Karnal, 54 anos, em palestra realizada em Porto Alegre no dia 8 de junho
Foto: Lauro Alves / Agencia RBS
Com
1 milhão de seguidores no Facebook, historiador gaúcho aparece
diariamente na TV e viaja pelo país
inteiro para fazer palestras
Assim
como usa ideias do romancista e ensaísta Elias Canetti, do filósofo José
Ortega Y Gasset e do teórico da comunicação Marshall McLuhan para
tentar explicar sua popularidade, Leandro Karnal pode lembrar de uma
cena da comédia dos anos 1980 Corra Que A Polícia Vem Aí e usá-la
como referência no instante seguinte. É incessante a cadeia de
associações produzida pela mente do professor, escondida sob a
aparadíssima careca que se tornou sua marca registrada. E é dela (a
mente, não a careca) que o gaúcho de São Leopoldo se vale para organizar
suas palestras, que se tornaram hits nas redes sociais e em teatros por
todo o Brasil.
No dia 8 de junho, Karnal, 54 anos, apresentou
em Porto Alegre a conferência A Vida que Vale a Pena Ser Vivida. Falou
para cerca de 1,5 mil pessoas, no Teatro do Sesi, sobre a busca pela
felicidade, as angústias da vida contemporânea e a relação das pessoas
com o tempo. Durante uma hora e meia, à frente de um telão que projetava
imagens de uma apresentação em PowerPoint, pincelou com bom humor temas
que aborda em seus livros – nesse período, foi filmado por dezenas de
smartphones e interrompido por aplausos oito vezes, sete delas depois de
uma piada e uma ao final da palestra, quando ouviu 26 segundos de
palmas. Com o público de pé.
Na manhã seguinte, uma gravação de TV na Band o levaria ao Rio.
–
Durmo cada noite em um lugar – diz Karnal, para logo em seguida fazer
uma brincadeira com fundo de verdade, outra coisa que faz com certa
frequência: – Mas a fama me agrada, principalmente porque atende ao
fenômeno mais universal da espécie humana, que se chama vaidade.
De
fato, a vida de Karnal não é a típica de um professor universitário –
dá aulas na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Sua agenda
inclui uma coluna semanal e um blog no jornal O Estado de S. Paulo,
entradas ao vivo duas vezes por semana na rádio BandNews e o quadro
diário Careca de Saber, na BandNewsTV. Está frequentemente em
aeroportos e posando para fotos com desconhecidos. É uma rotina que mais
parece com a de um popstar da música sertaneja do que a de um
historiador especializado no desenvolvimento das nações.
–
Converso muito com pessoas que vivem isso há mais tempo. Gosto de falar
com atores da Globo, por exemplo – revela. – Segundo eles, é inevitável
criar uma persona pública para lidar com a fama.
O
professor estima que ficou famoso há mais ou menos três anos. Lembra
de, repentinamente, observar o crescimento exponencial da popularidade
de seus vídeos, a invasão de suas redes sociais por milhares de pessoas
que ele nunca havia visto na vida e a demanda quase diária por
entrevistas. O cenário já era um Brasil em crise existencial, sob a
sombra da Operação Lava-Jato e polarizado após as eleições de 2014. Até
ali, radicado em São Paulo havia três décadas, Karnal circulava
basicamente em ambientes acadêmicos e era "alguém" em circuitos
específicos, principalmente por conta de livros como História dos Estados Unidos: Das Origens ao Século XXI (2007).
–
Notei que havia algo de diferente quando as pessoas começaram a dar
muito valor às fotos que tiravam comigo – brinca, antes de aprofundar: –
A espetacularização da vida e o ingresso das massas no sistema de
consumo cultural, conceitos trabalhados por Elias Canetti em Massa e Poder, Ortega y Gasset em Rebelião das Massas,
começaram a ficar cada vez mais evidentes. Não só professores se
tornaram populares, o que é notável, mas também pessoas sem grande
bagagem de erudição, como youtubers, que têm 3 milhões de seguidores
porque possuem grande capacidade de comunicação. McLuhan, que morreu
antes de tudo isso, dizia que o meio era a mensagem. Hoje, o meio
certamente é a própria mensagem. Acima de tudo, o surgimento da internet
e a popularização das redes sociais fizeram com que ideias que eram
restritas a um grupo atingissem mais pessoas.
