José de Souza Martins*
Ele tem apenas 17 anos de idade. É franzino: parece ter 13.
Não chora, não grita, não implora compaixão. Está conformado. Adivinha o que
querem seus algozes, um tatuador e um pedreiro, ambos com menos de 30 anos de
idade. Seus olhos dizem-no desamparado. É evidente que está assustado. Sabe
qual é a pena para quem atravessa o limite de uma sociedade de donos de gado e
gente. Caiu no laço. Vai ser ferrado para que saiba e todos saibam que tem quem
manda nele.
Antes, implorara que o marcassem no braço, não na testa. Mas o script da
tortura era outro. Os torturadores queriam marcá-lo para o resto da vida. Não
se tratava apenas de nele inscrever o nome do crime que teria cometido, a
suposta tentativa de roubar a bicicleta de um aleijado, coisa que a polícia não
confirmou.
Tratava-se de iniciar ali o seu linchamento. Na tradição do justiçamento
popular, com aquela marca, será trucidado na rua mais adiante. É pouco provável
que sobreviva. Aqueles criminosos inovaram na técnica de linchar. É um dos
primeiros linchamentos brasileiros a que os linchadores deram a forma de
encenação e performance. Televisão e cinema já não são instrumentos de obras de
ficção. O acontecimento da semana passada em São Bernardo do Campo é um
precioso documento sobre uma sociedade retrógrada que já não distingue ficção
de realidade. A força de um imaginário perverso tomou conta de nossa
consciência.
Era parte da crueldade o fingimento dos autores de que a vítima ingressara no
estabelecimento como cliente, para fazer uma tatuagem. Como se ela mesma
encomendasse o teor da marca que levará. Perguntada, diz: "Ladrão".
"Tem que ser uma frase inteira", esclarece o tatuador e diretor da
encenação. O pedreiro filma. Ressalta os olhos aterrorizados do garoto, esmera
no detalhe da frase cruel: "Eu sou ladrão e vacilão". A tatuagem
ironiza a fragilidade da vítima, que se deixou capturar. Além de supostamente tentar
cometer um crime, fora incompetente no desempenho criminoso.
O filme foi colocado na internet. Em apenas uma hora teve meio milhão de
visualizações, sem contar muitas replicações, uma das quais de um suposto
programa noticioso em que o locutor baba de prazer e ódio contra o adolescente
justiçado e recomenda aos espectadores que vejam o espetáculo. Um programa de
grande sucesso.
Nada disso, porém, tem a relevância de um detalhe assustador e revelador: a
passividade e o conformismo da vítima. Ele não é o diferente. Age com a
compreensão da mesma lógica de quem o machuca, conhece o roteiro, sabe quais
são as palavras que dele se espera. As letras negras que o marcam, como em
"A Letra Escarlate", de Nathaniel Hawthorne, é o signo do que é a
sociedade em que vive, uma sociedade que estigmatiza para existir. O garoto é
usuário de droga, havia vários dias fora de casa. Foi na internet que a família
o reconheceu e avisou a polícia, que, em pouco tempo, prendeu os dois
criminosos e os indiciou pela prática de tortura.
Um aspecto essencial de toda essa violência é o de que ocorreu no ABC operário
e, nele, no mais próspero de seus municípios. O ABC das emblemáticas
assembleias operárias do estádio de Vila Euclides. A ocorrência de agora nos
fala de uma cultura fascista e neonazista que se difunde no proletariado da
sociedade que, supostamente, fazia em seu tempo o discurso de esquerda.
O cineasta Carlos Reichenbach (1945-2012), em 2003, com o
filme "Garotas do ABC", inspirado em ocorrências racistas e
neonazistas na região, já havia mostrado a metamorfose: os filhos de operários
de esquerda tornavam-se ativistas de extrema direita. Em 2009, uma jovem de 20
anos, filha de um operário metalúrgico de Diadema começou a ser assediada e
apupada, estigmatizada, por seus colegas de escola numa universidade da região.
Corria o risco de linchamento porque usava saia curta e colorida.
O episódio de agora não é estranho à tendência de radicalização direitista no
próprio meio operário. O ABC teve hegemonia política petista durante largos
anos e foi ali o laboratório da irresistível ascensão do partido. O PT
administrou o país durante 13 anos e São Bernardo durante oito anos. Não
conseguiu desenvolver políticas sociais e culturais de emancipação da classe
trabalhadora, ressocializando-a para valores propriamente sociais e humanistas.
Limitou-se às demandas econômicas, sindicais e corporativas. Gerou uma baixa
classe média partidarizada, mas não politizada.
O garoto foi encontrado pela família. O coletivo Afroguerrilha lançou uma
campanha pela internet para arrecadar R$ 15 mil para custear a remoção da
tatuagem e o tratamento de recuperação do garoto. No fim da tarde de domingo a
quantia já havia sido conseguida. Ainda há luz no fundo da escuridão.
-----------------------------------------*José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras e autor de Linchamentos - A Justiça Popular no Brasil (Contexto), dentre outros. Escreve neste espaço semanalmente
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5006024/letra-negra 16/06/2017
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