segunda-feira, 30 de agosto de 2021

A saga dos intelectuais franceses

Por FRANÇOIS DOSSE*

Joan Miró, O carnaval de Arlequim, 1925.

“Introdução” do livro recém-publicado

Um intervalo entre duas datas, 1944-1989, e um imenso contraste ser vem de limites temporais a este estudo: por um lado, o sentimento de ser impelido pelo movimento da história para o clima de saída da bar bárie nazista; por outro, a impressão de desmoronamento da experiência histórica vivenciada no momento da queda do comunismo em 1989. Nesse entreato, é a própria crença no curso da história – a qual, supostamente, seria portadora de um mundo melhor – que acabou sendo desmentida.

A ideia de um futuro, na condição de objetivo a ser atingido inexoravelmente pela marcha do mundo – cujos guias seriam os intelectuais –, desaparecia para ser substituída por um “presentismo” indeterminado. Como afirmou Jorge Semprún, ao participar do programa de rádio Radioscopie, apresentado por Jacques Chancel: “Nossa geração não está preparada para se recuperar do fracasso da URSS”. Foram os intelectuais de esquerda – muito mais que os militantes propriamente comunistas – que, de maneira cruel e duradoura, sofreram tal baque, acabando por ver a si mesmos, no decorrer no século XX, órfãos de um projeto de sociedade.

A marcha rumo a uma sociedade igualitária havia sido a mola pro pulsora dos movimentos emancipadores do século XIX, qualificado como o “século da história”: eis que a sociedade perdia o que lhe dava sentido. Os intelectuais de esquerda não foram os únicos a resignar-se a ficar sem futuro durante o trágico século XX: os de direita tiveram de abandonar as próprias ilusões tanto de um retorno à tradição, preconizado pelo maurrassismo anterior à guerra, quanto de uma contemporização com um regime republicano que, durante muito tempo, havia sido objeto de repúdio.

Para coroar essa crise de historicidade, a crença compartilhada amplamente, tanto à direita quanto à esquerda, em um progresso indefinido das forças produtivas veio esbarrar em uma realidade mais complexa com o fim dos Trente Glorieuses e a tomada de consciência quanto à ameaça pesando sobre o ecossistema planetário. Essa crise de historicidade, fenômeno que atinge todos os países, do Norte e do Sul, assumiu na França um caráter paroxístico, sem dúvida, associado a uma relação com a história particularmente intensa desde a Revolução Francesa.

Se foram, sobretudo, os filósofos alemães — Kant, Hegel, Marx — que atribuíram um sentido de finalidade à história no decorrer do século XIX, todas as especulações que visavam a divinizar a sua marcha enraiza ram-se em uma reflexão sobre a dimensão universal da Grande Revolução e de seus valores, com a seguinte consequência: a nação francesa é, por essência, depositária da capacidade para encarnar a história. Basta pensar em Michelet que considerava o povo francês como a pedra filosofal que confere sentido ao passado e prepara o futuro, ou em Ernest Lavisse,  para quem a pátria francesa é portadora de uma missão universal. Essa convicção, vigente em numerosos historiadores franceses do século XIX, perpetuou-se, no século seguinte, naquilo que o general De Gaulle designou como “une certaine idée de la France”.

No decorrer da segunda metade do século XX, essa visão da França como “filha primogênita da história” desmoronou-se por etapas. Traumatizado pelo desastre de 1940, enfraquecido por quatro anos de Ocupação pelas tropas nazistas e pela perda de sua independência econômica, além de ter sido amputado de seu império colonial, o país despencou à categoria de nação modesta, mais ou menos reduzida ao Hexágono – configuração do território francês no continente europeu – e limitando-se a tocar uma partitura de menor alcance no concerto das nações, dominado de maneira duradoura pelo confronto entre as duas superpotências. Não é de admirar que esse desmoronamento tenha afetado, em primeiro lugar, os intelectuais neste “país que ama as ideias”, para retomar a expressão forjada pelo historiador britânico Sudhir Hazareesingh. A renúncia da França à sua grandeza de antanho exacerbou, certamente, a crise de historicidade geral da segunda metade do século XX, atiçando uma relação intensa com a história, nem que fosse ao preço da negação dos fatos.

1.

O percurso reconstituído aqui inscreve-se entre dois momentos: a irrupção e, em seguida, o desaparecimento do intelectual profético. Tendo aparecido no período do imediato pós-guerra, essa figura é carregada pela  geração que atravessou a tragédia acalentando a expectativa de reencantar  a história. Como sublinha René Char, em um célebre aforismo: “Nossa herança não foi precedida por nenhum testamento”. Este poeta, resistente à Ocupação nazista, pretende afirmar que, ao sair da guerra – considerando que o legado havia perdido toda a legibilidade –, foi necessário voltar-se  para a construção do futuro. Independentemente de serem gaullistas, comunistas ou progressistas cristãos, todos têm a convicção de realizar ideais universalizáveis. Na outra extremidade do percurso, em 1989, constata-se o desaparecimento dessa figura do pensador advertido, capaz de dar um ponto de vista a respeito de tudo. Fala-se do “túmulo dos intelectuais”.

Nesta obra, reconstitui-se precisamente a história de tal obscurecimen to: não tanto o do ofício de intelectual, mas de determinada intelectualidade hegemônica. É significativo que, no exato momento em que essa figura desaparece, nos anos 1980, assiste-se à emergência da história dos intelectuais, abordados como objeto de estudo. Afinal, não é verdade que Michel de Certeau observa que, no momento em que desaparece a cultura popular, empreende-se o seu recenseamento e a sua historicização para que seja valorizada integralmente “a beleza do morto”?

A segunda grande mudança que marca esse período é o desaparecimento do sonho surgido no período do pós-guerra referente a um sistema global de inteligibilidade das sociedades humanas. Esse sonho conhece seu ponto culminante com o que se batizou como a “idade de ouro das ciências humanas”, nos decênios de 1960 e 1970, quando se verifica o domínio absoluto do estruturalismo. Tomado em sentido amplo, o termo “estrutura” funciona, então, como palavra-valise para uma grande parte das ciências humanas. Seu triunfo é a tal ponto espetacular que chega a se identificar com toda a vida intelectual e, até mesmo, muito para além dela. À pergunta sobre a estratégia a ser utilizada pela equipe de futebol da França para aperfeiçoar seu desempenho, o treinador responde que pretende organizar o jogo de maneira… “estruturalista”.

Período dominado pelo pensamento crítico, expressão de uma vontade emancipadora das incipientes ciências sociais em busca de legitimidade erudita e institucional, o estruturalismo acabou suscitando o entusiasmo coletivo da intelligentsia durante, no mínimo, duas décadas. Até que, subitamente, à beira dos anos 1980, verifica-se o desabamento do edifício:  a maioria dos heróis franceses dessa aventura intelectual desaparece no intervalo de alguns anos. Aproveitando o embalo, a nova era se apressa a enterrar a obra desses autores, evitando o trabalho de luto necessário para fazer justiça àquilo que terá sido um dos períodos mais fecundos da história intelectual francesa. Milagre ou miragem?

Desempenhando um papel de cruzador de fronteiras a serviço de um  programa unitário, o estruturalismo havia reunido um grande número de nomes de todos os quadrantes em torno de seu credo. Para Michel Foucault, “ele não é um método novo, mas a consciência acordada e inquieta do saber moderno”. Segundo Jacques Derrida, trata-se de uma “aventura do olhar”. Roland Barthes, por sua vez, vai considerá-lo como a passagem da consciência simbólica para a consciência paradigmática, ou seja, o advento da consciência do paradoxo.

Nesta obra, trata-se de um movimento do pensamento, por um lado, e, por outro, de uma relação com o mundo muito mais amplos do que uma simples metodologia aplicada  a este ou aquele campo de investigação. O estruturalismo apresenta-se como uma grade de leitura que privilegia o signo à custa do sentido, o espaço à custa do tempo, o objeto à custa do sujeito, a relação à custa do conteúdo, a cultura à custa da natureza.

Em primeiro lugar, ele opera como o paradigma de uma filosofia da suspeita e do desvelamento que visa desmitificar a doxa, revelando, por trás do dizer, a expressão da má-fé. Essa estratégia do desvelamento encontra-se em perfeita sintonia com a tradição epistemológica francesa, a qual postula um corte entre competência científica e senso comum. Sob o  discurso libertador do Iluminismo revela-se a chamada à razão dos corpos e o confinamento do corpo social na lógica infernal do saber e do poder. Roland Barthes declara: “Recuso profundamente a minha civilização, até  a náusea”. Por sua vez, o ensaio de Claude Lévi-Strauss O homem nu  (1971) termina com a palavra “Rien” [nada], em maiúsculas, à maneira  de réquiem.

2.

Nessas duas décadas de 1950 e 1960, os intelectuais franceses renunciam ao centralismo do Ocidente, descobrindo com entusiasmo as sociedades ameríndias, graças a Claude Lévi-Strauss. A irrupção do pensamento selvagem no âmago do Ocidente contribui para o abandono da concepção estreitamente evolucionista do modelo de sociedade ocidental. Lévi-Strauss rompe com essa visão em seu texto Raça e história, publicado em 1952, abrindo-se para uma consciência mais espacial que temporal da marcha da humanidade. A globalização, com os seus efeitos de desterritorialização, acentuará ainda esse reviramento para a espacialidade e para o presente, culminando em um tempo mundial “menos dependente da obsessão das origens, mais marcado pela transversalidade e, portanto, mais orientado para os períodos recentes”.