Atualmente, um
milhão de pessoas curtem Leandro Karnal no Facebook – há um ano, eram
400 mil. No YouTube, seu vídeo de maior popularidade chama-se "Minha
felicidade depende de mim", de 2016, com 1,6 milhão de visualizações
(suas recentes entrevistas ao Programa do Jô e ao Roda Viva também ultrapassam o milhão). Seu livro Pecar e Perdoar: Deus e o Homem na História, de 2014, acumula nove semanas consecutivas na lista de mais vendidos da revista Veja. Felicidade ou Morte,
escrito com Clóvis de Barros Filho, terminou 2016 na sexta posição da
mesma lista. O gaúcho faz parte do grupo de "filósofos pop", que abrange
nomes como Mário Sergio Cortella, Marcia Tiburi,
Luiz Felipe Pondé e Barros Filho. A semelhança entre eles: todos tentam
refletir sobre questões da vida contemporânea e discutir aspectos
específicos da política nacional com base em referências bibliográficas,
linhas de pensamento históricas e argumentos de lados distintos.
Se
as redes sociais explicam o fenômeno sob o ponto de vista do meio e do
contexto social, Karnal também procura pensá-lo sob a ótica da mensagem:
–
Eu e muitas pessoas, até mais do que eu, temos a capacidade
comunicativa de transformar coisas complexas em coisas simples e fazer
as pessoas pensarem coisas das quais elas não tinham se dado conta –
diz, citando Cortella e Barros Filho, "todos ligados a universidades,
com títulos de doutor, formação no Exterior, área de especialidade e
livros publicados". – Temos as redes, a mensagem e um momento específico
no Brasil, em que as pessoas começaram a querer ter acesso ao
conhecimento. Houve, em vários sentidos, uma ascensão de classe, uma
busca por conhecimento, e acho que isso favoreceu. Tudo isso é uma
explicação racional, equilibrada, cartesiana, mas não tenho uma certeza
exata sobre todas as variáveis. Parece que essas coisas acontecem.
Karnal
não trata sua celebridade como algo sagrado. Nem ele é "sagrado".
Recentemente, foi surpreendido com uma avalanche de críticas e
xingamentos após publicar no Facebook uma foto jantando ao lado do juiz
Sergio Moro. Até então, o professor era tido pela maioria de seus
admiradores como um pensador identificado com ideias de esquerda – para
seus depreciadores, um "petralha", portanto. A foto com o juiz símbolo
da Lava-Jato causou confusão em quem tem visão dicotômica. A polêmica
foi tanta que Karnal precisou apagar a foto e ir a público se explicar:
–
Há palavras que são detonadoras de bloqueios mentais: Cuba, Che
Guevara, Bolsonaro, Olavo de Carvalho, PT, Lula. Você não pode pensar, a
única atitude aceitável depois de usar uma dessas palavras é insultar.
Se você matizar, é agredido. Quando você está em um jantar com juízes e
algum daqueles juízes não é do agrado da pessoa, essa pessoa me
classifica como "petralha" ou "coxinha".
O mundo emburreceu muito.
Ainda
sobre o sucesso, Karnal gosta de lembrar que, da mesma forma como é
parado em aeroportos para tirar fotos, o goleiro Bruno, preso por
assassinar a ex-mulher, também é. Tem plena certeza de que o produto que
está sendo consumido é a fama em si, e não as ideias. Essa percepção
faz eco ao que diz o canadense Mathieu Deflem, professor da Universidade
da Carolina do Sul, nos Estados Unidos, e especialista em sociologia da
fama:
– Fama pode ser baseada em qualquer coisa, seja um mérito,
como fazer boa música ou ter ideias poderosas, ou não, como um escândalo
ou um caso de sensacionalismo. Talvez Karnal seja famoso por causa da
força de suas ideias, mas talvez seja por causa de sua careca. Eu não
sei, e ele também não.
A herança paterna: "Foi em casa que conheci Homero, Machado, Eça"
Em
março deste ano, Karnal foi a São Leopoldo participar de uma cerimônia
na Câmara de Vereadores que marcou a mudança do nome da Avenida das
Indústrias para Avenida Renato Karnal – nome de seu pai, morto em 2010.
Da vida na cidade gaúcha, o professor se recorda das visitas à
Biblioteca Pública Municipal Olavo Bilac (desde 2007 rebatizada como
Biblioteca Vianna Moog), das aulas de piano e do incentivo à leitura que
recebia em casa. Conta que, desde os primeiros estudos, no Colégio São
José, sempre foi estimulado a ler clássicos e formar senso crítico. Em
casa, recebeu uma formação "tradicional, que se voltava à erudição e ao
domínio de fontes".
– Sempre foi muito forte essa vontade de ler.
Tive um pai que me ajudou muito com sua biblioteca e seu preparo. Foi em
casa que conheci Homero, Machado de Assis, Eça de Queirós – conta.
Da mesma época, tirou a capacidade de apresentar-se em público com destemor:
– Nunca fiquei nervoso com plateia. Nem quando tocava piano em São Leopoldo.
