alguma instituição (ele
também diz que devemos defender as instituições), seja ela o governo e
seus Poderes da República, seja ela a mídia (as grandes marcas, quero
dizer), seja ela uma ONG, uma igreja, ou qualquer outra instituição. E
aqui o problema se recoloca. Por que devo confiar nas instituições que
se oferecem como mediadoras da verdade ou dos fatos?
Grande parte dos agentes atuantes nas mídias sociais (nome chique para
todo mundo ligado nelas) vê sua atuação como forma de "resistência" à
manipulação dos "fatos" pela grande mídia ou pelas instituições
públicas, ou, no mínimo, o que dá na mesma, como forma de "liberdade de
opinião".
A grande mídia, por sua vez, coloca na conta das mídias sociais grande
parte do problema conhecido como "pós-verdade": todo mundo pode veicular
o que quiser em suas mídias sociais, mesmo mentiras.
Este é um círculo vicioso interminável que aponta, entre outras coisas,
para o seguinte: as mídias sociais pressionam as instituições
constituídas (do governo à grande mídia, das escolas às igrejas) de
forma desconhecida até hoje.
A "soma total" desse impacto ainda é desconhecida por nós. Do ponto de
vista da percepção que temos das instituições políticas representativas
existentes, as mídias sociais podem, em alguma momento, desconstruí-las
ou redefini-las de forma ainda desconhecida por nós. Portanto, o risco
da tirania (dissolução da democracia) nesse aspecto de busca da verdade e
defesa das instituições pode ser "pior" do que pensa Snyder.
Faça um teste local: caso Joesley x Temer. Delação, vídeos, entrevista
na revista "Época", GloboNews (ambos veículos da TV Globo). O que você
acha?
É tudo verdade o que diz Joesley? O Ministério Público e a
Procuradoria-Geral da Republica agiram de forma imparcial? O grupo Globo
só quer informar você da melhor forma possível? Ou todos citados
anteriormente (por "n" razões que nunca saberemos de fato) querem
proteger de alguma forma o PT e o Lula? Ou querem apenas "ferir" o
governo Temer? Ou é apenas "melação com a delação"?
A súbita divulgação dos primeiros vídeos após depoimento do Lula foram
coincidência ou visava levar a opinião pública a esquecer o "case Lula"?
O fato de a JBS ter crescido tanto na era PT é indicativo de que esta
hipótese tem validade? Crer nesta hipótese é paranoia, postura crítica
ou viés ideológico anti-PT? O que diz o Face?
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* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela
Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião,
ciência. Escreve às segundas.
ponde.folha@uol.com.br
@lf_ponde
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2017/06/1895946-por-que-devo-confiar-em-quem-se-oferece-como-mediador-da-verdade.shtml
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