Betina Neves 29 de Agosto de 2021
Há quase 20 anos, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman cunhou o hoje amplamente difundido termo “amor líquido” para retratar o modo como estamos nos relacionando. Esse conceito de amor é pensado a partir da lógica dos bens de consumo: a relação só é preservada enquanto trouxer satisfação e utilidade instantânea, se não, é rapidamente substituída por outra. É um amor frágil que paira sob a eliminação imediatista e a ansiedade permanente e que dificilmente constrói relações duradouras.
Isso é reflexo da sociedade capitalista, que valoriza “o produto pronto para uso imediato, o prazer passageiro, resultados que não exijam esforços prolongados e receitas testadas, garantias de seguro total e devolução do dinheiro”, como ele diz no livro “Amor Líquido” (Zahar, 2003).
É provável que, se você se relacionou nos últimos tempos, tenha sentido pelo menos um gostinho do amor líquido: mais quantidade do que qualidade nos encontros, relações que terminam tão rápido quanto começam, pessoas que somem sem dar satisfação – comportamento chamado de ghosting.
Se tiver frequentado alguns dos aplicativos de paquera, cujo uso cresceu mesmo na pandemia, essa sensação pode ser ainda mais forte: para além de facilitadores de encontros – o que, é claro, em muitos casos vêm a calhar –, difícil dissociá-los de um cardápio de gente, controlados por algoritmos de motivação e funcionamento obscuro, com promessa constante de infinitas possibilidades amorosas. Conversas que não saem do “oi, tudo bem?”, convites para transar sem nem perguntar o nome e fotos de “nudes” indesejadas são comuns. Como observou outra socióloga, a franco-israelense Eva Illouz, “sob a égide da liberdade sexual, as relações tomaram a forma de um mercado, mediado por espaços de consumo e uso de tecnologias.”
“Os aplicativos quase que dão permissão para jogar o outro no lixo, dar ‘unmatch’ na hora que quiser, sumir quanto aquilo não te interessar mais. É mais fácil e seguro fazer isso por trás das telas”, diz o escritor e psicoterapeuta Emanuel Aragão, que mantém com a esposa, a atriz Maria Flor, o canal no Youtube “Flor e Manu”, no qual falam sobre as dores e as delícias dos relacionamentos amorosos.
O que nos desagrada, a gente ‘arrasta o dedo para a esquerda’ e descarta
Para Aragão, as ferramentas digitais no geral têm ainda outro efeito: o de exacerbar o individualismo e a impressão de que o mundo gira em torno no nosso umbigo, diminuindo nossa resistência à frustração. “A mágica do algoritmo cria um universo customizado só para você, em que só as suas preferências te rondam. E aí nosso ego vai ficando maior, e vamos ficando menos dispostos a lidar com o outro, nos colocando quase numa posição infantil. O que nos desagrada, a gente ‘arrasta o dedo para a esquerda’ e descarta.”
Na comunidade LGBTQI+, a sensação de descarte também acontece, permeada pelo recorte social. “O afeto LGBT foi historicamente colocado em um lugar proibido, que tem que ser feito às escondidas. E acabamos internalizando isso de alguma forma – muitas pessoas não conseguem nem acessar esse outro lado e ficam só na coisa do prazer físico. E aí, até pelos locais de encontro mais restritos, isso acaba indiretamente incentivando relações superficiais e objetificadas”, diz Hamilton Kida, psicólogo clínico e sócio-fundador da Rainbow Psicologia.
A ilusão do amor romântico, sempre ela
Em episódio da série “Master of None” (2015-2021), da Netflix, o protagonista, vivido pelo comediante americano Aziz Ansari, satiriza a lógica de encontros em aplicativos. Ele manda a mesma mensagem para diversas mulheres e vai com todas ao mesmo restaurante. Entre conversas melhores e piores e situações mais ou menos constrangedoras, ele flagra uma delas usando o aplicativo na mesa, na frente dele, programando um encontro para mais tarde. No fim, ele deita no sofá, frustrado, e abre novamente o aplicativo para recomeçar a busca (a saber: já existe até um termo para a exaustão no uso dessas ferramentas: “dating burnout”).
A situação retratada por Ansari mostra um pouco do paradoxo que vivemos: por um lado, ansiamos por conexões reais e encontros significativos, nos propondo a buscas incessantes. Por outro, queremos que o outro venha pronto, totalmente compatível conosco, e temos pouca paciência para negociar as diferenças e enfrentar as frustrações inerentes a esse processo.