Ao mesmo tempo, a França debateu-se, entre 1954 e 1962, com uma  guerra que não se atreve a dizer o seu nome – a Guerra da Argélia –,  a qual irá assumir aspectos de batalha da escrita do lado da metrópole colonial: assim é que as tomadas de posição dos intelectuais são tanto mais solicitadas na medida em que o conflito adota, já em 1957, o caráter de  um escândalo moral com a descoberta da prática da tortura, em nome da França. Daí em diante, o confronto ocorre claramente em duas frentes:  militar, no terreno argelino, e intelectual, no campo da escrita com índole moral, na metrópole.

A segunda dimensão do paradigma estruturalista consiste na influência preponderante exercida pela filosofia sobre as três grandes ciências humanas – a saber, a linguística geral, encarnada por Roland Barthes;  a antropologia, com Claude Lévi-Strauss; e a psicanálise, com Jacques Lacan –, as quais compartilham a valorização do inconsciente como lu gar do verdadeiro. O estruturalismo apresenta-se como terceiro discurso, entre ciência e literatura, procurando institucionalizar-se ao socializar-se e contornar o pólo da velha Sorbonne por toda espécie de expedientes, desde as universidades periféricas, a edição e a imprensa, até uma instituição tão venerável quanto o Collège de France: a partir de então, esse estabelecimento serve como espaço de refúgio para a pesquisa de ponta.

Esses anos são testemunhas de uma batalha acirrada entre os Antigos e os Modernos, na qual se operam rupturas em vários níveis. As ciências sociais procuram romper o cordão umbilical que as liga à filosofia ao erigirem a eficácia de um método científico. Em contrapartida, alguns filósofos, compreendendo a importância desses trabalhos, tentam açambarcá-los e seu proveito, redefinindo a função da filosofia como o próprio lugar do conceito. Uma das especificidades desse momento reside na intensidade da circulação interdisciplinar entre campos do saber e entre autores. Desencadeia-se uma verdadeira economia de intercâmbios intelectuais, baseada em incorporações, traduções e transformações dos operadores conceituais. A expectativa relativamente a um saber unitário sobre o indivíduo engendra numerosas descobertas que erigem, ao mais elevado grau, a fé na capacidade dos intelectuais em elucidar o funcionamento do vínculo social em qualquer ponto do globo. No entanto, será necessário desencantar e desconstruir, aos poucos, um programa cujo cientificismo ignorou praticamente o sujeito humano singular.

3.

A terceira grande mudança que afeta o lugar dos intelectuais na sociedade francesa entre 1945 e 1989 tem como origem a massificação das respectivas audiências e a sua midiatização cada vez mais acentuada. Uma concorrência acirrada trava-se entre os atores desse mercado crescente, que assiste ao aumento, de maneira exponencial, do número dos estudantes, incrementando no mesmo ímpeto um público leitor, daí em diante, ávido de atualidade literária e política. Os efetivos estudantis passam de 123 mil, em 1945, para 245 mil, em 1961; para 510 mil, em 1967; e para 811 mil, em 1975. Acompanhando esse movimento, o número de docentes na universidade é multiplicado por quatro, entre 1960 e 1973.

Duas décadas mais tarde, o sociólogo especialista da mídia Rémi Rieffel escreve que “o aumento da demanda conduz, naturalmente, os editores  a propor a esse público, ávido de conhecimento, obras a baixo preço e  facilmente acessíveis”. O lançamento do formato de livro de bolso traduz perfeitamente essa revolução do mercado editorial, que impulsiona o período áureo das ciências humanas.

Essa idade de ouro é válida também para a imprensa, em um momento em que o diário parisiense Le Monde desempenha a função de voz da França nos meios diplomáticos e em que os semanários moldam a opinião pública, tais como Le Nouvel Observateur, de Jean Daniel, ou L’Express, de Jean-Jacques Servan-Schreiber e Françoise Giroud. Nesse contexto de ampliação do público e de interpenetração crescente das esferas pública  e intelectual, a progressão espetacular dos meios de comunicação social modifica radicalmente o modo de intervenção dos intelectuais, relegando o trabalho de elucidação dos mecanismos sociais aos cenáculos eruditos  e servindo-se, por sua vez, de tribunas que privilegiam um pensamento  simples e mais facilmente inteligível.

O desenvolvimento da cultura e da mídia altera profundamente a relação com o tempo, dando a primazia  ao instantâneo e contribuindo para comprimir a espessura temporal. Alguns intelectuais não hesitam em deixar a quietude da cátedra e das bibliotecas para enfrentar os holofotes; resulta daí uma nova figura, sob o nome de “intelectual midiático”, de que os “novos filósofos” são, no fim dos anos 1970, a expressão mais espetacular.

Esse reinado do efêmero – e, muitas vezes, da insignificância – é denunciado por determinados intelectuais que pretendem preservar o espírito crítico do qual a sua função é tributária. Assim, Cornelius Castoriadis critica aqueles a quem atribui o qualificativo de “divertisseurs”, assim como a sucessão, cada vez mais rápida, de modas que, daí em diante, constituem o biótipo da vida intelectual: “Em vez de uma moda, a sucessão  das modas é o modo mediante o qual a época, em particular na França,  vive a sua relação com as ‘ideias’”.

4.

O reviramento do regime de historicidade que se verifica no decorrer  da segunda metade do século XX está marcado pela forclusão do futuro, pela dissipação dos projetos coletivos e pelo retraimento em um presente que se tornou imóvel, influenciado pela tirania da memória e pelo repisamento do passado. Um tempo desorientado tomou o lugar de um tempo devidamente balizado.

Como vimos, as datas que servem de moldura a nosso percurso  delimitam a queda dos dois grandes totalitarismos do século: o nazismo, em 1944-1945, e o comunismo, em 1989. É impressionante o contras te entre o sopro profético que impele o envolvimento apaixonado dos intelectuais no período imediato do pós-guerra, o senso penetrante da responsabilidade de que são incumbidos, além da desilusão generalizada que acaba por subjugá-los. Já vigorosamente abalados em 1956, eles são levados pelo ceticismo em 1989: ano vivenciado, por alguns, como um  luto impossível e, por outros, como um degelo libertador.

Entre esses dois momentos, são numerosas as rupturas que, à semelhança de outras tantas cadências, acabam fazendo com que o horizonte de expectativa se torne  opaco. Segundo as diversas gerações que se sucedem e a singularidade dos percursos de cada uma, determinados acontecimentos, mais que outros, constituem rupturas instauradoras que, aos poucos, alimentam o abalo da historicidade que redunda na anomia social e, às vezes, na afasia intelectual: os anos de 1956, 1968 e 1974 são alguns marcos que permitem compreender, em melhores condições, como se efetuou esse retraimento.

Para apreender sua evolução, convém precaver-se, por um lado, de qualquer reescrita da história à luz do que é possível saber a respeito do futuro, deixando de considerar a indeterminação dos atores; e, por outro, evitar a tentação de utilizar as categorias presentes como grades de leitura  do passado. O historiador britânico Tony Judt negligencia tais precauções ao estigmatizar os repetidos equívocos dos intelectuais franceses a partir de uma leitura teleológica de seus engajamentos entre 1944 e 1956.

Com efeito, é fácil demais reler esse segundo século XX à bitola da clivagem que, aos poucos, se impôs entre os defensores da democracia e os partidários de  um regime cujo caráter totalitário foi sendo descoberto gradualmente. Sem procurar, de modo algum, desculpar os desvios e os erros dos intelectuais  dessa época, nem por isso deixaremos de buscar compreender suas razões. Judt, por sua vez, recusa qualquer forma de explicação contextual que vise a entender esse entusiasmo francês pelo comunismo após a guerra, limitando-se a considerar tal postura como uma adesão global a uma perversão totalitária.

Desqualificando, além disso, como historicista e insuficiente qualquer abordagem que dê ênfase à situação da Libertação para esclarecer  o comportamento e as práticas, ele acredita encontrar neste período os “germes de nossa situação presente”. Se lhe dermos crédito, o contexto não passa de um cenário reduzido à insignificância; deste modo, a postura de Judt coincide com as teses do historiador israelense Zeev Sternhell, o qual atribui o qualificativo de fascista a qualquer busca de uma terceira  via entre capitalismo e bolchevismo nos anos anteriores à guerra.

Chegou-se a evocar, às vezes, uma singularidade da vida intelectual francesa por sua propensão à violência, à desmesura e, portanto, ao equívoco. Tal análise corre o risco de passar ao lado da negação da realidade de um grande número de intelectuais, durante esse longo período. A obcecação – às vezes voluntária – parece-nos ter como mola essencial a recusa a resignar-se a ficar sem a escatologia em um mundo moderno que se tornou pós-religioso por uma espécie de transferência de religiosidade para a história que, supostamente, promete, por falta de salvação individual, uma salvação coletiva. Para apreender esses evitamentos do real, convém  levar os atores a sério e prestar uma atenção vigilante ao contexto de seus  enunciados.

Parece-nos que, neste ponto, a noção de “momento intelectual” é  essencial tanto mais que a época atual é marcada pelo desbotamento da experiência histórica. Em uma situação em que temos a impressão de que o passado é trágico e o futuro, opaco, a utopia da transparência da comunicação torna o presente a única entrada possível na história. Desde  os anos 1980, a crise que resulta daí afeta todos os domínios do saber e da criação; segundo Olivier Mongin, diretor da revista Esprit, ela está em   ação no repúdio do que é a política, no retraimento identitário, na falta de inspiração da ficção romanesca, na substituição da imagem pelo visual  ou, ainda, na ocultação da informação em proveito da comunicação.

