Luís Castro Mendes*
Keats dizia que o poeta é o menos poético dos seres, porque não tem identidade. Talvez essa capacidade de viver pelos outros e, em nome dos outros, usar as palavras constitua hoje, nestes tempos pejados até à náusea do peso das identidades, uma grave falta e um culposo desvio. Se Fernando Pessoa não era nem um camponês, nem um médico monárquico, nem um engenheiro naval, que direito tinha ele de falar por Alberto Caeiro, por Ricardo Reis e por Álvaro de Campos, numa clara e despudorada apropriação cultural? Se Shakespeare não era um mouro de Veneza, nem um príncipe da Dinamarca, que direito tinha ele de vir falar por Otelo e Hamlet?
O que se passou no Teatro São Luiz e o que se passou há dois anos com as traduções da poeta Amanda Gorman são sintomas de um mal profundo. Há identidades tão humilhadas que julgam ter o direito a excluir da sua afirmação, defesa e representação todos aqueles que não pertençam à sua espécie.
Ora a substituição da humanidade por identidades fechadas e autotélicas constitui uma marca evidente, que deveria ser um sinal de alarme, de uma deriva fascista. Quando eu nego a humanidade dos outros para me fechar na minha própria identidade, quando eu fecho o diálogo para fora da minha mónada, estou a caminhar no sentido da negação da generalidade do humano e da solidariedade entre os humanos, negação que é própria dos pensamentos nacionalistas e totalitários.
"O que se passou no Teatro S. Luiz foi um ato claramente fascista. E se me falarem de identidades humilhadas, responderei que não se luta contra a humilhação criando mais humilhados."
Substituir a luta social pela guerra das identidades é o movimento induzido pelo neoliberalismo individualista, para quem, nas palavras da senhora Thatcher, "não existe tal coisa como uma sociedade". Se a solidariedade se torna um valor esquecido, só dentro da minha identidade eu devo exercer a minha sociabilidade e para os outros reservarei a violência e a agressão.
Comparei uma vez o Tarrafal aos campos de concentração nazis, o que me valeu a fúria dos defensores da bondade e da mansidão do regime salazarista. Esta ideia que expulsar do palco um ator que representa a minha situação por ele não estar exatamente na minha situação é, mais do que uma rejeição da cultura, uma rejeição da possibilidade de reconhecer valores e qualidades comuns a todos os seres humanos. Esta crítica vai certamente valer-me os mesmos insultos que me dirigiram por eu ousar aproximar o bondoso Professor Salazar do Führer Adolf Hitler. Por isso, expondo-me a todos os ataques, eu reitero: o que se passou no Teatro S. Luiz foi um ato claramente fascista. E se me falarem de identidades humilhadas, responderei que não se luta contra a humilhação criando mais humilhados.
Estamos a aproximar-nos de uma sociedade sem solidariedade. Neste admirável mundo novo só conta aquilo que eu sou, não aquilo que eu faço, aquilo que eu afirmo e não qualquer tentativa de diálogo, aquilo que eu ganho para mim e não aquilo que eu devo aos outros. Um jovem explicava-me outro dia como era injusto que ele contribuísse para a minha reforma com os seus descontos; quando lhe disse o que eu próprio tinha descontado durante toda a vida para a minha reforma, respondeu-me que esse dinheiro que eu tinha descontado fora beneficiar outros velhos e consequentemente ele nada tinha a ver com isso.
É este o mundo novo que se prepara, com as bênçãos de Hayek, de Friedman e da Senhora Thatcher : "There is no such thing as society". Nada reconhecemos fora das fronteiras do nosso "Eu". Aristóteles e Adam Smith ficariam bem surpreendidos se conhecessem o mundo em que vivemos.
*Diplomata e escritor
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/a-beleza-de-identificar-fascistas-15752251.html
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