Lídia Jorge*
O que é que o tempo extraordinário que estamos a passar nos ensina? Ele parece uma espécie de alma global aberta, a que cada um de nós reage. Apesar da dor que atravessa todos os países, este é um momento em que vejo várias sementes de esperança. Para falar desse tempo, proponho dois níveis, pessoal e global.
Desde há cerca de 14 meses que a minha vida tem sofrido uma grande mudança de pensamento, também de aproximação à realidade com outra perspetiva. Perdi a minha mãe há um ano – foi das primeiras pessoas que morreu no sul com Covid. Estive quarenta dias sem a ver, ela partiu e eu não me despedi. Não só o facto de ter partido, mas a forma como partiu, fez com que eu tivesse de viver o luto com uma dimensão de grande perplexidade e espanto perante o mundo.
O que tenho estado a sentir é uma espécie de revolução interior. Quero explicar o que entendo por revolução. Quando as pessoas pensam nesta palavra, evocam apenas o seu significado moderno, saído da Revolução Francesa, que é a transição de um estado social para outro, passando por uma crise violenta, e em que as coisas não voltam a ser como eram. Todavia, como sabem, revolução é uma palavra que tem a ver com a dinâmica e o movimento dos astros, que partem de uma dada localização e a ela regressam.
As questões colocadas por Einstein do ponto de vista científico, de maneira muito concreta, não me chegam. Eu queria que, havendo algum tipo de metafísica, tivesse uma voz humana, me falasse, me dissesse alguma coisa ao ouvido, como a um ser amado
Eu tenho passado por uma revolução precisamente nesta perspetiva de ter feito uma espécie de arco, em que sinto uma espécie de revelações mínimas, mas profundas, porque o silêncio, a falta, o tempo de maturação em silêncio em casa da minha mãe, onde fiquei, têm-me dado outra aparência da vida.
Se a palavra desastre significa perder os astros, o que tenho procurado é não os perder neste ano de mudança. Por isso, tenho estado atenta àquilo que era e é o nosso mundo contemporâneo, à mudança de paradigma que temos estado a viver, designadamente quanto ao mundo digital, que tem alterado as vidas e promete mudá-las ainda mais, a par das alterações que a pandemia trouxe.
Tenho pensado sobre o significado do tempo. A dor em relação à minha mãe foi grande. Tenho visto muita gente partir deste mundo, e dá a impressão que há uma vassoura cósmica que todos os dias traz o anúncio de mortes de pessoas que nos são queridas, um pouco por toda a parte. Isto tem-me feito refletir muito sobre o que significa vivermos, o que significa as gerações que vêm ao mundo construir como se fossem eternas, e de repente abalam. Muitas vezes pensei numa personagem de James Joyce que diz «a história é um pesadelo do qual tento acordar».
A pessoa que tem Deus, ou alguma espécie de deus, está mais segura, tem uma proteção, um dialogante válido, sabe a quem dirigir-se. A pessoa da cultura está dispersa por vários rostos, não sabe qual é o rosto, quer encontrá-lo mas não consegue
Porque o tempo me tem parecido uma espécie de fita brutal, tenho desejado que se faça um corte no tempo histórico e apareça outra dimensão. É um desejo que me tem acompanhado na vida, mas talvez nunca com a mesma lucidez. Tem-me inquietado muito o que para além da física existe; se existe uma metafísica, a minha questão profunda é saber que metafísica existe. Penso na metafísica crendo que ela tenha um rosto humano. As questões colocadas por Einstein do ponto de vista científico, de maneira muito concreta, não me chegam. Eu queria que, havendo algum tipo de metafísica, tivesse uma voz humana, me falasse, me dissesse alguma coisa ao ouvido, como a um ser amado.