Os intelectuais reconciliam-se, progressivamente, com os valores democráticos ocidentais, considerados até então como mistificadores e puramente ideológicos. A ironia a respeito desses valores torna-se mais difícil, de tal modo que a desconstrução dos aparelhos democráticos deve  ser reconsiderada em relação à sua positividade. Privilegiar momentos diferentes exige o retorno aos contextos precisos das tomadas de posição e das controvérsias. A abordagem cronológica revela-se pertinente para conferir a determinadas “palavras-momentos” – que encarnam o espírito do tempo – a sua tonalidade específica. Passaremos assim, sucessivamente, no volume I, do pensamento existencialista inicial à tríade Marx, Nietzsche, Freud, a qual inaugura a era da suspeita; em seguida, no volume II, à tríade Montesquieu, Tocqueville, Aron — que inspira o momento liberal – e, por fim, à tríade Benjamin, Levinas, Ricœur, que marca o pensamento do mal.

*François Dosse é professor de História Contemporânea na Universitaire de Formation des Maîtres at Créteil. Autor, entre outros livros, de A história à prova do tempo: da história em migalhas ao resgate do sentido (Unesp).

Referência


François Dosse. A saga dos intelectuais franceses (1944-1989). Tradução: Guilherme João de Freitas Teixeira. São Paulo, Estação Liberdade, 2021, 704 págs.

Fonte:  https://aterraeredonda.com.br/a-saga-dos-intelectuais-franceses/?utm_term=2021-08-30&doing_wp_cron=1630346808.3542098999023437500000

domingo, 29 de agosto de 2021

Estamos cultivando relações descartáveis?

Betina Neves 29 de Agosto de 2021

 https://gamarevista.uol.com.br/wp-content/uploads/2021/08/s-obsolescencia-relacionamentos-grande.png

Vivemos tempos paradoxais nos quais o consumismo afetivo, exacerbado pelas ferramentas digitais, se mistura a antigas expectativas do amor romântico. O antídoto está na ética e na gentileza

Há quase 20 anos, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman cunhou o hoje amplamente difundido termo “amor líquido” para retratar o modo como estamos nos relacionando. Esse conceito de amor é pensado a partir da lógica dos bens de consumo: a relação só é preservada enquanto trouxer satisfação e utilidade instantânea, se não, é rapidamente substituída por outra. É um amor frágil que paira sob a eliminação imediatista e a ansiedade permanente e que dificilmente constrói relações duradouras.

Isso é reflexo da sociedade capitalista, que valoriza “o produto pronto para uso imediato, o prazer passageiro, resultados que não exijam esforços prolongados e receitas testadas, garantias de seguro total e devolução do dinheiro”, como ele diz no livro “Amor Líquido” (Zahar, 2003).

É provável que, se você se relacionou nos últimos tempos, tenha sentido pelo menos um gostinho do amor líquido: mais quantidade do que qualidade nos encontros, relações que terminam tão rápido quanto começam, pessoas que somem sem dar satisfação – comportamento chamado de ghosting.

Se tiver frequentado alguns dos aplicativos de paquera, cujo uso cresceu mesmo na pandemia, essa sensação pode ser ainda mais forte: para além de facilitadores de encontros – o que, é claro, em muitos casos vêm a calhar –, difícil dissociá-los de um cardápio de gente, controlados por algoritmos de motivação e funcionamento obscuro, com promessa constante de infinitas possibilidades amorosas. Conversas que não saem do “oi, tudo bem?”, convites para transar sem nem perguntar o nome e fotos de “nudes” indesejadas são comuns. Como observou outra socióloga, a franco-israelense Eva Illouz, “sob a égide da liberdade sexual, as relações tomaram a forma de um mercado, mediado por espaços de consumo e uso de tecnologias.”

“Os aplicativos quase que dão permissão para jogar o outro no lixo, dar ‘unmatch’ na hora que quiser, sumir quanto aquilo não te interessar mais. É mais fácil e seguro fazer isso por trás das telas”, diz o escritor e psicoterapeuta Emanuel Aragão, que mantém com a esposa, a atriz Maria Flor, o canal no Youtube “Flor e Manu”, no qual falam sobre as dores e as delícias dos relacionamentos amorosos.

O que nos desagrada, a gente ‘arrasta o dedo para a esquerda’ e descarta

Para Aragão, as ferramentas digitais no geral têm ainda outro efeito: o de exacerbar o individualismo e a impressão de que o mundo gira em torno no nosso umbigo, diminuindo nossa resistência à frustração. “A mágica do algoritmo cria um universo customizado só para você, em que só as suas preferências te rondam. E aí nosso ego vai ficando maior, e vamos ficando menos dispostos a lidar com o outro, nos colocando quase numa posição infantil. O que nos desagrada, a gente ‘arrasta o dedo para a esquerda’ e descarta.”

Na comunidade LGBTQI+, a sensação de descarte também acontece, permeada pelo recorte social. “O afeto LGBT foi historicamente colocado em um lugar proibido, que tem que ser feito às escondidas. E acabamos internalizando isso de alguma forma – muitas pessoas não conseguem nem acessar esse outro lado e ficam só na coisa do prazer físico. E aí, até pelos locais de encontro mais restritos, isso acaba indiretamente incentivando relações superficiais e objetificadas”, diz Hamilton Kida, psicólogo clínico e sócio-fundador da Rainbow Psicologia.

A ilusão do amor romântico, sempre ela

Em episódio da série “Master of None” (2015-2021), da Netflix, o protagonista, vivido pelo comediante americano Aziz Ansari, satiriza a lógica de encontros em aplicativos. Ele manda a mesma mensagem para diversas mulheres e vai com todas ao mesmo restaurante. Entre conversas melhores e piores e situações mais ou menos constrangedoras, ele flagra uma delas usando o aplicativo na mesa, na frente dele, programando um encontro para mais tarde. No fim, ele deita no sofá, frustrado, e abre novamente o aplicativo para recomeçar a busca (a saber: já existe até um termo para a exaustão no uso dessas ferramentas: “dating burnout”).

A situação retratada por Ansari mostra um pouco do paradoxo que vivemos: por um lado, ansiamos por conexões reais e encontros significativos, nos propondo a buscas incessantes. Por outro, queremos que o outro venha pronto, totalmente compatível conosco, e temos pouca paciência para negociar as diferenças e enfrentar as frustrações inerentes a esse processo.

Para a psicóloga clínica Lígia Baruch, doutora pela PUC (SP) e coautora do livro “Tinderellas: O amor na era digital” (Ema, 2019), parte da questão ainda vem das idealizações do amor romântico, reforçadas há mais de cem anos por filmes, novelas, músicas e na publicidade. Essa lógica apregoa que, entre outras coisas, em uma relação, todas as necessidades devem ser atendidas pelo outro, que nosso “vazio” será totalmente “completo” assim, e que o encontro do amor é a solução para todas as agruras da vida.

Antigamente, as relações duravam mais, mas isso tinha um preço, e quem normalmente pagava eram as mulheres. Os homens tinham amantes, outras famílias

“A gente mistura essa ideia equivocada de amor, segundo a qual se espera que as relações se encaixem sem atritos e sem dificuldades, e junta com a pressa e o imediatismo da sociedade de consumo, focada em resultados, em que as pessoas se vendem e querem consumir o outro. Isso dá um caldeirão complicado.” A psicóloga lembra também que há um lado positivo em se poder entrar e sair de relações com mais facilidade. “Antigamente, as relações duravam mais, mas isso tinha um preço, e quem normalmente pagava eram as mulheres. Os homens tinham amantes, outras famílias.”

A escritora carioca Laura Pires, focada em relações afetivas, fala em seu perfil do Instagram sobre como os rótulos dos relacionamentos reforçam a descartabilidade. Para ela, é problemático o fato de dividirmos as relações entre “sérias” e “casuais”, sendo que só dedicamos compromisso e intimidade para as sérias, enquanto as outras a gente vai experimentando (e descartando) até encontrar a “pessoa especial”.

“O discurso hegemônico do amor monogâmico reforça um descarte e até um descaso com relações consideradas casuais e coloca muito peso nas consideradas ‘especiais’. E isso também gera medo de compromisso, relações codependentes e até sofrimento extremo diante de términos”, considera. “Seria muito melhor a gente olhar para cada um como um vínculo afetivo único e encarar a coisa conforme ela vai acontecendo em vez de ficar constantemente avaliando e pesando se aquilo ali vai virar alguma coisa, e que coisa vai virar. É muita pressão.”

A tal responsabilidade afetiva

Os caminhos para transformar a situação envolvem uma tomada de consciência individual e coletiva sobre o cenário atual. Isso passa por conhecer as próprias vontades, dores e construções sobre o amor, até para entender o que vem de dentro e o que é influência da cultura e do sistema. O psicoterapeuta Emanuel Aragão propõe esse processo para quem o assiste no Youtube: “Ali a gente tenta abrir um espaço de pensamento e percepção para ajudar as pessoas a entenderem as próprias necessidades, porque muitas vezes elas ficam em uma busca automatizada e não sabem nem pelo que e porquê”, conta.

