Foto: Tatyana Makeyeva/Reuters – 09.07.2021Membros de comitiva do Taleban durante entrevista coletiva em Moscou, em 9 de julho de 2021
Amina Khan, diretora do Centro de Estudos Estratégicos de Islamabad, fala ao ‘Nexo’ sobre os caminhos para resolver o impasse político e a guerra no Afeganistão
A diretora para Afeganistão, Oriente Médio e África do Centro de Estudos Estratégicos de Islamabad, no Paquistão, Amina Khan, acredita que, apesar da justificada desconfiança, “é preciso dar uma chance ao Taleban porque não há alternativa”.
Em entrevista ao Nexo, por telefone, na quinta-feira, Khan, que há 17 anos estuda o Afeganistão, diz que foram os próprios americanos que trouxeram o Taleban para a mesa de negociações, em 2019, em Doha, durante a administração de Donald Trump. Com isso, os EUA deram ao grupo insurgente as credenciais políticas que eles reivindicam definitivamente para si desde que entraram em Cabul, em 15 de agosto, proclamando o restabelecimento do governo que exerceram antes, de 1996 até a invasão americana de 2001.
Khan diz duvidar, no entanto, da capacidade do grupo de estabelecer um governo unitário e sólido em todo o país neste momento. Será preciso, diz ela, construir acordos abrangentes com outros atores, sob o escrutínio de outros países da região, que devem exercer pressão fundamental pelo respeito aos direitos humanos – o que, por si só, já marca a diferença de circunstâncias em relação aos cinco anos em que o Taleban esteve no poder anteriormente (1996-2001).
O presidente americano, Joe Biden, disse que havia 300 mil militares afegãos bem treinados e completamente equipados pelos EUA. Por que eles não foram capazes de resistir à invasão do Taleban? Eles lutaram ou nem tentaram?
Amina Khan Primeiro, não acho que tenha havido uma invasão do Taleban. Foi mais uma tomada do poder político, que, aliás, havia sido antecipada. A velocidade com que ocorreu é que não era prevista. Mas o evento em si, sim. Todo mundo sabia que o Taleban voltaria de uma maneira ou de outra.
É injusto e desonesto dizer que as forças afegãs poderiam fazer frente ao Taleban. É verdade que as forças afegãs eram numerosas, mas a formação desse Exército foi algo cheio de percalços. Eles não receberam toda formação e treinamento que uma Força precisa ter para exercer suas funções, especialmente quando, do outro lado, está um grupo como o Taleban. Além disso, o número de deserções foi alto. Muitos reclamavam de atrasos no pagamento dos soldos. Portanto, não havia esse senso de lealdade em relação ao Estado.
Nenhum governo, incluindo o de Ashraf Ghani [presidente afegão, que fugiu de Cabul para Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, em 15 de agosto, assim que o Taleban entrou na capital] foi capaz de conquistar os corações e mentes dos afegãos, o que, claro, inclui os membros das próprias Forças Armadas. É por tudo isso que a maior parte das forças afegãs sequer colocaram alguma resistência ao avanço do Taleban.
Acho injusto que a comunidade internacional se refira agora às forças afegãs como incapazes, citando o número alto de militares que compunham essas fileiras. Nós sabemos que quantidade não é necessariamente sinônimo de qualidade, especialmente quando se trata de fazer frente às estratégias militares de guerrilha presentes nessa situação.
No pico da presença militar dos EUA e da Otan [Aliança do Tratado do Atlântico Norte] no Afeganistão, tínhamos algo como 140 mil militares estrangeiros, e eles tampouco foram capazes de derrotar o Taleban. Então, como esperar que uma nova Força Armada criada recentemente pudesse derrotar um grupo como esse? No fundo, eu acho que ainda há muitas questões não respondidas no ar, assim como há falhas e responsabilidades a serem apuradas de todos os lados.
Quando Biden fez seu primeiro discurso, em Washington, após a queda de Cabul nas mãos do Taleban, ele sugeriu que os políticos afegãos eram corruptos e os militares, covardes. Qual o impacto de uma declaração assim, num momento como esse?
Amina Khan É uma declaração insincera. Quando Biden assumiu, ele tinha vasto conhecimento e experiência sobre a região. Não se esperava realmente que ele fosse rever todo o processo, é verdade, mas ninguém esperava tampouco que ele fosse se mover na direção de uma retirada tão apressada e tão irresponsável, como acabou ocorrendo.
