Eu acho que uma pessoa adulta nos usos das suas faculdades mentais e numa situação de sofrimento terminal deveria, sim, ter o direito de morrer. Negar às pessoas essa possibilidade é um abuso em nome de um bem que já não existe, a saber, a vida como horizonte.
Sei que o tema é delicado. Alguns podem interpretá-lo como uma defesa do suicídio como direito. Aqueles que assim o fizerem, que o façam. Não podemos nos defender de toda forma de interpretação, coisa que nos dias atuais muita gente parece se esquecer. Pensar publicamente não é uma atividade feita para agradar —inclusive aos patrocinadores, que, aliás, desejo que se danem no seu poder de limitar o uso da palavra pública.
Aborto é outro tema espinhoso. Já tive muitas opiniões sobre ele. Hoje as tenho em muito menor quantidade e qualidade.
Sei que existem pessoas que não comem carne nem usam proteína animal de qualquer tipo, mas que são a favor do aborto. Para muitos haveria uma contradição nessa atitude. Ou hipocrisia. Eu suspeito que, no caso de não comer carne, a pessoa acredita que isso será saudável para ela.
Já no caso do aborto, está em jogo a liberdade de ela transar e, se algo no processo der errado, por assim dizer, poder resolver o problema com o menor sofrimento físico possível, apesar de essa solução nunca ser de forma fácil do ponto de vista moral.
Óbvio que existe a dimensão da saúde pública. Óbvio também que em uma etapa lógica anterior, se pressupõe a ideia de que o feto não é um ser humano ainda. Penso que, em meio a um mundo em que a desumanização corre solta, a dificuldade em desumanizar o feto parece uma afetação de virgens no bordel.
Mas voltando ao que me interessa hoje, o tema da escolha pela morte assistida e legítima me parece significativo. Antes de tudo porque a população envelhece a olhos nus, e muita gente faria uso de uma saída de cena com classe se lhes fosse dada essa opção. Aliás, o filme “A Despedida”, de 2019, com Susan Sarandon e Kate Winslet, é excelente sobre o tema.
Alguns poderão considerar essa afirmação um absurdo moral. Alguém escolher essa opção não implica que você seja obrigado a escolhê-la. Talvez, um dia, vivendo uma situação semelhante, você venha a entender a opção do outro.
Óbvio que há sofrimento. Mas é justamente em nome dele que se deve dar às pessoas o direito de morrer quando elas querem e quando a vida já não aparece como um horizonte fisiológico viável. Obrigar a uma pessoa no uso da sua inteligência a existir num corpo que já não mais é seu me parece uma violência moral muito maior.
Se há hipocrisia no vegetariano a favor do aborto —o que não me parece totalmente evidente—, aqui há com certeza. Se quero manter a pessoa viva porque eu a amo, mesmo que ela sinta que o melhor é repousar na pedra, o meu amor, sim, é de alguma forma impróprio.
A ideia de que a vida pertence a Deus me parece irrelevante. Se não acredito em Deus, entendo que a vida pertence apenas a mim, mas se sou terminal, ela já pertence à pedra.
Mas, mesmo que eu seja um crente, posso sê-lo de forma ousada e desafiar a afirmação religiosa institucional de que só Deus pode tirar a vida.
Posso escolher encará-lo, inclusive para perguntá-lo, afinal de contas, por que sou obrigado a ficar em agonia se poderia já descansar.
Detalhes jurídicos são o menor aqui. Em termos de lei, tudo pode, uma vez decidido que pode. Quanto ao fato de que médicos só podem salvar vidas, também é algo que se pode ajustar. E nem me falem sobre a possibilidade de uma descoberta milagrosa de cura: a ciência, nesse caso, está a favor de quem se sabe terminal. Não existem milagres na ciência.
O centro do problema é a possibilidade de se decidir que basta. Esse passo não significa o aniquilamento
da agonia moral. Significa a escolha de uma certa agonia moral em
detrimento de outra, sendo a diferença capital a que quem quer sair de
cena —que é quem deve decidir a qualidade da agonia moral que pretende
enfrentar.
À medida que a humanidade envelhece, há que nos prepararmos para um mundo em que pessoas desistam dele.
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