Junto com as transformações da era digital, estamos vivendo a transformação da intimidade, o que traz medos e inseguranças

Já a psicóloga Lígia Baruch lembra que estamos em tempos de experimentar novas formas de amar, fora da monogamia, por exemplo. “Junto com as transformações da era digital, estamos vivendo a transformação da intimidade, o que traz medos e inseguranças também. Estamos desenhando mapas novos para viver o amor.

Enquanto isso, ela recomenda “entender que jogo que estamos jogando” ao nos colocarmos em aplicativos de paquera, por exemplo, com atenção redobrada tanto para os mecanismos propostos ali quanto para como tratamos o outro e como estamos sendo tratados. O termo “responsabilidade afetiva” vem sendo usado para falar desse comportamento mais consciente em relação ao outro, mesmo em contatos breves. É agir com honestidade e comunicação não-violenta, tomando cuidado com as expectativas que se cria – ainda que isso não esteja totalmente no nosso controle.

Podemos ter mais ética, gentileza. Deixar no vazio pode ser mais devastador do que frustrar com uma explicação da situação

“Nossos quereres são complexos e mutáveis, mas podemos sim nos educar para uma maior atenção com o outro, com mais ética, gentileza e coerência. Deixar alguém no vazio é as vezes muito mais devastador do que frustrar com uma frase que explique a situação.”

Fonte: https://gamarevista.uol.com.br/semana/o-que-e-descartavel/relacoes-afetivas-descartaveis/?utm_medium=Email&utm_source=NLSemana&utm_campaign=SemanaGama

‘O modelo de capitalismo que desenvolvemos é essencialmente desumano’

Leonardo Neiva 29 de Agosto de 2021

 https://gamarevista.uol.com.br/wp-content/uploads/2021/08/s-obsolescencia-entrevista-destaque4.jpg 

Getty Images / Thiago Quadros

Especialista em obsolescência programada, o escritor canadense Giles Slade fala do capitalismo baseado no consumo repetitivo e da perda de direitos sobre o que compramos

Na cidade de Livermore, Califórnia, uma lâmpada vem iluminando a sede do corpo de bombeiros local há 120 anos. O fato é considerado tão impressionante, num mundo de lâmpadas que se queimam em menos de um ano de uso, que o lugar virou até ponto turístico. Num site dedicado ao curioso objeto, é possível inclusive acompanhar sua trajetória em tempo real — vai que você dá sorte, ou azar, de captar o momento histórico em que ele finalmente vai se apagar.

Mais interessado na regra que na exceção, no entanto, o jornalista, escritor e crítico social canadense Giles Slade publicou em 2006 o premiado livro “Made to Break” (feito para quebrar), um dos principais relatos contemporâneos sobre o fenômeno da obsolescência programada. Em linhas gerais, trata-se da estratégia usada por diversas indústrias — mas que é mais latente na área de tecnologia — de criar produtos com um prazo de validade planejado, como forma de garantir que o consumidor terá que retornar para comprar novamente.

Em sua obra, Giles, que é doutor em história cultural, explora desde as raízes bem americanas desse projeto de mercado, que nasceu em produtos como tampas de garrafa, aparelhos de barbear e carros da GM, até seu desenvolvimento ao longo do século 20, desembocando em questões diversas, como a produção de lixo eletrônico em massa e o esfriamento das relações humanas.

Seu interesse pelo tema despertou depois de passar um período lecionando cultura americana em universidades da Ásia e Oriente Médio, tendo voltado para o Canadá após os eventos que se seguiram ao 11 de Setembro. “Você entra numa loja e te empurram todo tipo de coisa. Numa locadora, tentavam te vender uma carteirinha de sócio ou alugar dez filmes em vez de um só.”

Numa sociedade feita para o consumo rápido e imediato, em que durabilidade não é do interesse de ninguém, não espanta a curiosidade despertada por uma simples lâmpada incandescente. Além do fascínio pelo objeto em si, ela demonstra que outros produtos também poderiam ser feitos para durar uma vida inteira. “Na União Soviética, o problema não era produção nem consumo, porque todo mundo queria o que a indústria estatal produzisse. […] Se você tiver um refrigerador soviético, ele vai durar para sempre”, aponta o jornalista.

Em entrevista a Gama, Giles fala sobre como empresas como a Apple têm usado a estratégia para ampliar seus negócios e seus lucros. Também aborda o direito de consertar um produto, algo que vem sendo tirado dos consumidores, além da crescente produção de lixo no mundo e o distanciamento causado pela tecnologia.

Nossos relacionamentos interpessoais têm refletido essa relação com as coisas. As próprias pessoas se tornaram mais descartáveis

  • G |Por que as empresas não criam coisas que durem? Isso quebraria nossa economia, como parece ser o pensamento corrente?

    Giles Slade |

    Vivemos um modelo de capitalismo baseado no consumo repetitivo. Movemos as engrenagens da indústria ao continuamente produzirmos coisas novas. Os fabricantes enxergam isso como uma forma de ficar muito ricos, fazendo crescer seu poder, influência e seus recursos econômicos e fiscais. Obviamente, é muito fácil criar uma máquina que perdure. O Mars Rover [veículo explorador de Marte], por exemplo, foi pensado para durar três anos. Mas, como não sabiam quais seriam as condições da superfície de Marte, estenderam esse período de forma tremenda. Ele já existe há 20 anos e continua andando. Na União Soviética, o problema não era produção nem consumo, porque todo mundo queria o que a indústria estatal produzisse. Eles não tinham como ampliar suas fábricas para competir com o capitalismo. Se você tiver um refrigerador soviético, ele vai durar para sempre. No Ocidente, a marca registrada de um produto de luxo é que ele dura muito tempo. Coisas como relógios Rolex e carros da Mercedes. Também supostamente a Apple, mas, apesar de você pagar mais pelos produtos, a marca, de forma muito inteligente, vai lá e limita seu aparelho para que seja forçado a comprar um novo. É uma política deliberada e está presente em todos os aspectos da Apple. É como um vício. Eles não vão te dizer como parar de comprar, não faria sentido. E é exatamente assim que a indústria funciona, especialmente a de tecnologia.

  • G |No seu livro “Made to Break”, você explora a evolução da obsolescência programada ao longo do século 20. Quando diria que ela começou a ser aplicada pela indústria?

    GS |

    É uma estratégia econômica que ganhou importância na virada do século 19 para o 20, com produtos como tampas de garrafas de Coca-Cola e aparelhos de barbear descartáveis. A ideia era criar produtos que precisassem ser eternamente substituídos. Essa mudança foi possível porque aconteceu uma revolução no tipo de materiais que eram usados. De repente, papel, estanho e aço se tornaram muito mais baratos, porque ficaram mais fáceis de processar. Acabei de voltar de Cuba, que nos oferece uma perspectiva bem interessante do problema, porque o embargo americano bloqueou o país para a maioria dos mercados do mundo. Não existem novos materiais, carros ou celulares. As pessoas precisam se virar com o que já têm. Os cubanos são muito resilientes e inteligentes ao reciclar tudo, incluindo sua maldita revolução. Voltei para o Canadá um mês atrás e me senti sobrecarregado com todas as opções de consumo. O mercado tem tantos celulares que não sou mais capaz de diferenciar um do outro. A Apple está usando sua posição de poder, influência e monopólio para criar novas formas de lucrar. Então, se o aparelho que você compra custa US$ 1,2 mil dólares, eles ganham US$ 500 em cima disso. Antigamente, você comprava um produto e era seu, podia fazer o que quisesse com ele. Hoje, as marcas enxergam como uma oportunidade de controlar a receita em um pós-mercado. Por isso, o direito de consertar é uma questão tão vital para eles, e é por isso que gastam tanto dinheiro tentando derrubá-la no mundo inteiro.

O jornalista e escritor Giles Slade
O jornalista e escritor Giles Slade Foto: Acervo pessoal | Arte: Thiago Quadros
  • G |Que impacto essa estratégia de mercado vem causando no mundo?

    GS |

    Esse impacto acontece em muitas frentes. Nosso fascínio por tecnologia pessoal tem raízes no período em que as pessoas deixaram a Europa e outras partes do planeta e vieram para o Novo Mundo. Cartas, cartões-postais, telefones, gravações, fotografias são coisas que foram permitindo que as pessoas mantivessem contato com seus parentes e entes queridos que moram longe. Só que acabamos desenvolvendo um fascínio e uma dependência desses objetos, a ponto de usá-los como substitutos para interações humanas reais. Como descobrimos neste último ano, com a covid-19, são substitutos vazios. Não liberam no cérebro os mesmos feromônios que a comunicação cara a cara. Acredito que isso tenha nos tornado mais solitários. Ainda que sejamos consumidores que deveriam ser temidos por grandes corporações, elas podem formar monopólios e influenciar até a legislação que precisamos obedecer. Isso desgastou nossa liberdade e também nossas interações sociais. Hoje, as pessoas preferem mandar um texto ou ligar, porque encontros físicos são vistos como mais frágeis e perigosos do que eram no passado. A pandemia fez as pessoas entenderem que nenhuma soma de dinheiro significa conforto, o que elas precisam é de gente ao redor delas. Então essa é também uma grande oportunidade.

  • G |Quais estratégias as empresas usam para impedir que os consumidores consertem seus aparelhos?

