Pedro Norton*
As aterradoras imagens do colapso de Cabul não podem deixar de perturbar qualquer alma com um mínimo de sensibilidade. É sempre arrepiante assistir ao desabar de qualquer regime, mesmo no caso dos mais hediondos. Guardo, por exemplo, memórias muito vivas da queda estrondosa de Ceausescu, transmitida praticamente em direto da Roménia de 1989 e que haveria de culminar no julgamento sumário do ditador e da sua mulher, Elena. Assim como não esqueço as imagens fortíssimas da captura e execução de Saddam Hussein no Iraque ou de Khadafi nos escombros da Líbia. Mas se, nestes casos, o choque com a violência dos acontecimentos aparecia aos nossos olhos como o preço a pagar por libertações de longos invernos tirânicos, em Cabul não há qualquer atenuante para o terror que testemunhamos. E é de terror que efetivamente se trata. É terror que efetivamente lemos na desesperança sem fundo das multidões em Cabul.
Ao observar o desespero afegão, vêm-me aliás à cabeça profecias sinistras, de outras eras e de outros lugares. Apetece parafrasear Marx. “Há um espectro que assombra o Afeganistão.” O espectro da intolerância, do fanatismo, do medievalismo, do radicalismo, que se abate sobre a sociedade afegã. É sempre arrepiante, repito, assistir ao desabar de um regime. Mas é profundamente angustiante assistir, em direto, ao colapso daquilo a que, no Ocidente liberal, convencionámos chamar Civilização. A privação das liberdades mais básicas e fundamentais, imprescindíveis para a plena realização do “eu”, constitui uma violência difícil de imaginar, mesmo para quem nunca as conheceu. Mas é, convenhamos, particularmente sádico assistir, impávido, à imposição de uma reversão dessas mesmas liberdades a quem as experimentou, ainda que de forma efémera.
Independentemente de saber quem carrega a maior responsabilidade, independentemente de saber se existiriam alternativas realistas à disposição dos decisores políticos (e eu sou dos que duvidam que existissem), independentemente de todas as considerações geoestratégicas, uma coisa parece certa: para os afegãos que puderam experimentar a liberdade, esta experiência-limite de retrocesso e reversão permanecerá como a herança mais tangível de 20 anos de intervenção dos aliados ocidentais no país.
Sentado no conforto de um sofá em Lisboa, é impossível não parar um instante que seja para fazer um paralelo entre esta desesperança sem nome e as várias “crises” que nos ocupam os dias. O Ocidente que se espanta com a voragem dos acontecimentos no Afeganistão é o mesmo que, até há poucos dias, se entretinha, nas redes sociais, na procura incessante, doentia e obsessiva de causas efémeras e de vítimas tantas vezes imaginárias. O Ocidente que se choca com este inexorável avanço das trevas, o Ocidente que por agora debita palavras e promessas ocas de solidariedade é o mesmo que, num espaço de poucas semanas, voltará a esquecer Cabul para regressar ao seu fútil “ennui”, desencantar outros tantos “je suis” e voltar a acender fogueiras de indignação e cancelamento com palavras proibidas, ofensas espúrias e outras cruzadas de trazer por casa.
Cada um tem os dramas que pode. Em Cabul, não é preciso inventá-los
*Jornalista. CEO
Fonte: https://visao.sapo.pt/opiniao/2021-08-26-a-desesperanca-de-cabul-e-o-ennui-do-ocidente/
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