Isto tem-me trazido uma espécie de mudança, porque essa perspetiva tem sido mais forte que nunca. É curioso que, ao falar com muitas pessoas, constato que, apesar de o dizerem em voz alta, pensam em palavras semelhantes. Devo dizer que o meu amparo, mais do que tudo, é o mundo da cultura, da literatura e da arte. Considero que a cultura nasce como um ramo que se tornou independente da religião. Possivelmente o homem primitivo era um ser profundamente religioso, que obedecendo por medo, incompreensão, incapacidade de resposta científica, criou a imagem de uma potestade, de um poder enorme que dominava, ao qual se submetia, reverenciando-o. Assim terá acontecido, no início da vida humana, perante os trovões, os lobos, os terramotos, perante tudo aquilo que não se compreendia, supondo a existência de um Deus por trás.
A cultura representa também um modo de querermos encontrar uma totalidade, também considera que há uma voz que falta expressar-se, também se ajoelha diante do incompreensível. Mas também diz que é incapaz de ver esse rosto, de nomear essa figura; por outro lado, revela uma atitude de altivez, dizendo que sozinha se basta - «vou procurar a verdade através dos meus caminhos». E aqui emergem as diferenças.
Na cultura tudo está em questão, e por isso as pessoas não sabem de onde vêm nem para onde vão. É no percurso que encontram a sua finalidade. Porém, sabemos que essa finalidade é pequena, curta, porque existe uma espécie de instinto que quer fazer de nós eternos
A pessoa que tem Deus, ou alguma espécie de deus, está mais segura, tem uma proteção, um dialogante válido, sabe a quem dirigir-se. A pessoa da cultura está dispersa por vários rostos, não sabe qual é o rosto, quer encontrá-lo mas não consegue. O caminho é mais seguro para quem tem uma religião; quem tem apenas a cultura, quem tem a forma laica ou profana das coisas, não tem um caminho, o erro está permanentemente diante de si. Por isso nunca tem só um livro, nunca tem só uma voz, nunca tem um só profeta, nunca tem um messias; tem sempre várias vozes, está perdida nelas; mas está, de forma ousada, a procurar encontrar aí a totalidade. A pessoa nesta condição quer estar sozinha, mas está insegura.
Há um caminho na vida para quem é beneficiado pela crença e pela fé. Está mais seguro, sabe para onde vai. Tem a noção de que nasceu para alguma coisa e vai para alguma coisa. Esse é um suporte absolutamente formidável, porque nasce com a ideia de que existe uma figura humana atrás de si, ou que, de alguma forma, se articula uma voz humana atrás de si, e que irá para uma voz semelhante.
Na cultura tudo está em questão, e por isso as pessoas não sabem de onde vêm nem para onde vão. É no percurso que encontram a sua finalidade. Porém, sabemos que essa finalidade é pequena, curta, porque existe uma espécie de instinto que quer fazer de nós eternos. A cultura debate-se sempre nesta pergunta: é o desejo uma eternidade, uma perfeição? Mas eu não encontro eternidade nem perfeição. Por isso falo em voz alta, por isso danço, por isso canto, por isso toco, para ver se uma revelação acontece.
A cultura é uma construção que não tem um caminho certo, mas a beleza leva a fazer com que nós sintamos aparições neste mundo, faz com que, depois da leitura de um livro que é bom, de um poema, depois da música, nos sintamos lavados, como um banho. É como se nos sentíssemos a caminhar centímetros acima do solo
Religião e cultura são dois campos que estão separados, mas ao mesmo tempo estão perfeitamente unidos. Fazem como que um transvase, há conhecimentos e posições na religião que passam para a cultura, e os que estão na cultura passam para a religião. Por algum motivo utilizamos na literatura a palavra epifania quando há uma revelação. A palavra é retirada precisamente da religião. Somos companheiros. Une-nos a beleza. Une-nos a parábola. Une-nos a narrativa. Quer na religião, quer na fé, quer na cultura acreditamos que ao dizer palavras nos aproximamos da verdade. S. João quando começa por dizer «no princípio era o Verbo», está a revelar para a cultura e para a religião o que é o nosso poder, que são as palavras.
Ao longo destes quase catorze meses em que houve este aprofundamento interior, que aparentemente é partilhado por muita gente, neste momento que nos abala a todos e no qual nos confrontamos, de forma global, com a nossa precariedade, com a fragilidade da vida, da Terra, da natureza, da nossa capacidade de proteção humana, há uma narrativa que recolhi quando era muito jovem, e que me tem ajudado.
