Boaventura de Sousa Santos*
Domínio do Ocidente difundiu visão particular de transcendência. Nela baseiam-se dois pilares do capitalismo: centralidade do indivíduo e dominação da natureza. Mas há outras formas de pensar o infinito – apoiadas no cuidado e no Comum
A espiritualidade é um tema-chave de todas as culturas, um conceito que, durante séculos, esteve intimamente ligado ao culto da religião. Ainda hoje é comum confundir espiritualidade com religião ou religiosidade. A verdade é que, no mundo ocidental, sobretudo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, espiritualidade e religião têm vindo a separar-se cada vez mais. Distingue-se entre espiritualidade religiosa e espiritualidade não religiosa ou secular. O conceito de espiritualidade foi, entretanto, apropriado pela filosofia, pela psicologia, pela psiquiatria, pela medicina, pelo serviço social e até pela literatura de autoajuda. Multiplicam-se hoje os estudos sobre “cuidado espiritual”, sobre espiritualidade e doença mental, sociabilidade, qualidade de vida, etc. Como seria de esperar, são abundantes as tentativas de operacionalizar e mesmo quantificar a espiritualidade. A pandemia veio a desencadear um novo interesse por estas temáticas.
As modalidades da espiritualidade
A espiritualidade entrou na minha investigação sociológica por uma entrada menos comum. Há mais de vinte anos, em reuniões com os povos indígenas da Colômbia e da Bolívia, fui-me apercebendo de que o conceito eurocêntrico de natureza tinha pouco a ver com o modo como aqueles povos expressavam as suas relações com os rios, os animais, as montanhas; como organizavam o trabalho agrícola e mesmo como iniciavam ritualmente qualquer reunião, pedindo autorização e bom acolhimento por parte da “Mãe-Terra” (pachamama, em quéchua) para as atividades que se seguiam. Uma relação de respeito e de veneração que, no entanto, não tinha nada a ver com o conceito ocidental de sagrado, concebido como algo separado, acima e para além deste mundo. A relação entre a sociedade e a natureza, entre o imanente e o transcendente, era diferente da que é comum na cultura ocidental. A natureza era concebida como estando “dentro” da sociedade, tal como o transcendente era uma dimensão do imanente. Dizer que o rio ou a montanha eram sagrados não queria dizer que estivessem em algum nível diferente de vida extraterrena. Era uma expressão que designava um modo de viver com o rio ou a montanha numa relação de respeito e dignidade mútuos. De um ponto de vista eurocêntrico, era como se um rio fosse simultaneamente um rio e mais que um rio, sem deixar de ser o rio onde se pescava e navegava. A espiritualidade foi a designação que foi emergindo entre os não-indígenas para dar conta dessa relação complexa em que se combinava o material e o utilitário com o imaterial e o espiritual. Não era nem uma espiritualidade religiosa nem uma espiritualidade secular nos termos em que tal conceito é analisado nas disciplinas que referi. A espiritualidade indígena, se de tal se pode falar, questionava não só o binarismo sociedade(humanidade)/natureza e o binarismo imanente/transcendente, mas também o binarismo indivíduo/comunidade. De modos diferentes, este questionamento dos binarismos eurocêntricos estava presente noutras culturas não ocidentais, africanas e asiáticas. Cada uma a seu modo questionava o entendimento dos binarismos, concebidos como pares de entidades separadas e opostas, mas em que se oculta uma hierarquia férrea entre os termos, sendo um deles irremediavelmente inferior (a natureza, o imanente, a comunidade). Afinal, a concepção eurocêntrica é um particularismo que, graças ao poder capitalista e colonial ao longo de séculos, se foi arrogando o estatuto de ideia universal e condição de racionalidade. A força da ideia eurocêntrica dos binarismos seria mínima a nível mundial se não tivesse sido sustentada pela ideia da força do capitalismo e do colonialismo. Foi esta uma das dimensões da interculturalidade que veio a caracterizar o meu trabalho nos últimos vinte anos. Não se tratou de descartar as concepções eurocêntricas dos binarismos ou da espiritualidade, mas antes de as contextualizar numa paisagem mais ampla de diversidade epistemológica e cultural humana e de as fazer entrar numa roda de conversa com outras concepções vigentes no mundo – um projeto cosmopolita de ecologias de saberes e de viveres. Daí me vieram pistas para a reconstrução intercultural da espiritualidade.
A espiritualidade é sempre a experiência de um encontro especial, não trivial, particularmente intenso da pessoa humana, isolada ou em comunidade, com o que a transcende. A transcendência é o modo como um ser finito pensa o infinito. A possibilidade deste modo de pensar talvez seja a característica que mais especificamente distingue a vida humana da vida não humana no planeta. Só que, contraditoriamente, uma das formas de experienciar a espiritualidade consiste em diluir a vida humana num conjunto vital muito mais amplo, concebê-la como uma parte ínfima da totalidade da vida cósmica. Afinal, a vida humana não é mais do que 0,01% da vida total existente no planeta terra. Desta contradição emergem duas modalidades básicas de espiritualidade: a que se alimenta da superioridade da vida humana em relação a toda a outra vida planetária por ser a vida dos únicos seres “espirituais”; e a que floresce na submissão humilde dos seres humanos à avassaladora imensidão da vida cósmica. A primeira modalidade pode designar-se como espiritualidade vertical e a segunda, como espiritualidade horizontal. A primeira atua pela diferenciação e a segunda, pela indiferenciação. Para a primeira, a natureza pertence-nos, para a segunda, pertencemos à natureza.
