Tolentino Mendonça*
Há uma frase evangélica que me deixa sempre a pensar. Parece uma mera anotação de circunstância, uma simples marca contextual. E, contudo, quando ela nos perfura, diria que é bem mais do que isso. A frase diz o seguinte: “Naquele dia, Jesus saiu de casa e foi sentar-se à beira-mar” (Mt 1, 1). Pergunto-me pelo significado desse movimento e pelo que significam aqueles idênticos que, em particular nesta estação, também realizamos. Sentamo-nos à beira-mar à procura do aberto, de uma brisa marítima, da frescura da água, de uma respiração diferente. Não somos feitos para o ar condicionado ou para a vida entre paredes. A nossa alma precisa de espaços amplos, de vastidão. Mesmo quando parece que nadamos como peixe na água no férreo quotidiano ofegante, nas tarefas que nos absorvem, no vórtice das rotinas, nesse labirinto das coisas que se impõem. Mesmo quando se diria que o horizonte mais imediato nos dessedenta, precisamos do contacto com o incomparável, do confronto com o silêncio (e não só aquele exterior), da degustação de uma medida maior, pois a vida que, no fundo, desejamos não se reduz àquilo que apressadamente escrevemos em estreitas sílabas. Por isso, nos nutrimos tanto destas deslocações, que não são apenas geográficas. Para apreendermos o que trazemos em nós há que encontrar outros pontos de vista, outros ângulos e perspetivas. Agindo tão em cima dos acontecimentos, tão capturados pela sua obsidiante intensidade nem sempre conseguimos ver ou ver bem. Mudar de sítio oferece a possibilidade de distanciamento. E, não raro, longe da nossa casa conseguimos auscultar melhor o que a vida nos está a dizer. Na distância, as perguntas mais decisivas avizinham-se e não nos defendemos delas, como é nosso hábito. Perguntar-se porque estamos aqui e para quê. Se nos sentimos capazes de abraçar ou de recuperar o sentido original do caminho. Se nos descobrimos apenas utentes e consumidores ou testemunhas credíveis e multiplicadores de um dom. Se olhamos para a vida como um parto incessante ou uma contagem decrescente para o crepúsculo.
É fácil não se dar conta daquilo que a esquadria utilitária dos nossos dias deixa de fora. As verdadeiras viagens transformam o nosso olhar
As férias podem ser mais que uma possibilidade de evasão. O verão não promove necessariamente a vida em fuga para alguma parte. Pelo contrário, pode constituir um tempo favorável para aquela escuta adiada, para um reencontro porventura mais sereno com esse mundo interno que nos habita. Na verdade, a vida está cheia de coisas que não escutámos devidamente. Muitas vezes, a dor e o peso que trazemos é esse: o que a dada altura devia ter sido escutado ou atendido e não o foi. É fácil não se dar conta daquilo que a esquadria utilitária dos nossos dias deixa de fora. As verdadeiras viagens transformam o nosso olhar.
O tempo é “o nosso momento”, a nossa oportunidade para aprender a viver com sabedoria. Nessa linha, o célebre poema do livro bíblico de Qohelet assegura: “Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou...; tempo de chorar, e tempo de rir...; tempo de buscar, e tempo de perder...; tempo de guerra, e tempo de paz.” Este Qohelet é um austero mestre porque recusa o caminho da condescendência, mas é um mestre verdadeiro, porque não aborda a vida como se ela fosse uma ficção ou uma ideologia. Antes, acredita no valor da experiência, no fazer e refazer da existência em todas as suas estações, no gigantesco passo que representa o reconhecimento da vulnerabilidade e da necessidade de perdoar e de se ser perdoado, reconhecendo a própria ambiguidade que nos habita.
*Teólogo. Escritor. Biblista e poeta.
Imagem do Google.
[SEMANÁRIO#2538 - 18/6/21]
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