Carla Di Pierro, psicóloga do Comitê Olímpico do Brasil -
Para Carla Di Pierro, Jogos de Tóquio foram as Olimpíadas da saúde mental
Carla Di Pierro, 42, psicóloga do COB (Comitê Olímpico do Brasil), define as Olimpíadas de Tóquio como um evento histórico para a psicologia esportiva. “Foram os Jogos da saúde mental”, afirma ela, citando um dos temas mais discutidos desta edição, em especial devido à ginasta americana Simone Biles.
Maior estrela do evento, a atleta abriu mão de disputar finais para preservar sua saúde mental e física.
“Estamos conseguindo desconstruir a ideia de que tem que ser a qualquer custo. Não necessariamente tem que ser”, afirma Di Pierro, que trabalha desde 2012 no comitê. “Estamos conseguindo desconstruir a imagem de herói e de invulnerável do atleta. O atleta é um ser humano. Ele vai poder desistir.”
A psicóloga, que acompanha diversos atletas, entre os quais Ana Marcela Cunha, ouro na maratona aquática, e Bruno Fratus, bronze na natação, comemora a quebra do que ela chama de tabu e diz que as queixas nunca foram “mimimi”, mas doenças graves, algo que a pandemia de Covid intensificou.
Devido à crise sanitária, afirma ela, o COB encaminhou atletas para acompanhamento psiquiátrico, com auxílio de medicação. Antes, já era possível identificar um aumento na demanda, porque a procura por psicólogos no comitê cresce a cada ano. Para ela, essa edição olímpica premiou os “adaptáveis”.
A questão da saúde mental virou a principal história dos Jogos. O atleta sempre lidou com pressão por resultado. O que mudou? A pressão sempre existiu, assim como o sofrimento mental do atleta. O que acontece é que agora estamos falando dele. Agora está começando a ser menos estigmatizado. Sempre existiu sofrimento, sempre existiu ansiedade, sempre existiu transtorno mental, sempre existiu transtorno alimentar, além de depressão, pânico, inclusive com gatilhos na questão do esporte, da pressão, tudo que envolve um ambiente competitivo. O que acontece hoje é que passou a ser mais falado. Mesmo antes da pandemia isso já tinha começado, e a pandemia aumentou ainda mais. Agora a gente pode falar sobre a questão. E o atleta se sente mais empoderado também para olhar e dar nome a esses problemas.A sra. acha que, agora, esse tabu deixou de existir? Não deixou totalmente, mas as iniciativas de alguns atletas abrem espaço para que outros atingidos por depressão, burnout e transtorno de ansiedade, por exemplo, possam falar com menos medo. O que estamos desconstruindo é a imagem de herói e de invulnerável do atleta. O atleta é um ser humano. Ele pode e vai passar por momentos difíceis, ele vai poder desistir. O que a gente está desconstruindo é a ideia de que tem que ser a qualquer custo.
Não necessariamente tem que ser. O COI [Comitê Olímpico Internacional] tem uma movimentação bem importante para mudar essa cultura de que tem que ser a qualquer custo. Eu mesma recebi uma bolsa deles para fazer o primeiro curso do comitê internacional sobre saúde mental em atletas de elite.
A sra. acha que o assunto está sendo tratado da maneira correta? Vivemos um novo momento, em que a gente pode e deve falar sobre esse assunto. E sem olhar como vitimização ou mimimi —vejo algumas pessoas enxergando dessa forma. É importante que cada vez mais a gente transmita conhecimento e orientação a respeito de saúde mental. Uma coisa é a pessoa estar com medo de uma situação ou ansiosa antes de uma competição. Outra é você ter uma depressão, uma ação suicida. A gente não está falando de mimimi, a gente está falando de doenças graves.
Quanto a pandemia impactou no aumento da pressão e do desgaste mental? Tive atletas e amigos próximos que sofreram e foram ao psiquiatra e começaram a tomar medicação. Realmente impactou a saúde mental das pessoas. Não diria que é a única fonte —antes da pandemia a gente já estava preocupado com isso. Mas a pandemia foi mais um gatilho. A gente precisou encaminhar alguns atletas para atendimento psiquiátrico para também fazer uso de medicação para ajudar no tratamento.
A procura por acompanhamento psicológico aumentou nos últimos meses no esporte brasileiro? O COB tem desde 2014 uma área de psicologia, assim como tem uma de preparação física. Com a pandemia, a gente teve um aumento de pedidos de apoio e de suporte emocional dos atletas. Consideramos em primeiro lugar cuidar da saúde mental para depois pensar em performance. Preparar esse atleta para ter habilidades psicológicas para dar conta de uma competição, da pressão e de todas as coisas que o alto rendimento prevê. O COB trouxe para Tóquio cinco profissionais, três na Vila Olímpica, um coach e uma psicóloga no futebol feminino. E também tem os que ficaram no Brasil e estão remotos.