Quando tinha treze anos, apaixonei-me por uns bichos-da-seda. Pu-los dentro de uma caixa de cartão, e achei muito interessante que eles se transformassem em casulo, depois em borboleta. Dormia com a caixa perto da mesa-de-cabeceira. Ver os bichos a tosar as folhas de amoreira, depois a transformarem-se em casulo e fazerem a seda, era para mim extraordinário, deslumbrante. Quando os bichos estavam a entrar na fase da borboleta e começavam a pôr ovos, levei a caixa para o liceu, e mostrei-a a um professor de ciências naturais. Ele perguntou-me: isto é a metamorfose; das várias fases da metamorfose, qual é a que achas que é a mais importante e que mais gostas? O momento principal, respondi, acho que é a lagarta. Ele olhou-me e disse: o mais importante das fases da metamorfose é o teu vestido de seda.
Debaixo desta lição global que estamos a ter, é impossível não ficarmos a respeitar mais a Terra, é impossível não criarmos uma nova forma de distribuição da riqueza, é impossível não distribuirmos o trabalho de outro modo.
Durante um momento fiquei a pensar no que significavam aquelas palavras. Era criança, era difícil. Mas depois percebi que se estava a referir à transformação humana, as coisas que juntamos às coisas que encontramos, a crença e a capacidade de transformação em que passamos a ser construtores do mundo. Esta tem sido uma das imagens que me tem ajudado neste tempo. A cultura é uma construção que não tem um caminho certo, mas a beleza leva a fazer com que nós sintamos aparições neste mundo, faz com que, depois da leitura de um livro que é bom, de um poema, depois da música, nos sintamos lavados, como um banho. É como se nos sentíssemos a caminhar centímetros acima do solo. As pessoas chamam a isso sentimento estético. É um sentimento estético, é um sentimento poético, possivelmente é um sentimento próximo do religioso, mas é selvagem porque não tem um caminho certo.
Trago aqui um pequeno poema para poder transmitir como acho que as pessoas não estão seguras de que na metafísica Deus fale connosco, para mostrar como a beleza pode colocar-nos num plano em que isso pode acontecer. É um poema maravilhoso, completamente profano, e ao mesmo tempo completamente mágico, completamente surrealista, e no entanto tem um poder enorme, porque chama da pessoa a criança, aquela parte de nós que se mantém, com o desejo de que ao fecharmos os olhos haja pai e haja mãe que nos ampare, e também que haja filho, para passarmos as nossas palavras. Isto pode vir através de um poema que não fale disso, que seja uma porta lateral de entrada para esse domínio onde as coisas são puras, ou quase puras. É um poema, com influências da cultura sufi, da jovem indiana Asiya Zahoor, chamado “A história do velho chinar”. O chinar é um plátano da Caxemira que se apaixonou por uma menina; mas como ele tem um tempo mais vasto que ela, pode ver a sua mudança, pode ver o tempo dela desde que é criança até que se apaixona e se torna uma velha com uma história. Leio um excerto para partilhar aquilo que são os meus pensamentos, os pensamentos de uma pessoa qualquer que procura em textos laterais um caminho que é paralelo ao da religião. O plátano diz:
«Tenho
visto seus olhos buscando minha sombra verde
no verão quando os alces emergem da floresta
A menina
oculta no oco de meu ventre, no papel de
Zooni ansiando por Yusuf. Fui do verde
ao
vermelho ao amarelo ao castanho ao açafrão em chamas
enquanto ela aguardando seu amor folheou estações.
Gargalhadas
ao brincar de lakad lakad:
canções de ninar nascidas sob meus galhos - tantas
histórias
de infância. Agora mulher curvada,
pele enrugada como o primeiro rascunho de um poema
descartado
como reflexão posterior, espiou pela janela o pai,
que descanse em paz, rufando com as mãos pele de ovelha
esticada
na boca do longo tambor de barro:
“Em Farsi, Che significa Que. Nar é Fogo. Chenar
Chinar –
Que Fogo - a quem pertence o som?