Para a psicóloga clínica Lígia Baruch, doutora pela PUC (SP) e coautora do livro “Tinderellas: O amor na era digital” (Ema, 2019), parte da questão ainda vem das idealizações do amor romântico, reforçadas há mais de cem anos por filmes, novelas, músicas e na publicidade. Essa lógica apregoa que, entre outras coisas, em uma relação, todas as necessidades devem ser atendidas pelo outro, que nosso “vazio” será totalmente “completo” assim, e que o encontro do amor é a solução para todas as agruras da vida.
Antigamente, as relações duravam mais, mas isso tinha um preço, e quem normalmente pagava eram as mulheres. Os homens tinham amantes, outras famílias
“A gente mistura essa ideia equivocada de amor, segundo a qual se espera que as relações se encaixem sem atritos e sem dificuldades, e junta com a pressa e o imediatismo da sociedade de consumo, focada em resultados, em que as pessoas se vendem e querem consumir o outro. Isso dá um caldeirão complicado.” A psicóloga lembra também que há um lado positivo em se poder entrar e sair de relações com mais facilidade. “Antigamente, as relações duravam mais, mas isso tinha um preço, e quem normalmente pagava eram as mulheres. Os homens tinham amantes, outras famílias.”
A escritora carioca Laura Pires, focada em relações afetivas, fala em seu perfil do Instagram sobre como os rótulos dos relacionamentos reforçam a descartabilidade. Para ela, é problemático o fato de dividirmos as relações entre “sérias” e “casuais”, sendo que só dedicamos compromisso e intimidade para as sérias, enquanto as outras a gente vai experimentando (e descartando) até encontrar a “pessoa especial”.
“O discurso hegemônico do amor monogâmico reforça um descarte e até um descaso com relações consideradas casuais e coloca muito peso nas consideradas ‘especiais’. E isso também gera medo de compromisso, relações codependentes e até sofrimento extremo diante de términos”, considera. “Seria muito melhor a gente olhar para cada um como um vínculo afetivo único e encarar a coisa conforme ela vai acontecendo em vez de ficar constantemente avaliando e pesando se aquilo ali vai virar alguma coisa, e que coisa vai virar. É muita pressão.”
A tal responsabilidade afetiva
Os caminhos para transformar a situação envolvem uma tomada de consciência individual e coletiva sobre o cenário atual. Isso passa por conhecer as próprias vontades, dores e construções sobre o amor, até para entender o que vem de dentro e o que é influência da cultura e do sistema. O psicoterapeuta Emanuel Aragão propõe esse processo para quem o assiste no Youtube: “Ali a gente tenta abrir um espaço de pensamento e percepção para ajudar as pessoas a entenderem as próprias necessidades, porque muitas vezes elas ficam em uma busca automatizada e não sabem nem pelo que e porquê”, conta.
Junto com as transformações da era digital, estamos vivendo a transformação da intimidade, o que traz medos e inseguranças
Já a psicóloga Lígia Baruch lembra que estamos em tempos de experimentar novas formas de amar, fora da monogamia, por exemplo. “Junto com as transformações da era digital, estamos vivendo a transformação da intimidade, o que traz medos e inseguranças também. Estamos desenhando mapas novos para viver o amor.”
Enquanto isso, ela recomenda “entender que jogo que estamos jogando” ao nos colocarmos em aplicativos de paquera, por exemplo, com atenção redobrada tanto para os mecanismos propostos ali quanto para como tratamos o outro e como estamos sendo tratados. O termo “responsabilidade afetiva” vem sendo usado para falar desse comportamento mais consciente em relação ao outro, mesmo em contatos breves. É agir com honestidade e comunicação não-violenta, tomando cuidado com as expectativas que se cria – ainda que isso não esteja totalmente no nosso controle.
Podemos ter mais ética, gentileza. Deixar no vazio pode ser mais devastador do que frustrar com uma explicação da situação
“Nossos quereres são complexos e mutáveis, mas podemos sim nos educar para uma maior atenção com o outro, com mais ética, gentileza e coerência. Deixar alguém no vazio é as vezes muito mais devastador do que frustrar com uma frase que explique a situação.”
Fonte: https://gamarevista.uol.com.br/semana/o-que-e-descartavel/relacoes-afetivas-descartaveis/?utm_medium=Email&utm_source=NLSemana&utm_campaign=SemanaGama
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