A espiritualidade de matriz cultural cristã, seja ela religiosa ou secular, é uma espiritualidade vertical. E essa verticalidade é experienciada de duas formas, só na aparência contraditórias. A primeira (verticalidade como subida) assenta na ideia de que só a incomensurável superioridade do ser humano permite a este imaginar e vivenciar a incomensurável superioridade de Deus em relação a ele (a espiritualidade religiosa). A segunda (verticalidade como descida) consiste na capacidade de ir ao mais íntimo e mais profundo de si para experienciar a paz interior, o verdadeiro sentido da vida ou propósito da existência (espiritualidade não-religiosa). Esta ideia de dupla verticalidade tem uma muito longa duração histórica. Pode encontrar-se na Bíblia e atingiu a sua expressão mais completa na filosofia de Descartes. A especificidade humana, enquanto ser pensante (res cogitants), consiste em ser ela a única capaz de demonstrar a existência de Deus. As variantes cristã, judaica e islâmica são expressões diferentes da mesma verticalidade dupla que tanto pode permitir como excluir o secularismo. Não se deve, no entanto, confundir espiritualidade cristã com espiritualidade ocidental. No século XVII, o filósofo, bem ocidental, Bento Espinosa, defendeu uma forma de espiritualidade horizontal.
A espiritualidade de matriz asiática (budista, taoista, sintoísta), africana e indígena americana, australiana ou neozelandesa, é predominantemente horizontal. Ainda que de modos muito diferentes, expressa-se, em geral, na ideia da unidade do ser, da totalidade da existência humana e não humana, de que emana uma energia vital que permeia e vive em tudo, nos seres humanos, nos animais, nas plantas, nos minerais, nos objetos, nos acontecimentos tanto intencionais como fortuitos ou acidentais. Esta unidade ontológica convoca duas ideias fundamentais: a relação íntima de tudo com tudo porque só há uma essência; a solidariedade orgânica entre todos os seres vivos que decorre da essencial complementaridade entre eles. A especificidade do humano tem de ser buscada no seio dessa imensa comunidade de vidas, e não fora dela.
Uma espiritualidade intercultural do cuidado
Embora pareça estar para além do utilitário, por que razão a espiritualidade é hoje tão discutida pela psicologia e pela psiquiatria, por que inspira ela a importância do “cuidado espiritual” e está tão presente na literatura da autoajuda ou na indústria da meditação? Não basta separar o utilitário do não utilitário, pois de outro modo será difícil explicar a lógica profunda da publicidade ligada ao consumo de massas. A publicidade é a engenharia da criação de uma aura à volta dos objetos de consumo para que eles signifiquem dimensões não utilitárias que estão para além deles – como felicidade, bem-estar, paz, virtude, autoestima –, mas que não podem ser atingidas sem eles. Por outras palavras, o material também é espiritual, e este último não existe sem aquele. A não-utilidade do utilitário compete hoje eficazmente com a utilidade do não-utilitário.
A corrente da alienação consumista só se quebra quando o espiritual pode ser experienciado sem qualquer outra referência material que não seja o corpo individual ou a comunidade de corpos que tornam possível a experiência espiritual. No budismo e no misticismo é o próprio corpo que idealmente se anula. A espiritualidade pode ser um subproduto da alienação consumista, mas, por outro lado, ela é hoje um dos veículos possíveis de superação dessa alienação e, nessa medida, a sua utilidade (não-mercantil) é preciosa. Designo tal utilidade por cuidado. O cuidado é toda a relação de reciprocidade que não depende de critérios mercantis nem de imposições jurídicas. A nível mais profundo, a espiritualidade pressupõe uma ontologia relacional, tal como a que propõe a filosofia africana do ubuntu da África austral: “eu sou porque tu és”. Esta filosofia está ancorada numa ideia de espiritualidade horizontal e parece-me mesmo mais pertinente no nosso tempo que o mandato bíblico “ama o próximo como a ti mesmo”, ancorado numa espiritualidade vertical. A proposta de cuidado é aqui ambígua, não só porque dá prioridade ao cuidado de si sobre o cuidado do outro, como também porque impõe o cuidado de si como critério para o cuidado do outro. É uma outra forma de altruísmo feita de egoísmo. Mas não tem de ser assim se o próximo for tudo, não for apenas o espelho do eu, mas a janela aberta para o mundo onde todos estão e são. Para isso, há que recorrer à espiritualidade horizontal, a que melhor se adequa a uma ampla ética e política de cuidado. De uma perspectiva eurocêntrica dir-se-á que o cuidado abrange não apenas a vida humana como também a vida não humana. Perante a iminência de catástrofe ecológica em que nos encontramos, o cuidado com a natureza é tão importante como o cuidado com a vida humana. É que hoje, em pleno antropoceno, a pandemia do coronavírus está a advertir-nos de que, a menos que mudemos decisivamente os modelos de produção e de consumo que sobrecarregam em excesso os ciclos vitais da natureza, estaremos condenados a viver numa época de pandemia intermitente, pondo em risco, em última instância, a sobrevivência da vida humana no planeta. O cuidado com a natureza não implica deixá-la intocada ou venerá-la, à la New Age. Implica inventar novas formas de lidar com ela, adaptadas ao mundo tecnológico de hoje, mas que sigam o mesmo princípio do caçador africano ou indígena. Este não mata o antílope ou a onça-pintada por desporto ou para ficar rico. Mata para comer e com pleno respeito pelo animal morto. É assim também que se cultiva a terra e se colhem os frutos ou se cortam árvores.
* Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Fonte: https://visao.sapo.pt/jornaldeletras/ideiasjl/2021-07-27-espiritualidade/
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