Eu, lendário fogo. Chinar, plátano”
Seu
sorriso amolecia rugas. Fiquei enciumado
quando beijou seu amado sob meus galhos.
Roubei
sua sombra, ocultei-a no meu bojo
decidido a nunca mais a devolver.
Agora,
ela a procura por toda a parte. Enraivecida
quer me queimar – como ousa!
Sou a
memória invisível de suspiros, de beijos
furtivos. Sou ou não um elo com os fios de seda
que ela
atou às tulipas de madeira em templos sufi?
Não queimariam comigo fios oníricos?
Desapareceria
ou não o travo dos beijos?
Sei que persigo o surreal, sonhando
a
estranha consumação de uma menina por um velho Chinar sombrio.
Estou montando guarda no arqueado paraíso
enquanto
a História desdentada ronca sob minha sombra.
As raízes da minha história estão na Caxemira».
Não leio mais, o poema é longo. Como veem, é um poema absolutamente maravilhoso. Ele tem-me ajudado, neste tempo, a pensar um pouco no nosso tempo, no que aí vem. O que mais receio é que seja o contrário daquilo que desejo e prevejo. Debaixo desta lição global que estamos a ter, é impossível não ficarmos a respeitar mais a Terra, é impossível não criarmos uma nova forma de distribuição da riqueza, é impossível não distribuirmos o trabalho de outro modo. Acho que vai ser impossível não distribuirmos o dinheiro de outro modo. Acho que vai ser impossível não respeitarmos as árvores, os animais, a terra, as rochas, tudo o que é inerte. Acho que vai ser impossível não pensarmos que há certos setores que vão ter de ser geridos globalmente, e que tem de haver governos globais para nos salvarmos.
Utilizar os meios mais simples na linguagem significa a perda do próprio pensamento, o que implica perda do diálogo, e esta significa violência, porque onde não se dialoga, volta-se a ser primitivo, volta-se a pegar em paus e pedras
Perante a ciência e as suas promessas aparentemente infinitas, tenho a esperança de que não sejamos tecnológicos, que sejamos apenas seres com instrumentos tecnológicos, o que é completamente diferente. Penso também na perda da nossa subjetividade, da capacidade de interioridade, sobretudo nos mais novos, aqueles a quem o mundo digital está a criar duas grandes faixas humanas: uma hiperformada, híperapetrechada, com capacidades de hipercomunicação, com grande inteligência, dotadas de tudo, que sabem várias línguas, conhecedoras do mundo inteiro, gente formidável; mas por outro lado vejo muitos jovens que, em relação aos seus pais, estão a perder a subtileza, a delicadeza, a riqueza, a sofisticação sintática da linguagem, recorrendo aos meios mais simples. E utilizar os meios mais simples na linguagem significa a perda do próprio pensamento, o que implica perda do diálogo, e esta significa violência, porque onde não se dialoga volta-se a ser primitivo, volta-se a pegar em paus e pedras. E hoje podemos pegar em instrumentos que não são paus nem pedras, mas de outra natureza.
Que esta aula global que estamos a viver, exigida pela natureza, sirva para que nos próximos vinte ou trinta anos possamos voltar atrás, para colocar o mundo numa outra perspetiva. Isso só se pode fazer com a ajuda da cultura, com a ajuda daqueles que são capazes de procurar encontrar tempo para se dedicarem a segmentos muitas vezes não produtivos, não significativos do ponto de vista do produto – essa palavra mágica –, com vista a criarmos uma espécie de atos salvadores. É isso que, com perspetivas diferentes, fazem a cultura e a religião, que podem ajudar a que saíamos daqui mais fortes, mais completos e, sobretudo, mais amigos uns dos outros.
Lídia Jorge
14.º Encontro Nacional de Referentes da Pastoral da Cultura, 28.4.2021
Texto redigido a partir da intervenção da autora: Rui Jorge Martins
Imagem: D.R.
Publicado em 30.04.2021
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