É muito conveniente para os americanos colocar toda a culpa nas forças afegãs agora. Sem dúvida, os militares afegãos não corresponderam, porque eu acho que havia entre eles um sentimento de abandono. Eles estavam testemunhando os americanos se retirarem dessa maneira tão atabalhoada, e, ao mesmo tempo, viam até o presidente afegão abandonando o país e suas próprias Forças Armadas.
'É injusto que se coloque toda a culpa nas forças afegãs. Os americanos eram os principais protagonistas do acordo. Foram eles que assinaram os papéis. Eles legitimaram o Taleban'
Em todo caso, seria importante que os americanos assumissem suas próprias responsabilidades. No dia em que os EUA assinaram o acordo com o Taleban [29 de fevereiro de 2020], esse foi o dia em que o Taleban foi legitimado. Perceba que os EUA começaram a colocar em prática o que estava previsto no acordo de Doha, sem que o Taleban sequer tivesse começado a fazer sua própria parte. Tudo isso deu ainda mais robustez ao grupo. Tudo isso fez a retirada americana parecer uma vitória do Taleban. Os americanos foram irresponsáveis ao não cobrar do Taleban que o grupo cumprisse integralmente sua parte no acordo de Doha, que consistia num cessar-fogo total e num engajamento imediato em negociações que transcorressem pela via política. A única coisa que o Taleban fez foi parar de atacar as forças americanas, e isso pareceu ter sido considerado suficiente para que os americanos decidissem seguir adiante [com a retirada].
Então, é claro que eu acho injusto que se coloque toda a culpa nas forças afegãs. Os americanos eram os principais protagonistas do acordo. Foram eles que assinaram os papéis. Eles legitimaram o Taleban. Eles têm uma responsabilidade, e essa responsabilidade agora é de assegurar que haja alguma forma de arranjo inclusivo, antes que eles lavem as mãos completamente em relação ao Afeganistão.
Se o Taleban assumir o controle de fato, de novo, terá nas mãos as tropas e todo arsenal militar que foram deixados para trás pelos EUA. Quais podem ser as consequências? O grupo pode representar uma ameaça para além das fronteiras afegãs?
Amina Khan A situação ainda é, neste momento, muito fluida. Considero difícil que o Taleban consiga exercer o controle pleno sobre todo o país – não acho que todas as regiões aceitem isso, assim como a comunidade internacional. Eu acho que eles mesmos chegarão à conclusão de que precisam entrar em algum tipo de acordo de divisão do poder, que envolva outros atores no Afeganistão. Muitos diálogos nesse sentido já estão acontecendo.
Acho que já há um entendimento de que o Taleban não é capaz de estabelecer um sólido governo unitário por si mesmo. Vai ter de ser algo inclusivo.
Agora, sim, como resultado da rendição das forças nacionais afegãs, muitas armas e munições caíram nas mãos do Taleban, mas o grupo já tinha acesso a todas as armas das quais precisava. Não acho que isso vá tornar a insurgência deles ou a causa deles mais forte. Além do mais, o Taleban não pode simplesmente tomar conta de tudo. Para o bem ou para o mal, há agora instituições que foram erigidas ao longo dos últimos 20 anos [período em que os EUA estiveram no país], e o Taleban não pode simplesmente tomar conta de tudo.
'Se eles não fizerem esses acordos, não conseguirão obter o apoio e o reconhecimento do qual eles precisam tanto – não apenas de parte da comunidade internacional, mas também de países da região'
Acho que teremos pela frente um processo de transição, que terá de ser em alguma medida inclusivo. Tenho certeza disso. Se eles não fizerem esses acordos, não conseguirão obter o apoio e o reconhecimento do qual eles precisam tanto – não apenas de parte da comunidade internacional, mas também de países da região. Por causa disso, da necessidade de obter esse reconhecimento, o Taleban não vai apostar tudo numa tomada militar do poder, como tem sido muitas vezes alardeado internacionalmente.
