Filósofo, que morreu na terça (27), falou ao canal Curta! sobre morte, democracia e governo Bolsonaro
[RESUMO] A Folha reproduz os principais trechos de uma entrevista inédita que José Arthur Giannotti concedeu a um programa de TV em 2019. O filósofo, que morreu na terça (27), aos 91 anos, diz na conversa que não há preparação para a morte, analisa as profundas transformações econômicas e sociais no século 21, explica uma transformação radical na história da filosofia, lamenta a guinada autoritária em curso no Brasil e outros países e faz uma defesa da política e da democracia como formas de civilizar os conflitos na sociedade.
Ao fim da conversa com o professor emérito da USP José Arthur Giannotti, o interlocutor lembrou “que filosofar é aprender a morrer”, título de um dos mais conhecidos ensaios do francês Montaigne. “Ninguém aprende a morrer”, respondeu o filósofo paulista em uma entrevista até agora inédita. “A gente sabe que [a morte] vai acontecer, mas é como um raio que cai do céu.”
Um dos fundadores do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), do qual foi presidente em duas ocasiões, Giannotti morreu na terça (27), aos 91 anos. A causa não foi divulgada.
Autor de livros como "Trabalho e Reflexão" (1983) e "Certa Herança Marxista" (2000), nos quais desenvolveu uma análise crítica das ideias do pensador alemão Karl Marx, ele se tornou referência inescapável até para intelectuais simpáticos ao marxismo, como o economista Paul Singer. Aliás, Giannotti, Singer e outros amigos, como Bento Prado Jr., Ruth e Fernando Henrique Cardoso, participaram das leituras de “O Capital”, principal obra de Marx, no final dos anos 1950 na USP.
Em outubro de 2019, pouco mais de cinco meses antes da pandemia do coronavírus, o professor recebeu em sua casa, em São Paulo, a equipe do diretor Daniel Augusto para a gravação de uma entrevista para a terceira temporada da série “Incertezas Críticas”, do canal Curta!.
Com a eloquência aprimorada ao longo de décadas de docência, Giannotti falou sobre a morte, a filosofia e o capitalismo do século 21. Tratou ainda do governo Bolsonaro, de política e de guerra nessa entrevista à qual a Folha teve acesso com exclusividade.
Clausewitz [estrategista militar prussiano da virada do século 18 para o 19] dizia que a guerra é a continuidade da política. Eu diria que a política é a contenção da guerra, é o momento em que você vê o seu outro não mais como inimigo, mas como adversário
Embora sejam de um ano e dez meses atrás, os comentários do filósofo se mantêm espantosamente atuais. “Neste mundo econômico em que vivemos, em que os empregos são cada vez mais informais e dependem cada vez mais de uma especialidade do conhecimento, não há mais a possibilidade de manter um trabalho e uma família nos moldes tradicionais”, diz o professor durante a gravação.
“Do outro lado, tem uma transformação impensável da sexualidade pela simples razão de que a pílula [anticoncepcional] veio cortar a sexualidade da questão da geração. Hoje, não há mais relação entre sexualidade e geração, o que é um grande escândalo para as pessoas mais tradicionais, um escândalo ainda maior para os crentes. São aqueles que têm um livro, como a Bíblia, e acreditam que a verdade está lá.”
Esboçado o contexto, Giannotti alcança o estado das coisas no Brasil. “O ar guerreiro do presidente Bolsonaro”, diz ele, integra “uma política que aglutina um certo número de pessoas que são incapazes de viver a modernidade e transformam os diferentes em inimigos”.
Vale aqui um breve recuo no tempo. Em setembro de 2017, Giannotti falou à Folha em virtude do lançamento de "Os Limites da Política" (Companhia das Letras), seu penúltimo livro, assinado por ele e pelo professor de filosofia da Ufscar (Universidade Federal de São Carlos) Luiz Damon Santos Moutinho.
Àquela altura, o então deputado federal Jair Bolsonaro não aparecia como favorito na corrida presidencial do ano seguinte, mas era um nome em ascensão. “O que o senhor pensa sobre ele?”, perguntou o jornal. “Eu não penso, eu me jogo da ponte [risos]. No Brasil, costumava haver o seguinte: o país caía em uma crise, e os militares entravam [no poder]. Isso, felizmente, não aconteceu desta vez. Por outro lado, sempre existem os substitutos dos militares, e um deles é o Bolsonaro. Seria um desastre.”
De volta à entrevista a Daniel Augusto, em 2019. Giannotti diz como o autoritarismo se fortalece quando a política estimula o conflito em vez de domá-lo.
“Penso que a política e a democracia estão muito relacionadas à guerra. Clausewitz [estrategista militar prussiano da virada do século 18 para o 19] dizia que a guerra é a continuidade da política. Eu diria que a política é a contenção da guerra, é o momento em que você vê o seu outro não mais como inimigo, mas como adversário”, afirma o professor.