Como é o trabalho que o COB faz? A demanda chega pelo próprio atleta, pela comissão técnica ou pelo próprio COB, que identifica alguma questão e encaminha para o departamento. Geralmente, o atendimento é sistemático. E não é só para motivar o atleta, a gente avalia o perfil. Se identificarmos uma vulnerabilidade psicológica ou características para um transtorno mental, a gente vai olhar para essa questão. Se percebemos a necessidade de um psiquiatra ou de medicação, vamos chamar o profissional para apoiar o atleta. E aí seguimos com o tratamento psicoterápico e, se for o caso, psiquiátrico, até esse atleta melhorar e conseguir de fato voltar.
Como o COB vê o uso de medicamentos para tratamento dessas doenças? Quando a gente identifica algum caso importante, uma depressão na qual o atleta corre risco, a gente chama o psiquiatra para ter a medicação. Também é um tabu, mas a gente encaminha e, óbvio, tudo isso é decidido junto com o atleta. Quando eles não estão bem é mais fácil tomar a decisão do tratamento, porque eles veem que vai ajudar.
A sra. vê um sofrimento maior dos atletas de esportes individuais? Os dados mostram que os atletas de esportes individuais são mais afetados na saúde mental do que os de esportes coletivos. No individual, a carga não é dividida com ninguém. O atleta tem a pressão dele, que ele carrega sozinho.
O COB tem registro do número de atendimentos agora em comparação a outros anos? O que posso te dizer é que a cada ano temos mais atletas com acompanhamento de preparação mental. Porque esse tabu está sendo quebrado, porque os atletas estão nos procurando, porque eles estão entendendo que isso faz parte da preparação total do alto rendimento.
Vimos casos de favoritos que não conseguiram medalhas. A sra. atribui isso a questões psicológicas? Interessante... Quando as pessoas perdem o foco, vira algo mental. Mas quando a gente olha para um resultado de performance, a gente tem que olhar para todas as variáveis. Quando um favorito perde, a gente olha para tudo, inclusive o mental. E vê se precisa melhorar algo ali.
Devido à restrição imposta pela pandemia, atletas não puderam levar familiares a Tóquio. Houve muita reclamação, como no caso do Gabriel Medina. Qual impacto a sra. vê nesse fator? Não é só porque eles estavam longe da família. São vários impactos. Tem que usar máscara, diminuir interação. O que a pandemia nos ensinou é que a gente precisa se adaptar. E os atletas mais adaptáveis a esse cenário conseguiram lidar melhor com as adversidades. Essa foi uma característica positiva. E negativa, para quem não conseguiu.
Que recado Simone Biles deixa para o mundo ao ter desistido de competir em algumas provas? Ela foi muito corajosa. Ela carrega o peso nas costas. Ela ensinou que a gente tem escolha. E tem a escolha do autocuidado.
A Ana Marcela Cunha agradeceu à sra. no fim da prova. Outros atletas também estão mencionando psicólogos. Como recebe isso? Acho incrível. É histórico para a psicologia do esporte. Eles agradecem porque a gente faz parte da equipe. É o maior presente que a gente pode receber, do reconhecimento do atleta. Eu vejo a psicologia se consolidando como uma área importante para o rendimento esportivo.
A sra. acha que o reconhecimento em relação ao trabalho de psicologia foi a principal vitória desta edição olímpica? Esses foram os Jogos da saúde mental e da psicologia como uma área importante e necessária na vida do atleta.
A sra. disse que às vezes parte do próprio atleta procurar ajuda. Qual é o gatilho? Geralmente, eles procuram quando estão mais inseguros, quando aparece uma lesão, quando veem algo muito impactante e percebem que afeta a performance. Quando há fracassos sucessivos. Procuram quando estão em uma situação de vulnerabilidade. Mas tem também quem procure para melhorar aquilo que já faz.
Raio-X
Carla Di Pierro, 42
Psicóloga do COB, acompanha mais de dez atletas que participaram das
Olimpíadas, entre os quais Ana Marcela Cunha, da maratona aquática, e
Bruno Fratus, da natação. Formada na PUC-SP, especializou-se em terapia
analítico-comportamental pelo Núcleo Paradigma. Cursou mindful
performance na Escola de Medicina da Universidade de San Diego, nos
Estados Unidos.
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