Se você olhar para a situação no Afeganistão, ela é relativamente estável. Olhe para o fato de que não houve uma tomada sanguinolenta do poder. Há um temor dentro do Afeganistão? Sim, mas o pânico mesmo foi mais em Cabul, e eu acho que isso foi ligeiramente exagerado, porque houve aí o pânico do pessoal internacional, além da reação de parte dos moradores de Cabul também. Foi um pouco exagerado.
É um processo de transição e estamos todos esperançosos de que vá haver algum tipo de marco político, assim como houve em Doha, nos próximos dias.
A sra. acredita que esse é um novo Taleban, menos violento que aquele que governou o país de 1996 a 2001?
Amina Khan É certo que existe muita desconfiança e muita suspeita quando falamos do Taleban, e é claro que a gente só acredita vendo. Eles estão dizendo que mudaram, que estão mais abertos aos direitos das mulheres e falam até mesmo num governo inclusivo, numa nova Constituição nacionalista. Todas essas declarações são importantes porque, lembre-se, o grupo nunca tinha falado antes sobre um Afeganistão inclusivo ou sequer num nacionalismo afegão. Eles nunca tinham falado em dar direitos a minorias.
Mais do que isso: lembre-se que todo esse processo de negociação [que vem desde 2019, na administração Trump, com os acordo de Doha] foi iniciado pelo próprio Taleban. Eles escreveram cartas abertas aos americanos e ao presidente Trump. Então, com certeza, há uma mudança aparente. Penso que temos de ser otimistas precavidos, pois uma coisa é falar e outra é fazer. Mas eu acho que o Taleban foi forçado a mudar.
Eles sabem que o mundo mudou e eles não podem voltar ao poder da mesma maneira que fizeram duas décadas atrás, pois se isolariam do mundo e sua política nunca contaria. É preciso ter em conta também o fato de que houve uma mudança geracional. As pessoas que assumiram o poder em 1996 não estão mais na mesma posição. Além disso, os jovens viram as coisas com outros olhos, alguns de seus filhos passaram a frequentar instituições de ensino, então há no ar um senso de que o grupo deve evoluir. Mas, de novo: temos de esperar e ver.
Ainda assim, acho que é preciso dar uma chance ao Taleban. O fato de que eles estejam exibindo alguns sinais de mudança é algo positivo e acho que outro fato a ser percebido é o de que o grupo está fazendo isso por que sabe que, se fizer qualquer coisa errada, não vai conseguir o reconhecimento e a legitimidade, sem contar o apoio do qual eles desesperadamente precisam – nem tanto da comunidade internacional, mas dos demais países da região, particularmente os que importam: Paquistão, Rússia, China e Irã. Se eles não tiverem reconhecimento e apoio da região, não conseguirão ser relevantes, para dizer o mínimo.
Qual o papel que China, Rússia e Turquia têm desempenhado nesse novo arranjo. E o que esse papel que eles começam a desempenhar representa para o Taleban e para os EUA?
Amina Khan Essa é a primeira vez que a região está presenciando uma coincidência incomum para a qual eu gostaria de chamar a atenção. Se você olhar para a história da região e do país em si, verá que, ali, esses atores sempre tiveram interesses divergentes. O Paquistão estava numa página, apoiava o Taleban, enquanto o Irã estava em outra, apoiando seus próprios aliados no norte [onde, na província de Badakhsan, grupos locais resistiam ao governo do Taleban]. Os chineses estavam alheios e, quanto aos russos, bem, nós sabemos o que eles fizeram [em referência à guerra entre a URSS e o Afeganistão, de 1979 a 1989].
Agora eu acho que os países da região perceberam que não podem mais depender da comunidade internacional para intervir. É hora de eles assumirem as responsabilidades na região, é preciso focar mais numa abordagem consolidada para o Afeganistão. E acho que temos visto isso acontecer.
Em relação aos últimos eventos, todos parecem estar na mesma página, inclusive a Turquia, que não é um país do entorno imediato. Todos buscam paz e estabilidade, o reconhecimento do Taleban como um ator principal, a necessidade de um acordo político inclusivo, o combate ao movimento ilegal de armas e de drogas e, por fim, a segurança de todos contra a ação de grupos extremistas internacionais que estão operando na região. Acho que essa é uma visão consolidada.
