Tolentino Mendonça*
Lembro-me de uma conversa com a escritora Nélida Piñon, na Capela do Rato. A dada altura, alguém a interpelou sobre o que seria decisivo na construção de um escritor. Ela respondeu mais ou menos isto: a existência dos outros. E explicou que sempre se preparou para o encontro consigo mesma, para esse encontro que na literatura inapelavelmente se joga, viajando em pensamento até essa galáxia longínqua, radical e silenciosa que é a existência dos outros, inclusive a daqueles e daquelas que nos são mais próximos. E que o fazia não com a pretensão de desvendar sabe-se lá que segredos, mas pelo exercício de pura curiosidade pela existência em si. O que faz cada um quando está só? Como caminha descalço pela sua casa? Como abre ou fecha uma janela e depois outra? Como se acalma estando ali ou como se agita e sofre? Como trabalha e repousa? Como segura um objeto qualquer e o contempla? De que se alimenta? Que coreografia de gestos úteis e inúteis desenha? Dá-se tempo? Não se dá tempo? Se tocar o telefone atende ou não atende? O que sente estando em si nesta precisa hora?
Wolfram Eilenberger recorda a pergunta da médica assistente do sanatório de Ashford a Simone Weil: “Diga-me o que faz na vida.” Simone terá respondido: “Interesso-me pela Humanidade”
Mais frequentemente do que supomos fracassamos, porque nos falta a capacidade de ver a realidade dos outros como ela é, de a olhar com gentileza e atenção, de a interpretar não a partir do nosso arsenal de preconceitos, mas do seu contexto objetivo. Um interesse assim pela existência dos outros ajuda-nos a diminuir a rigidez de tantos precipitados juízos e a favorecer degelos dentro de nós. Trata-se de um equívoco achar que um ponto de vista unívoco serve para mensurar a inteira realidade, que é díspar, heterogénea, descontínua e complexa, mesmo quando evidentemente partilha tantos elementos comuns. Falta-nos conhecimento. A tentação mais grosseira é, por isso, sobrepor uma cortina de saberes feitos e de eficazes escusas, em vez de enfrentar essa carência com humildade e dispor-se a fazer caminho nessa direção.
O alemão Wolfram Eilenberger, editor da “Philosophie Magazin”, uma das mais importantes revistas de filosofia, havia já publicado um estudo sobre quatro autores (Walter Benjamin, Martin Heidegger, Ernst Cassirer e Ludwig Wittgenstein) que, no seu entender, protagonizaram uma verdadeira revolução no modo de pensar e abordar as questões decisivas da vida. Essa mutação transparece também na forma que Eilenberger escolheu para esse primeiro livro, “O Tempo dos Mágicos” (2018), onde mistura a biografia e o pensamento desses quatro pais da contemporaneidade, observando-os particularmente no período entre 1919 e 1929. Na sua obra mais recente, “Fogo de Liberdade: a Salvação da Filosofia Em Tempos Sombrios” (2020), dedica-se ao período entre 1933 e 1943, e relata não só a fundamental reflexão sobre a liberdade desenvolvida pelas pensadoras Hannah Arendt, Simone de Beauvoir, Ayn Rand e Simone Weil, mas o modo como elas pessoalmente a incarnaram. Cada uma delas, com a sua original gramática, testemunha uma forma de pensar a existência humana, uma forma que não aceita ficar restrita à abstração, mas se assume como um multiforme abraço à existência de todos. Beauvoir e Ayn Rand escreveram, por exemplo, romances. Arendt aprofundou um método de análise histórica onde o político era entendido como expressão do amor ao mundo. Eilenberger recorda a pergunta da médica assistente do sanatório de Ashford a Simone Weil, que deixou uma das obras mais fulgurantes do século XX dispersa em cadernos, anotações diarísticas e cartas: “Diga-me o que faz na vida”. Simone terá respondido: “Interesso-me pela Humanidade.”
* Cardeal português. Biblista. Poeta. Escritor.
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Fonte: https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2543/html
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