    GS |

    O próprio sistema operacional impede interferências. Por isso, uma das principais reivindicações do movimento pelo direito de consertar é o acesso aos manuais e códigos do sistema, assim como aos componentes. A empresa pode argumentar que qualquer provedor de serviço independente é capaz de consertar seu telefone. Mas, infelizmente, só um técnico treinado pela Apple pode realmente efetuar o reparo necessário. Eles obstruem esse movimento porque querem toda a receita pelo conserto de seus aparelhos que, após um certo ponto, são programados para funcionar de forma piorada. Em 2017, houve um processo nos EUA contra a Apple por seu novo sistema iOS. O iPhone 6 deliberadamente ficava mais devagar para encorajar as pessoas a comprarem novos produtos. Essa estratégia obscura acontece em toda a indústria.

  • G |Você acredita que o movimento pelo direito de consertar deve mudar esse cenário?

    GS |

    Já está acontecendo. No Brasil, a Apple foi processada porque o novo sistema operacional do iPad 4 torna o anterior obsoleto. No ano anterior, fizeram uma campanha de marketing tremenda para vender todos os iPad 3. Só que, é claro, eles não funcionavam tão bem porque o sistema operacional era para o iPad 4. É algo brilhantemente cínico.

A perda das preocupações sociais nos deixou com uma cultura vazia, materialista, na qual substituímos a felicidade genuína por objetos

  • G |Por que esse problema fica tão evidente no caso da Apple? E como isso nos afeta?

    GS |

    Para começar, não acho que haja nada inerentemente superior em relação a um iPhone hoje. Aparelhos Samsung são tão bons quanto eles. A Samsung aplica o mesmo tipo de política que a Apple, também não querem que você entre nos dispositivos deles. Apesar disso, mais pessoas consertam Samsungs de forma independente do que iPhones. A Apple desenvolveu um parafuso que você não consegue abrir com uma chave de fenda comum. Precisa comprar uma ferramenta especial só para abrir o dispositivo. Programas de fidelidade, obsolescência programada de moda e tecnologia, todas essas coisas incentivam o consumidor a não manter seus produtos, mas sim comprar novos. E nossos relacionamentos interpessoais têm refletido essa relação com as coisas. As próprias pessoas se tornaram mais descartáveis por causa disso. Se um amigo te causa problemas demais, você larga ele ou deixa de responder e arranja outro. Não é algo que acontecia no passado. Nós mudamos, nos tornamos muito mais temporais e temporários.

  • G |A sociedade sempre esteve ciente da existência da obsolescência programada? Ou isso é algo recente?

    GS |

    Durante a Grande Depressão, quando as pessoas tinham muito menos dinheiro para gastar, a prática chegou a ser investigada. Mas nos anos 1930, 1940 e 1950, empresas como a General Motors vendiam isso como uma coisa incrível, porque você tinha um produto melhorado todo ano. Um importante livro americano sobre o assunto foi publicado na década de 1960, e as pessoas ficaram ultrajadas. É algo que sempre aconteceu, a mesma coisa que colocar água no vinho. São todas formas de enganar o consumidor. Pode parecer moralista, mas é uma questão moral: que responsabilidade o fabricante tem com você? E que responsabilidade você tem com a marca, uma vez que já pagou pelo produto? Se eu paguei por algo, aquilo é meu, posso fazer o que quiser com ele. A Apple, a Samsung, a Microsoft e várias empresas não pensam da mesma forma. Elas querem mudar o princípio fundamental da propriedade. É a isso que temos que resistir. Porque, assim como a propriedade, o direito à privacidade também pode virar uma questão.

  • G |Como sua preocupação com esse problema começou?

    GS |

    Eu estava dando aulas na Arábia Saudita e, quando voltei para a cultura de consumismo do Canadá nos anos 1990, isso realmente me atingiu. Você entra numa loja e te empurram todo tipo de coisa. Numa locadora, tentavam te vender uma carteirinha de sócio ou alugar dez filmes em vez de um só. No restaurante: você quer fazer disso uma refeição completa? Batatas para acompanhar? Algo para beber? E não era só porque estavam tentando ampliar o lucro, mas também porque não eram interações sociais de verdade, mas uma troca econômica. Isso realmente me irritou, porque na Arábia, assim como em países latinos, quando você compra algo, existe uma interação social muito mais calorosa. Você pode realmente desenvolver uma relação com o vendedor. Isso não acontece na América do Norte, onde você não passa de uma engrenagem no motor. Foi aí que comecei a pensar que nossa atitude sobre coisas materiais afeta nossas relações interpessoais. A perda dessas preocupações sociais nos deixou com uma cultura vazia, materialista, na qual substituímos a felicidade genuína por objetos. Isso também tem a ver com os vícios e outros problemas psicológicos, com nossa profunda insatisfação e a violência social.

Getty Images / Thiago Quadros
  • G |A questão da produção de lixo, que tem a ver com a obsolescência programada e se tornou ainda mais urgente na pandemia, deve entrar no foco das atenções?

    GS |

    Com certeza. Nós nos fixamos na imagem histórica da imunização individual porque não tínhamos sido atingidos por uma pandemia. São sete bilhões de pessoas no mundo, que precisam receber duas ou três doses de vacina em seringas descartáveis. Uma quantidade infernal de plástico. Isso sem contar todo o aparato cirúrgico que vai parar no oceano. Nós tínhamos a capacidade de fazer a imunização de forma intramuscular com um aplicador por gás. Existem muitos preconceitos históricos como esse, que causaram enormes desperdícios. Se formos pensar em componentes, por que não temos um smartphone que se desconstrói inteiro e é fácil de consertar? Tiveram essa ideia alguns anos atrás, mas o aparelho foi rapidamente comprado por outra empresa e simplesmente sumiu.

  • G |É possível lutar de alguma forma contra essa realidade, já que ela está tão integrada ao mercado e à sociedade?

    GS |

    O problema são essas poderosas corporações multinacionais como a Apple, que tem um lucro anual de US$ 300 bilhões, quase um terço do PIB do Brasil. Então imagine grandes empresas como a Apple, a Microsoft ou o Facebook. Por mais que um governo queira enfrentá-las, elas têm muito dinheiro e poder, além de influência política. É provável que, mesmo que percam ações em alguns casos, continuem fazendo o que fazem hoje, porque são tão poderosas que é muito difícil quebrar seu modelo de negócio atual.

  • G |Meu pai tinha uma tendência maior de querer consertar aparelhos digitais do que eu ou minha irmã. Para muita gente, se algo quebra, é hora de trocar. Como é possível mudar essa forma de pensar em toda uma sociedade que cresceu com ela?

    GS |

    O nível de satisfação que as pessoas recebem com uma nova compra tecnológica decaiu substancialmente. O remorso por consumir também tem batido mais forte e mais rapidamente. É vendido para nós que uma camisa branca, óculos de sol, um carro zero vão nos tornar pessoas melhores ou nos ajudar a conquistar uma mulher ou um homem. Existe toda aquela mitologia, mas, no final, não conseguimos nos satisfazer. Se pretendemos continuar sendo humanos, precisamos alterar radicalmente nosso sistema de valores. Senão, empresas como o Facebook vão intensificar essa estratégia, nos induzindo a comprar coisas sem que saibamos. A visão que a indústria tem sobre a humanidade é muito superficial, como se fôssemos um rebanho de ovelhas que precisa ser tosado periodicamente, mas não muito bem alimentado ou cuidado. O modelo de capitalismo que desenvolvemos é essencialmente desumano. Ele está nos destruindo, por causa de todo o lixo que despejamos sobre o planeta, mas também por razões espirituais difíceis de quantificar.

Não vivemos na natureza, mas da natureza. Para mudar, teria de haver uma revolução de valores, que só vai acontecer com um colapso social horrível

  • G |Nesse caso, o que dizer sobre esses cultos que rodeiam marcas como a Apple, com filas enormes na frente das lojas a cada novo lançamento?

    GS |

    Nós nos dissolvemos em tecnologia de forma injustificável. Olhamos para novas tecnologias como uma forma de salvar o futuro de problemas que a própria tecnologia criou. Pensamos que seremos capazes de limpar a atmosfera, produzir menos carbono ou retirar plástico do oceano, porque os investimentos aumentam a cada ano. Só que isso simplesmente não é verdade. Essa realidade está nos danificando e nos mudando. Nossa confiança nela é uma evidência profunda da nossa incapacidade de confiarmos uns nos outros. Preocupações fundamentalmente humanas foram despedaçadas. É uma sociedade muito ampla, com pessoas demais, e não é possível responder por todo mundo, mas também não somos encorajados a fazê-lo. Nosso capital social está sendo destruído.

  • G |Que futuro você gostaria e acha que é possível deixar para nossos filhos e netos?

    GS |

    Esse ethos de fazer avançar a indústria capitalista e a máquina de consumo hoje está causando incêndios, inundações, o aumento do nível do mar e o aquecimento global. Isso é resultado do desperdício e da falta de qualquer tipo de responsabilidade pelo lugar onde vivemos. Não vivemos na natureza, vivemos da natureza. Para isso mudar, teria de haver uma revolução de valores. Essa revolução só vai acontecer se houver um colapso social horrível. Essa possibilidade não me parece fora da realidade, especialmente depois desses últimos 16 meses. Algo semelhante à queda do Império Romano é possível, e pode acontecer mais rápido do que a gente imagina. Não quero falar sobre política, mas é só pensar no líder do seu país, que ignora todas as instituições e invariavelmente toma o caminho errado. Isso tem acontecido cada vez mais no mundo. Não estamos mais conectados uns aos outros porque não estamos conectados a nada. Nossa responsabilidade com o próximo é mínima neste momento.

