Anselmo Borges*
no Diário de Notícias
A
doutrina da reencarnação é partilhada por mais de mil milhões de seres
humanos. Basta pensar que ela é património das religiões de origem
indiana: hinduísmo, budismo, etc. Embora se discuta a influência indiana
sobre os primeiros pensadores gregos, é um facto que não só os órficos e
Pitágoras mas também Platão e os neoplatónicos seguiram essa doutrina,
bem como algumas seitas da Idade Média. Entre os seus sequazes contam-se
inclusivamente grandes espíritos do classicismo e do romantismo alemão.
Segundo a investigação de Hans Küng, "poetas e filósofos como Kant,
Lessing, Lichtenberg, Lavater, Herder, Goethe e Schopenhauer seguiram,
pelo menos durante algum tempo, a doutrina da reencarnação". Embora
reinterpretando-a, também o filósofo Ernst Bloch começou por defender a
metempsicose. Hoje, tanto na Europa como na América, a reencarnação é a
crença de enorme número de pessoas, nomeadamente entre os adeptos do
espiritismo, da teosofia e da antroposofia. Quase um quinto dos europeus
adultos, incluindo católicos, dizem acreditar nela: 21%, segundo uma
sondagem em vários países da Europa Ocidental.
O
que com a doutrina da reencarnação se quer explicar é essencialmente o
mal, as desigualdades entre os seres humanos, o seu destino trágico e
incompreensível, responder, portanto, à problemática moral do mundo, à
questão da justiça. Porque é que Mozart manifestava o seu génio já aos 5
anos, porque é que há a criança que nasce mongólica ou cega e outra é
superdotada? Na doutrina da reencarnação, isso explica-se como
consequência das acções das existências anteriores: um deve pagar pelas
suas faltas e purificar-se, outro é beneficiado pelas suas obras boas.
As acções produzem um resultado - bom ou mau -, e há uma lei cósmica de
causa-efeito e de retribuição quase automática e mecânica dos nossos
actos - o karma, segundo o hinduísmo.
A
presente situação é, pois, consequência de vidas anteriores. Deste
modo, pretende-se solucionar o problema da teodiceia - justificação de
Deus -, pois explicar-se-ia o que parece totalmente injusto: que aos
maus a vida corra bem e aos bons tantas vezes corra mal - o mal dos bons
é por causa de culpas anteriores e o bem dos maus por causa de boas
acções. A reencarnação purifica de erros e crimes de vidas precedentes e
é um apelo à responsabilidade moral. Por outro lado, vai-se fazendo um
percurso para melhorar a existência, o que não é possível numa só vida.
A
doutrina da reencarnação não é, porém, imune à crítica. Pergunta-se,
por exemplo: se a actual situação do Homem é consequência da existência
anterior, esta, por sua vez, não deve ser explicada por outra que a
precedeu, e assim sucessivamente, num regresso sem fim de reencarnações,
de tal modo que o mal que se queria explicar fica inexplicado? E de que
serve o recurso a vidas anteriores, se tudo foi esquecido, ficando,
portanto, destruída a identidade pessoal exigida para explicar a
situação de felicidade ou miséria em que cada um se encontra? É certo
que há pessoas que afirmam, em determinadas circunstâncias e perante
factos concretos, o sentimento do já visto ou já vivido, e há até as
experiências dos comatosos, incluindo a sensação de extracorporalidade,
descritas na obra de grande sensação A Vida depois da Vida, do Dr.
Moody. Mas é claro, quanto a estes, que, "se regressaram" à vida é
porque na realidade não tinham morrido, e o outro tipo de experiências
com pretensas lembranças de vidas anteriores encontra explicação ao
nível da parapsicologia, da telepatia, da memória colectiva e do
inconsciente. De qualquer modo, como escreve o teólogo Hans Küng, é
preciso reconhecer que, neste domínio, não há, apesar dos inúmeros
relatos, factos cientificamente estabelecidos e universalmente aceites.
Aliás, deve-se também perguntar: no ciclo das reencarnações, como é que se explicaria o crescimento da população mundial?
A
fraqueza maior da doutrina da reencarnação provém do seu pressuposto
teórico essencial: a concepção dualista do Homem, que seria um composto
de alma e corpo. Na morte, sobrevive a alma, que pode reencarnar noutro
corpo humano, num animal ou até num vegetal. Ora, é precisamente esta
concepção dualista de Homem que é inaceitável. O corpo não é o túmulo da
alma nem simples instrumento seu. Somos hoje cépticos frente à
afirmação de uma alma preexistente ao corpo ou de uma alma separada do
corpo após a morte. Aliás, já São Tomás de Aquino vira que a alma
separada não é a pessoa: "A minha alma não sou eu." Como admitir o
dualismo se, quando pergunto porque é que eu sou eu, porque é que sou
como sou, tenho de responder que o meu corpo faz parte da minha
identidade? Nascido de outros pais, com outra herança genética, com
outra educação, é evidente que não seria eu.
Há
na reencarnação a ideia de que o Homem pelo seu esforço constantemente
repetido em vidas sucessivas pode alcançar a plenitude da sua
realização. Isso não dá conta da realidade humana. O Homem permanecerá
sempre finito, sem poder dar por si o salto para o Infinito.
É
preciso reconhecer que a vida em plenitude, sem a qual a existência
humana não encontra sentido adequado, só pode ser acolhida como dom
gratuito de Deus. Na perspectiva cristã, o Homem realiza a sua salvação
respondendo activamente à oferta graciosa que Deus lhe faz, bastando uma
vida. "Em vez da lei cruel da causalidade do karma", na expressão de
Hans Küng, o cristianismo anuncia "o Deus misericordioso e magnânimo",
que ressuscita os mortos.
* Padre e professor de Filosofia.Imagem da Internet
https://www.dn.pt/opiniao/reencarnacao-13991558.html
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