O Paquistão está tão envolvido nas conversas com o Taleban quanto estava com o governo anterior. Recentemente, o Paquistão recebeu tanto uma delegação do Taleban quanto uma delegação da Aliança do Norte [bastião de resistência histórica ao Taleban]. Os russos fizeram algo semelhante, recebendo não apenas representantes do Taleban, como membros de outras facções políticas afegãs também. É interessante ver o Irã, que era inimigo do Taleban e agora vem se engajando no diálogo.
Um país que mudou sua política completamente em relação ao Afeganistão é a China, que nós muitas vezes chamamos de “o gigante adormecido” da região. Eles se mantiveram relativamente afastados dos assuntos políticos do Afeganistão, mas parece que nos últimos, especialmente depois de 2014, Pequim vem se engajando de maneira crescente no diálogo com muitas facções e particularmente com o Taleban, cuja delegação foi recebida na China. Então eu acho que há um reconhecimento regional ao Taleban e um relativo consenso sobre o quê fazer no momento atual.
Esses países todos carregam passivos por relações pregressas com o Afeganistão, com exceção da China, que pode trabalhar em consensos regionais, graças à boa relação que criou com o Taleban e com outras fações, e também pelo fato de não carregar um passivo como os demais países. A China pode ser um interlocutor de muita credibilidade nesse novo momento e pode monitorar os acordos que vierem a ser feitos.
Os EUA, por sua vez, dizem que agora o Afeganistão é um assunto de importância regional. Não é. É um assunto global. É injusto que os EUA queiram retirar toda responsabilidade de cima de seus ombros agora, delegando isso aos países da região. Eles têm de dividir as responsabilidades com os países da região. Esperamos que isso aconteça e que não demore demais para acontecer.
Qual a situação em terreno agora no Afeganistão, em relação aos direitos humanos. Há relatórios das Nações Unidas que falam em crimes contra a humanidade e crimes de guerra.
Amina Khan Permita-me ser bem clara aqui: ninguém está absolvendo o Taleban de todas as atrocidades que eles cometeram até aqui. Está tudo documentado e acho que todos estão bem informados da maneira como o grupo violou os direitos humanos, incluindo os direitos das mulheres. Nós sabemos bem disso. E eles têm que ser criticados por isso.
A questão é que o Afeganistão está imerso num tipo de guerra perpétua. Crimes de guerra e crimes contra a humanidade foram cometidos não apenas pelo Taleban, mas também pelos senhores da guerra, assim como por forças do próprio governo. Não podemos tampouco absorver as tropas internacionais, que também cometeram inúmeros crimes de guerra no Afeganistão nas últimas duas décadas.
O que ocorre é que nós temos de nos mover para além desse jogo de jogar a culpa. Há inúmeros assuntos que precisam ser abordados no Afeganistão e há muita culpa e muita responsabilidade para dividir entre todos os envolvidos. É importante agora que as promessas que o grupo fez sejam cumpridas. E isso só vai acontecer quando houver algum tipo de mecanismo de monitoramento em vigor. Nesse sentido, há um papel que as Nações Unidas podem desempenhar, com apoio dos países da região.
Em Cabul, a situação é caótica porque há muitas pessoas que querem sair do Afeganistão. Há uma sensação de pânico. Hamid Karzai [que foi presidente do Afeganistão de 2001 a 2014 e está envolvido num processo de negociação com o grupo] pediu que as pessoas não entrem em pânico e sejam pacientes neste período de transição.
O Taleban sabe que a comunidade internacional está atenta a cada passo do grupo. Não acho que eles tenham interesse em dar passos em falso agora, o que incluiria qualquer desrespeito aos direitos humanos. As mulheres, em Cabul, estão retomando suas rotinas, o que inclui ir à escola, levar os filhos, ir ao médico. A vida está voltando ao normal aos poucos, mas vai levar tempo. É um país que vem de 20 anos em guerra.
É claro que nós temos de ver cada pronunciamento do grupo com desconfiança, mas é preciso dar uma chance ao Taleban porque não há alternativa. Nós vimos, nos últimos 20 anos, os americanos chegarem e tirarem o Taleban do poder. São os mesmos americanos que agora [em 2019] assinaram um acordo com o grupo, abrindo caminho para a volta deles à arena política.
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2021/08/22/%E2%80%98Quem-legitimou-o-Taleban-no-poder-foram-os-pr%C3%B3prios-EUA%E2%80%99
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