  • G |É possível que, nesse caminho que tomamos, não haja mais volta?

    GS |

    Pessoalmente, acho que pode ser tarde demais. Mas parte do foco — além do movimento pelo direito de consertar, que é muito importante — deveria estar em limitar o poder desses monopólios globais, que nos forçam a ser locatários de seus produtos apesar de termos pagado por eles.

Procurada por Gama para comentar a entrevista, a Apple não respondeu até o fechamento da edição.

Fonte: https://gamarevista.uol.com.br/semana/o-que-e-descartavel/giles-slade-capitalismo-desumano/?utm_medium=Email&utm_source=NLSemana&utm_campaign=SemanaGama

¿Para qué sirve el sexo?

Javier Cercas

La literatura es antes que nada un placer, como el sexo, pero también es una forma de conocimiento, igual que el sexo

Hacia 1890, Oscar Wilde remató así el prefacio a El retrato de Dorian Gray: “Todo arte es completamente inútil”. La frase expresaba una doble rebelión, la misma que poco antes se había bautizado como “L’art pour l’art”: una rebelión contra el obsceno pragmatismo burgués triunfante en el siglo de la burguesía; una rebelión contra el sometimiento del arte a la religión, a las ideologías, a la política. La sentencia de Wilde equivalía en definitiva a un alegato emancipador: el arte debe ser autónomo, independiente, válido por sí mismo.

Por supuesto, es verdad. Pero eso no significa que el arte sea inútil; significa sólo que es inútil a los ojos del necio utilitarismo burgués que asfixiaba a Wilde y a sus contemporáneos (y que campa todavía por sus respetos entre nosotros). Lo cierto sin embargo es que, casi siglo y medio después de acuñada, la indispensable provocación del escritor irlandés se ha fosilizado en un dogma, como demuestra la práctica unanimidad con que el mundillo literario de nuestro tiempo, siempre tan dócil a los viejos clichés de la Modernidad, o tan sordo a sus ironías, rechaza con remilgos la idea de la utilidad de la literatura. Ahora bien, si enterramos de una vez por todas el inútil concepto burgués de utilidad, salta a la vista que la literatura es útil, como el arte en general. Siempre lo ha sido. Horacio sostiene famosamente en su Arte poética —el tratado literario más prestigioso en Occidente después de la Poética de Aristóteles— que la literatura debe ser “dulce et utile”: su misión consiste en “deleitar aprovechando”, por usar la fórmula de Tirso de Molina. Traducido a nuestros términos, esto significa una evidencia, y es que la literatura es antes que nada un placer, como el sexo, pero también es una forma de conocimiento, igual que el sexo; por eso, cuando alguien me dice que no le gusta leer, lo único que se me ocurre es lo mismo que si alguien me dijera que no le gusta el sexo: darle el pésame, acompañarle en el sentimiento. Dicho esto, ¿acaso hay algo más útil que el placer, o que el conocimiento (no digamos que el conocimiento placentero)? ¿Hay algo mejor que el sexo? ¡Quia!: si lo hubiera, se sabría. ¿Cómo es posible entonces que sigamos encastillados en la sandez de la inutilidad del arte? ¿Cómo es posible que repitamos en serio las bromas de Wilde y sus contemporáneos? ¿No nos da vergüenza seguir prisioneros del materialismo de vuelo gallináceo contra el que se insubordinó el heroísmo decimonónico de aquellos dandis del arte puro, que pagaron un precio altísimo por su insurrección? Es verdad que la utilidad de la literatura, o del arte en general, se asienta sobre una paradoja; ésta radica en que la literatura es útil siempre y cuando no se proponga ser útil: en cuanto se propone serlo, se convierte en propaganda o pedagogía, y deja de ser literatura, al menos literatura de verdad, y deja de ser útil. Pero, si la literatura se toma en serio a sí misma, si el escritor es fiel a sus obsesiones y cumple con su obligación y no tiene miedo y se arriesga a ir hasta el fondo de lo desconocido para encontrar lo nuevo —como escribió un coetáneo de Wilde: Charles Baudelaire—, entonces la literatura no sólo es placer y diversión, que es lo primero que debe ser, sino también purificación y conocimiento y autoconocimiento y rebeldía; igualmente, o sobre todo, una forma de vivir más, de una manera más rica, más compleja y más intensa. ¿Hay algo tan útil como eso?

En una serie de entrevistas publicadas por la editorial Reino de Redonda y tituladas León en el jardín, ­William Faulkner enumera algunas certezas que ya nadie parece recordar, y que sólo por eso merece la pena leer. Por ejemplo: “Quien se convierta en escritor, si quiere serlo bueno, tiene que ser de una integridad absoluta”. Faulkner afirma también que el escritor asume una gran responsabilidad: contar la verdad. No la verdad de la historia o la ciencia o el periodismo, sino una verdad moral, universal: “Por ‘verdad’ me refiero a las cosas que son ciertas para todos los pueblos, es decir, el amor, la amistad, el valor, el miedo, la codicia”. Otra vez: ¿hay algo más útil que eso?

Fonte: https://elpais.com/eps/2021-08-29/para-que-sirve-el-sexo.html?event_log=oklogin 

Chega de saudade

J.J. CAMARGO*

Aos professores e às professoras – um esboço da saudade – Jornal Pensar a  Educação em Pauta

Devíamos inventar uma vacina para aplacar a falta dos abraços. Porque a internet, ficou claro na pandemia, é placebo

Fui visitar o velho amigo que andava queixoso porque, segundo ele, não nos víamos há muito tempo. Querendo argumentar, disse que "como que não, se participamos de cinco lives no último mês?".

O olhar pareceu ainda mais triste quando ele respondeu: "Eu não vejo o que não posso tocar!". A interação virtual atenua mas não elimina a saudade que só se aplaca quando mantemos o ser querido apertado contra o peito, sem pressa de descolar.

Esse longo tempo em que imagem do monitor vem sendo a única forma de "contato humano" tem produzido uma subversão das nossas relações pessoais, com percepções diferentes. As pessoas menos afetivas se contentam com essa artificialidade, que se completa com a chatice do insosso "abração virtual", como se o toque, o cheiro e gosto não fossem os sentidos indispensáveis da relação entre seres amorosos.

Depois daquela introdução, pareceu natural que ficássemos de mãos dadas durante um tempo, e quando este gesto de carinho genuíno foi interrompido para segurar a xícara do cafezinho, ele tratou de bebê-lo rapidamente. A palma carente já estava de volta, porque a mãozinha eletrônica das plataformas é um recurso inanimado que ninguém conceberia que pudesse ser usado numa carícia elementar como um cafuné (ainda lembram o quanto era bom?).

Esta nova forma de contatar tem sido assumida com certa naturalidade pelos mais jovens, porque nessa idade são mais adaptáveis às circunstâncias. Ou porque, ao contrário dos velhinhos, nem viveram o suficiente para dar valor a um abraço, como fazem aqueles que ao longo da vida já abraçaram muito e descobriram que esta é a principal razão para termos sido concebidos com esses apêndices longos, sempre prontos a formarem uma concha.

Uma amiga querida me confessou que não sabe o que seria da vida dela sem o Skype que lhe permite conversar com a filha e ver a netinha crescer, nestes dois anos em que elas estão na Austrália. Fez a seguir uma descrição impressionante do efeito da saudade, gerando sintomas orgânicos que se acentuam durante a tarde, à espera do único momento solene de um dia inteiro.

Quando se aproxima o horário da chamada obrigatória, ela tem que se conter para parecer feliz e manter a filha animada com seu investimento profissional. Faz parte da introdução uma brincadeira em que ela "oferece um copo de suco" para a netinha, que sorri para o deslumbramento da vó. E então a confissão que me comoveu: "O que nenhuma das duas desconfia é que aquele suco gelado me ajuda a engolir a dor seca da ausência delas!".

Então resolvi descontrair: "Mas eu imagino que este contato, ainda que virtual, deva atenuar a tal pressão no peito que parece ser uma exclusividade dos avós!". O sorriso bonito continuava triste quando ela completou: "Claro que ajuda, porque eu vou me deitar em seguida, e a carinha sorridente da minha neta, se preparando para ir para a escola, alivia a minha dor na garganta e me afrouxa o choro".

Devíamos inventar uma vacina para a saudade, que ao menos minimizasse os efeitos. Porque a internet, ficou claro, é placebo.

Querer não é poder

LYA LUFT*

Querer não é poder

Eu tinha horror dessas frases cretinas que raramente funcionam: "Sobe na bicicleta, não precisa mais de rodinhas! Toma impulso e vai!".

Fiquei semanas com marcas do tombo homérico.

Algo parecido me ocorreria décadas depois na Grécia após um jantar maravilhoso à beira do mar. Era preciso entrar num minúsculo barquinho para chegar ao iate dos amigos. Protestei que nem pensar! Alguém repetiu a velha frase: "Toma impulso que vai!".

Cheguei no iate molhada dos pés à cabeça, dessa água que ali não era verde-cristalina. E ainda tendo de fingir que achava graça...

Esse momento da minha vida é um dos que mais me lembram disso: quero saltar da cama e correr pro banheiro? Só com andador, essa aranha metálica detestável e temporária, mas útil.

Quero passar uns dias lindos na casinha do Bosque em Gramado? Nem pensar, por enquanto.

Uma velha bruxa nada simpática nem engraçada me pegou debaixo do braço, e eu que me comporte.