“Em uma democracia, uns ganham, outros perdem. Mas os perdedores não vão colaborar com a execução das tarefas dos vencedores; se eles puderem, vão puxar o tapete, isso é normal. A democracia não exclui o conflito. Vou usar uma palavra entre aspas, a democracia ‘civiliza’ o conflito. Ora, o que temos hoje, em algumas partes do mundo, é a política como incentivo ao conflito.”
Giannotti continua: “A única coisa que podemos fazer é começar a democracia em casa, com nossos amigos, no nosso trabalho e daí por diante. Criando um ambiente de generosidade que não permita a violência como forma de governar”.
Em 2020, ele lançou “Heidegger/Wittgenstein - Confrontos” (Companhia das Letras). Como quase tudo o que escreveu, essa última obra exige uma leitura extremamente atenta, que frequentemente requer idas e vindas.
Na entrevista ao Curta!, porém, estava em ação menos o professor de filosofia e mais o intelectual público, figura constante e contundente nos debates políticos do país nas últimas décadas. “Temos uma situação em que a liberdade de pensamento pode ser tomada como uma atividade altamente revolucionária.”
Giannotti também abordou, de forma bastante sucinta, a história da filosofia. “Em Platão, Aristóteles, a filosofia foi coroada pela lógica formal. A maneira de pensar é o silogismo. Heidegger e Wittgenstein, os dois maiores filósofos do século passado, tiraram a filosofia do domínio da lógica. A coordenadora da filosofia passa a ser a linguagem. Esse é um passo extraordinário, que diferencia a filosofia antiga da contemporânea. A palavra não é apenas um lugar de determinação, ela é coroada de indeterminações.”
Ele prossegue: “Wittgenstein faz uma crítica feroz ao dizer que as filosofias do passado estiveram entranhadas de erros gramaticais, de erros que pensavam a gramática como se fosse um manual de qualquer ferramenta quando a linguagem é, na verdade, uma caixa de ferramentas e você usa essa ferramenta uma vez, depois outra e assim por diante”.
Maria Hermínia Tavares, professora aposentada de ciência política da USP e colunista da Folha, foi além das observações protocolares ao comentar a morte do filósofo: "Foi uma pessoa de enorme paixão pelas ideias, que defendia as ideias com grande entusiasmo e alguma agressividade", ela lembrou. "Foi um intelectual no sentido mais pleno da palavra."
Marilena Chaui, professora emérita da Faculdade de Filosofia da USP, como foi Giannotti, disse algo semelhante: "Ele foi meu primeiro professor na USP. Tinha uma personalidade impositiva, momentos de grande fúria diante da ignorância dos alunos. E, ao mesmo tempo, uma exigência filosófica que só um grande pensador pode ter".
Natural, portanto, que colegas da academia e jornalistas se sentissem intimidados diante desse mestre tão erudito quanto cortante —ao menos em um primeiro momento. Foi também o que aconteceu com Daniel Augusto, diretor da série “Incertezas Críticas”.
“Ele recebeu-me à tarde em sua casa no Morumbi. Antes de conversarmos, eu estava apreensivo: conhecia o rigor da sua obra, as polêmicas que gerou, além de ouvir falar muito dele por pessoas em comum. Toda a minha inquietação logo se dissipou: gentil e bem-humorado, passamos um bom tempo conversando (antes, durante e depois da entrevista). Não fosse a equipe de filmagem me chamar para ir embora, tive a impressão de que poderíamos passar ainda horas ali”, lembra o diretor.
“Entre as coisas que disse, surpreendeu-me a afirmação de que não escreveria mais livros depois de ‘Heidegger/Wittgenstein’. Apesar de se mover com cautela por conta de uma perna machucada, a velocidade, a precisão e a ironia do seu pensamento sinalizavam-me que nele ainda existiam muitos outros livros em gestação.”
Daniel continua: “Naquela tarde, ele me mostrou algo que todo filósofo deve ter: a disposição para ouvir pacientemente o outro. Também nesse aspecto, não parecia alguém acomodado ao que já disse, mas aberto ao argumento contrário, disposto a repensar momentos de sua obra e relançá-los ao debate. Discorde-se ou não dele, Giannotti foi e continuará uma referência fundamental para a filosofia no Brasil”.
Com um episódio de 25 minutos por semana, a nova temporada da série produzida pela Grifa Filmes estreia em 12 de agosto, com a participação de Christian Dunker, psicanalista e professor da USP.
Nas semanas seguintes, serão exibidas, entre outras, entrevistas com o filósofo Paulo Arantes, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e a coordenadora da coleção Feminismos Plurais e colunista da Folha, Djamila Ribeiro. Giannotti está no 10º dos 13 episódios de “Incertezas Críticas”, com apresentação em 14 de outubro e reprises nos dias seguintes.
No final da entrevista, quando comentava o momento sombrio da política brasileira, o professor disse: “Não gostaria de morrer sem que alguma luz se abrisse nesse túnel”. Há luz?
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