Professor
de latim e advogado, o pai de Karnal atuou fortemente na política
local. Em tempos de ditadura, chegou à presidência da Câmara de
Vereadores de São Leopoldo. Rocy Ferreira, presidente da Apae da cidade,
conviveu com Renato em dois momentos: na década de 1950, como aluno de
latim do respeitado professor do Colégio São Luís, e depois, já a partir
da década de 1970, como amigo pessoal do político influente. Conta que
vê em Leandro a capacidade de oratória e a cultura vasta do pai – usa
como exemplo um concurso de oratória realizado no Nordeste em 1956 e
vencido pelo então professor. Lembra também de um Renato ainda mais
popular do que Leandro.
– Procurava se interessar pelo aluno, era
querido por todos. Como ser humano, sempre foi um exemplo, respeitou
seus semelhantes, nunca ouvi ele falar nada de ninguém. Em questão de
conduta, Renato e Leandro são muito parecidos. Mas o Renato era mais
popular, simplesmente chegava. O Leandro tem que pedir licença – lembra
Rocy, para em seguida recordar de outra habilidade notável do Karnal
pai: – Ele era uma pessoa inteligentíssima, muito culto e um exímio
jogador de pingue-pongue. Acompanhei-o em diversas cidades jogando
pingue-pongue. Ele juntou uma turma e viajava com eles jogando. Chegou a
vencer campeonato estadual.
Nos últimos tempos, Karnal vem
contando a Odisseia para seu sobrinho de sete anos. Ele não gosta da
ideia de missão, vê como algo religioso, mas sabe que tem capacidade
ímpar de transmitir conhecimento:
– Uma palestra ou um livro não
mudam tudo, mas são como uma estalactite pingando. Leiam, estudem, se
desenvolvam. Alguns vão ter mais dificuldade, outros menos. Quanto mais
acumularmos capacitação, menos a onda do futuro vai nos pegar
desprevenido.
O metódico palestrante se prepara para entrar no palco do Teatro do Sesi, na Capital
Foto: Lauro Alves / Agencia RBS
Suas
palestras tratam bem do assunto: manter a vida sob rédeas curtas,
planejar ações a curto e a longo prazo, não terceirizar escolhas – todos
são conceitos tratados sob diversos prismas e os mais variados tons em
seus textos. Nesses eventos, costuma arrancar gargalhadas da plateia com
esta tirada:
– Perguntam muito como eu consigo dormir só quatro
horas. Ora, ao deitar eu coloco o despertador para dali a quatro horas
e, quando ele toca, eu levanto. "Mas, Karnal, eu não consigo!". Então,
morra!
É uma verdade contada como piada. O professor é metódico.
Tem hora para dormir e hora para acordar (meia-noite e 4h). De quatro em
quatro meses, tira férias. Para as próximas, marcadas para janeiro,
viajará à Inglaterra, onde estudará a obra de William Shakespeare, um de
seus favoritos, durante 12 horas diárias. Enquanto janeiro não chega,
aproveita salas de embarque, poltronas de aviões e quartos de hotéis
para estudar – ou simplesmente ler, turbinado pelo que chama de "uma
grande capacidade de concentração e uma excelente memória".
– Tenho a necessidade psíquica de obter o equilíbrio de vida lendo. Terminei ontem o Prisioneiras,
do Dráuzio Varela, que remeteu a outra coisa: preciso reler, como
comecei hoje, Cesare Beccaria, o grande iluminista jurídico do século
18, falando sobre direitos e penas. Lendo Beccaria, pensei: faz tempo
que não leio o Código de Hamurabi, que estabelece a Lei do Talião, um
progresso jurídico. As coisas vão se encadeando para mim num sistema de
interesse muito grande. Ler não é um peso, é uma alegria.
Até por
isso, a rotina de popstar não o incomoda (a ponto de responder
individualmente, em seu smartphone, aos comentários de seus seguidores) e
não o deslumbra. Enxerga as palestras lotadas, os livros best-sellers e
as milhões de visualizações no YouTube como uma expansão virtual de sua
sala de aula:
– Uma coisa boa de ter mais de 50 anos é que você
separa significado e significante. Eu sou Leandro Karnal, era Leandro
Karnal dando aula na Unicamp, quando ninguém me chamava para palestras, e
continuarei sendo Leandro Karnal dando aula na Unicamp em 2024. A fama
traz coisas positivas, mas eu existia antes dela. Sei distinguir quem eu
sou e os momentos – diz, para depois fazer algo incomum a
historiadores, falar do futuro: – Não tenho o dom da profecia, então
talvez este momento termine logo. Mercado cansa, as pessoas cansam, isso
tudo pode passar. E aí, provavelmente terei tempo de ler mais, de
escrever mais, de fazer mais as coisas de que eu gosto.
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