Mas uma coisa eu posso: tentar ser otimista e confiante, curtir o amor que me rodeia, agradecer tantos cuidados.

Ah sim, apesar de alguns momentinhos menos doces, isso eu posso.

Mas vêm as trovoadas e a chuva: ótimo me aconchegar nas cobertas. Ler me cansa? Aprendo e curto coisas incríveis em ótimos programas de TV. E o Whats sempre transborda de recados de amizade, descobertas, vida.

Obrigada, vida.

*Escritora. 

Fonte:  https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/zh/acessivel/materia.jsp?cd=bad755d16779e6a2d21db044df2e12c8 - Imagem da Internet

‘Paulo Guedes se desmoralizou por completo’, diz Eduardo Giannetti

Luciana Dyniewicz, O Estado de S.Paulo 

Para economista, ministro não tem ‘firmeza’ para resistir ao ‘impulso populista’ do presidente Jair Bolsonaro

Paulo Guedes já se desmoralizou por completo e vai se desmoralizar ainda mais se continuar (atuando do modo atual)”, avalia Eduardo Giannetti. Segundo o economista, a presença de Guedes no governo não garante mais uma condução parcimoniosa da política fiscal. “Parece que o apego dele ao cargo é bem maior do que se imaginava e ele não teria grande restrição ou mesmo firmeza para resistir aos impulsos populistas do presidente.”

Giannetti destaca que não há “nenhuma perspectiva” de um crescimento econômico robusto no ano que vem, dado que as reformas prometidas por Guedes não foram feitas e o clima de incerteza política promovido pelo presidente Jair Bolsonaro afasta o investidor. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Houve uma mudança no humor do mercado neste mês. Isso se deve a fatores internos ou o cenário global também dificulta?

Predominantemente à deterioração da situação doméstica. Já está bastante claro que o governo não tem proposta sequer para as reformas tributária e administrativa. Quase não há mais perspectiva de que alguma coisa relevante aconteça. Estamos com um cenário de inflação preocupante, que tem obrigado o Banco Central a conduzir um aperto da política monetária. Isso vai frear o nível de atividade no ano que vem. Por fim, há uma ameaça cada vez mais concreta de uma guinada populista fiscal por parte do governo Jair Bolsonaro, à medida que ele fica acuado e que os hormônios eleitorais começam a funcionar de maneira mais exacerbada.

Como avalia a atuação do ministro Paulo Guedes diante desse cenário?

A presença do Paulo Guedes no Ministério da Economia, que até pouco tempo atrás parecia uma salvaguarda em relação a uma aventura fiscal, já não dá mais essa confiança. Parece que o apego dele ao cargo é bem maior do que se imaginava e ele não teria grande restrição ou mesmo firmeza para resistir – como aliás não tem resistido – aos impulsos populistas do presidente. As atitudes do presidente, aliás, não são novidade nenhuma, porque ele está mostrando o que sempre foi. Só quem acreditou nele foi o ministro quando aceitou entrar nessa aventura. Na época da campanha, eu dizia que os economistas podem ser mais ingênuos sobre a política do que os políticos são ingênuos sobre a economia. E isso o tempo está confirmando.

O ministro deveria deixar o governo ou ele ainda pode fazer alguma coisa?

O último resquício que talvez justificasse a presença dele no governo seria manter o mínimo de responsabilidade na política fiscal. Se ele continuar cedendo – como vem cedendo até aqui – a todas as pressões e exigências, que são crescentes, do governo e do Centrão em relação à política econômica, não vejo mais nenhum sentido. Aliás, já não vejo nenhum sentido na continuidade dele há um bom tempo. Ele já se desmoralizou por completo e vai se desmoralizar ainda mais se continuar.

Em algum momento o sr. viu comprometimento do ministro com a agenda liberal que ele propagou?

Ele dizia que ia zerar o déficit primário no primeiro ano do mandato, que ia privatizar R$ 1 trilhão, que ia fazer reforma tributária e reforma administrativa. Não fez nada disso. Foi quase tudo ao contrário. A privatização praticamente não andou. A aprovação da reforma da Previdência ocorreu muito mais por causa do protagonismo do Congresso. O que se montou no Brasil foi quase um estelionato eleitoral, e pode se chamar assim sem exagero. É lamentável que boa parte do empresariado, em nome de evitar Lula a qualquer preço, mais uma vez tenha embarcado em uma aventura que está custando muito caro para o Brasil e que põe em risco a nossa democracia. Não é a primeira vez que vejo esse enredo de que, contra Lula, vale qualquer coisa. Vimos isso na eleição do Collor também.

Recentemente, houve manifestações de empresários contra posicionamentos do presidente. Acha que o empresariado está desembarcando do governo?

Aí tem havido uma certa injustiça, porque os empresários minimamente lúcidos e informados nunca acreditaram nesse engodo chamado Jair Bolsonaro. Outra parte do empresariado que sempre foi chapa branca e oportunista, agora, muito tardiamente, está começando a se dar conta de que nós estamos indo por um caminho muito ruim e que estamos vivendo um enorme retrocesso nas mais diferentes dimensões, que vão da fiscal à ambiental, passando pelo crescimento econômico, pelo ambiente de negócios e praticamente por qualquer outro tema.

O presidente vem perdendo popularidade e querendo ampliar gastos para reverter essa tendência...

Esse ponto talvez valha a pena analisar um pouco. Você tem de um lado a questão da sobrevivência política de curto prazo, que levou Bolsonaro a ficar de joelhos em relação ao Centrão. De outro, tem os hormônios eleitorais e a questão de viabilizar uma campanha de reeleição em 2022. Essas duas forças convergem para uma guinada populista fiscal - a política já aconteceu há um bom tempo. O próximo capítulo é a tradução disso em ações de política econômica: gastos, cargos, preferências, favores que atendam às demandas crescentes desse grupo (o Centrão) que desde sempre faz o jogo da chantagem em relação ao Executivo.

Tenho usado um modelo de biologia política: você tem na estrutura do governo federal brasileiro uma relação entre hospedeiro e parasita. O Executivo federal é o hospedeiro, e o Congresso fisiológico é o parasita. Quando o Executivo é eleito e está com seu capital político intocado, o parasita fica adormecido. Quando há uma crise política e o Executivo começa a perder capital político, o parasita começa a mostrar vida e apresentar suas demandas. Quando o Executivo está acuado, o parasita manda. Ao fim do mandato, se inverteu aquela relação entre hospedeiro e parasita. Agora, um dos requisitos disso é que o parasita não pode matar o hospedeiro. Então, ele vai aumentando as demandas.

Estamos vendo essa dinâmica se repetir no Brasil desde o início da redemocratização. A pergunta para todos nós brasileiros que queremos aprimorar nossa democracia é como é que nós saímos disso para que não se repita novamente esse enredo que é terrível, porque a partir da segunda metade do mandato o Executivo passa a governar com o que a de mais fisiológico e sinistro na política brasileira.

Qual é a saída?

Tem de haver uma reforma política. Não dá para governar com um Congresso tão fragmentado. Nenhum sistema político vai funcionar se nós não tivermos uma estrutura partidária mais enxuta que permita ao Executivo federal governar com base em negociação, porque isso é parte da democracia, mas negociação de programa, e não negociação de troca de favores. Se a gente não tiver apenas quatro ou cinco partidos apenas no Congresso, com posições razoavelmente definidas em relação aos grandes temas da nação e isso não constituir uma base de sustentação programática, vamos ter um sistema político que já estava em xeque antes do descalabro representado pelo desafio institucional do Bolsonaro. 

Com o governo com a popularidade em baixa e em meio a uma pandemia, a campanha eleitoral foi antecipada? Qual o risco para a economia?

Esse panorama antecipa a campanha eleitoral e ameaça a ordem institucional da democracia brasileira por dois canais. Um é o enfrentamento entre Poderes. Se você tiver uma situação em que uma decisão de um poder soberano, o Judiciário ou o Legislativo, não for acatada pelo Executivo, você estará no meio de uma crise institucional gravíssima. E nós já caminhamos para a vizinhança de situações desse tipo. O outro canal é o desespero de um poder que está derretendo a olhos vistos levar o presidente a uma tentativa de excitar a opinião pública de modo a provocar uma situação muito anárquica e conflituosa, que lhe dê meios e legitimidade para algum tipo de Estado de emergência, para algum tipo de demanda de poderes extraordinários para estabelecer a ordem. É muito perigoso excitar uma população que está claramente polarizada, porque ela pode descambar para algum tipo de enfrentamento e descontrole da ordem pública, que cairia como uma luva para alguém que tem um impulso autoritário, que nem o esconde.

Qual cenário o sr. está vendo para a economia em 2022?

Não há nenhuma perspectiva de o País ter um crescimento satisfatório no ano que vem. O nível de investimento continua no piso histórico. A capacidade de investimento do setor público está comprometida. Não criamos um ambiente de negócios institucional para infraestrutura. Com essa incerteza política e econômica, nenhum empresário vai querer comprometer recursos em investimento de longo prazo. Então, a gente está caminhando para, depois de uma pequena recuperação cíclica (em 2021), um ano de crescimento baixo, que talvez mal alcance 2%.

E no panorama político?

O presidente já declarou que não aceita outro resultado que não seja sua vitória eleitoral. Ele questiona a legitimidade do sistema eleitoral de antemão, sem nenhuma evidência e não muito diferente do que Trump tentou fazer nos EUA quando, ao ser derrotado, entrou com aquele discurso de que a eleição tinha sido fraudada, sem nenhuma base ou evidência. Isso levou à invasão do Capitólio, e o que se desenha por aqui é um enredo não muito diferente. Espero que tenha o mesmo desfecho de lá.

Fonte: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,paulo-guedes-se-desmoralizou-por-completo-diz-eduardo-giannetti,70003824616

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Cinco ideias da Biologia que explicam a vida, segundo vencedor do Prêmio Nobel

 João Luiz Sampaio*

O QUE E A VIDA?: COMPREENDENDO A BIOLOGIA EM CINCO PASSOS - 1ªED.(2021) -  Paul Nurse - Livro

Aos 13 anos de idade, Paul Nurse encantou-se com uma borboleta. Amarela e trêmula, ele lembra, ela voava de um lado para o outro de uma cerca. Até que uma sombra a assustou, fazendo com que voasse para longe, em busca de refúgio.

Aos 52 anos, já um biólogo e geneticista reconhecido pelos seus pares, professor da Universidade de Oxford, Nurse recebeu o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina pela descoberta de moléculas de proteína que controlam a divisão, ou duplicação, de células.

Nos quase quarenta anos que separam o menino do profissional, Nurse colocou-se constantemente uma mesma pergunta: o que é a vida? E aquilo que descobriu está reunido no livro não por acaso batizado de O Que É a Vida? – Compreendendo a Biologia em Cinco Passos, agora lançado no Brasil pela editora Intrínseca em tradução de Livia de Almeida.

Os cinco passos referem-se ao que Nurse chama de “cinco grandes ideias da Biologia”: a célula, o gene, a evolução por seleção natural, a vida enquanto química e a vida enquanto informação. A ideia, ele explica, é “usá-las como passos que podemos dar, um de cada vez, para melhor percebermos o modo como a vida funciona”.

À primeira vista, pode soar como um tema de difícil compreensão – capaz de evocar as memórias nem sempre felizes das aulas e provas de Biologia na escola. Mas o livro se escreve como um romance, em que uma história nos é contada. No caso, a história de como, com o tempo, a compreensão sobre os seres vivos foi sendo desenvolvida e elaborada. De maneira ágil, Nurse passeia pela história, mostra o momento em que estamos e o que podemos esperar do futuro, tanto na pesquisa como em sua aplicação.

“Entender o que é um organismo vivo é entender o que somos. O que o livro propõe não é um estudo técnico, mas, sim, uma forma de compreensão do mundo”, conta ele. “Fatos são aprendidos a todo instante e essa lista fica cada vez maior. O importante, no contato com o público em geral, me parece ser buscar colocar todos esses fatos em contexto. Pois sem transformar a informação em princípios, em ideias mais amplas, perdemos o foco. E o contato com o público. Essa é uma área em que podemos melhorar muito”, completa.

Na entrevista a seguir, ele fala ao Estadão sobre a gênese do livro, lançado no ano passado na Inglaterra, o modo como ele ganhou sua forma final e sobre temas atuais, como a relativização do conhecimento científico e a desconfiança de certos grupos com relação a vacinas, evidente durante a pandemia.

Como surgiu a ideia de escrever este livro?

As livrarias estão cheias de livros de ciência destinados ao público em geral, resumindo e apresentando as grandes ideias da Física, como a Mecânica Quântica, por exemplo. Se na Física essa é uma prática comum, no campo da Biologia, isso não acontece. Isso se dá talvez pelo fato de que estamos sempre olhando para o futuro, pensando em como transformar a Medicina, por exemplo, especulando sobre possibilidades, sobre coisas que ainda não aconteceram, acreditando no poder do nosso campo de ajudar a construir esse futuro. Mas isso não significa que não devemos celebrar aquilo que nós já sabemos, o que já descobrimos, as ideias centrais sobre nosso funcionamento, e apresentá-las em conjunto.

O livro trata de questões técnicas específicas, mas, de alguma forma, pode ser lido como um romance, há uma história sendo contada, despertando a curiosidade. Em que medida essa foi uma preocupação durante a escrita?

É uma obrigação nossa tentar popularizar essas ideias, oferecendo um olhar diferente sobre a vida. Entender o que é um organismo vivo é entender o que somos. A Biologia é estudada nas escolas, e os leitores provavelmente vão reconhecer termos e palavras sobre os quais precisaram responder em provas e testes. Mas o que o livro propõe não é um estudo técnico, mas, sim, uma forma de compreensão do mundo.

Em diversos momentos do livro, a filosofia se faz bastante presente na narrativa. E as ideias de pensadores como Aristóteles, Humboldt e Kant se tornam importantes na compreensão da ciência da qual o senhor está tratando na obra.

A Biologia carrega um aspecto filosófico. Ela não é uma ilha e você se dá conta disso quando olha com clareza a filosofia básica das coisas. A presença de Immanuel Kant em um livro sobre Biologia pode gerar surpresa, claro, mas é possível pensar a ideia de uma filosofia moral no fato de estarmos vivos. Ter uma compreensão das ideias de Kant ou de vários outros pensadores importantes pode ser fundamental para qualquer biólogo.

O senhor mostra como a membrana externa delimita o que está dentro ou fora da célula, colocando uma ideia de limite e de como se dá a relação entre o indivíduo e o ambiente em que vive. Poderíamos encontrar nesse fato científico uma metáfora das próprias relações humanas, ou seja, daquilo que é individual e como ele colabora com o coletivo?

Seres vivos são marcados pela interação e essa interação ajuda a entender o que é a vida. A interação entre indivíduos da mesma espécie, nesse sentido, pode bem ser uma metáfora. Estamos falando da Sociobiologia, um campo que nos últimos quarenta anos tem pensado a natureza biológica do ser humano levando em consideração as relações humanas. E muitas das descobertas nesse sentido têm de fato múltiplas implicações.

No livro, o senhor chama atenção para a necessidade de entendermos a Biologia como um conjunto de ideias e não apenas de fatos. Por quê?

Isso é fundamental. Estamos afogados em dados, informações. E para mim essa é a importância desse livro. Não se trata de um livro técnico, que costuma ser uma lista de fatos. Pois fatos são aprendidos a todo instante e essa lista fica cada vez maior. O importante, no contato com o público em geral, me parece ser buscar colocar todos esses fatos em contexto, tratando de ideias mais amplas sobre a química da vida. Daquilo que é particular, dos detalhes, podemos partir em direção a contextos mais amplos, nos quais se torna mais fácil discutir princípios básicos da vida. Pois sem transformar a informação em princípios, em ideias mais amplas, perdemos o foco. E o contato com o público. Essa é uma área em que podemos melhorar muito.

O livro é, em certa medida, uma defesa da ciência como ponto de partida para transformações não apenas pessoais, mas também para questões como a preocupação com o ecossistema, por exemplo. Vivemos, porém, em uma época na qual a relativização do conhecimento científico é flagrante, desde a crença de que a Terra é plana até a certeza de que há, nas vacinas, pequenos chips que permitirão o controle das pessoas que forem vacinadas. O que fizemos para chegar a esse ponto?

A humanidade sempre pode ser um pouco estranha. O Iluminismo e a idade da razão, claro, mudaram um pouco as coisas, permitindo que as pessoas buscassem e entendessem a natureza do mundo. E, em geral, seguimos nesse caminho. Mas sempre haverá a loucura de algumas pessoas. Isso, acredito, não é novo. Mas as redes sociais acabaram colocando essas pessoas em contato umas com as outras e isso fez delas uma força. E precisamos estar atentos a isso. O exemplo do chip do qual você me conta me parece impressionante, e há muitas outras teorias absurdas. E o caso das vacinas é interessante, porque em outros momentos da história também houve questionamento a elas. Enfim, não estaremos livres dos aspectos mais ridículos da natureza humana. Mas é preciso que continuemos a informar, a dar segurança às pessoas, da forma mais educada possível, e com paciência, para não amplificar ainda mais aquilo que é irracional.

Leia um trecho de 'O que é a Vida?'

“A partir de uma perspectiva mais ampla sobre a vida, desenvolve-se uma visão mais rica do mundo vivo. A vida na terra pertence a um único ecossistema, imensamente interligado, que incorpora todos os seres vivos.

Tal conexão fundamental vem não apenas da profunda interdependência, mas também do fato de que toda a vida é geneticamente relacionada por raízes evolutivas compartilhadas. Essa perspectiva de uma relação profunda e interligada é defendida há muito tempo pelos ecologistas. Tem sua origem no pensamento do explorador e naturalista do século XIX Alexander von Humboldt, que defendia que toda vida é ligada por uma teia holística de conexões. Por mais inesperada que seja, essa teia é central à vida, e deveria nos dar bons motivos para pensar com mais profundidade sobre o impacto da atividade humana no resto do mundo vivo.

(...) Se toda vida é parte da mesma árvore da família, que tipo de semente deu origem a ela? De algum modo, em algum lugar, há muito tempo, produtos químicos inanimados e desordenados se combinaram em formas mais organizadas, capazes de se perpetuar, se copiar e, enfim, ganhar a importantíssima capacidade de evoluir pela seleção natural. Mas como essa história, que acabou sendo a nossa, teve seu início?"

*Jornalista

Fonte: https://www.msn.com/pt-br/noticias/brasil/entender-o-que-%C3%A9-um-organismo-vivo-%C3%A9-entender-o-que-somos-diz-paul-nurse/ar-AANLgaM?ocid=NL_PTBR_A1_20210827_1_2&bep_ref=1&bep_csid=33613