Anselmo Borges*
Bento
XVI morreu no passado dia 31 de Dezembro. As suas últimas palavras
foram: “Senhor, eu amo-te.” Não há dúvida de que o seu grande legado
para a História foi a renúncia, sinal de humildade e dessacralizando o
papado. Para lá disso, fica também, como sublinhou José Manuel Vidal, “o
milagre da coabitação e da transição tranquila”. Francisco punha fim a
uma Igreja piramidal, clerical, carreirista, autorreferencial, e, agora,
a caminho de uma Igreja sinodal, circular, “hospital de campanha”. E
podemos imaginar o sofrimento de BentoXVI ao “ver como a sua obra era
derrubada” ao mesmo tempo que era “duro para o Papa Francisco este
trabalho de desmontagem perante os olhos de Bento XVI… No entanto, de
modo geral, a convivência durante quase dez anos foi delicada e até
fraternal”. Seja como for, não se deve de modo nenhum ignorar a
diferença entre Bento XVI e Francisco, bem clara ao ler a obra póstuma
de Bento XVI, Che cos’è il Cristianesimo (O que é o
cristianismo), onde, por exemplo, defende uma ligação, dir-se-ia
intrínseca, entre a ordenação sacerdotal e a obrigação do celibato.
Durante
o seu funeral houve quem pedisse a canonização rápida — lá apareceu o
cartaz do tempo do funeral de João Paulo II com “Santo subito”. Creio
que isso não vai acontecer nem seria bom que acontecesse, como se prova
ao pensar hoje na precipitação em canonizar João Paulo II. Nesse sentido
se pronunciou o cardeal Walter Kasper, antigo prefeito do Dicastério
(Ministério) para a unidade dos cristãos, usando até uma nota de humor:
“Para o Céu não se vai em comboio de alta velocidade”.
Esta
é mais uma iniciativa dos conservadores no sentido de “utilizar” Bento
XVI contra Francisco, com a finalidade de precipitar a queda deste. É
sabido que enquanto Bento XVI vivesse a renúncia de Francisco seria
muito difícil. Por isso, alguns ultraconservadores e opositores de
Francisco apressaram-se na luta de ataques contra ele, a começar pelo
secretário de Bento XVI, o arcebispo G. Gänswein, que se precipitou a
publicar as suas memórias no livro anunciado ainda antes do funeral: Nient’altro che la verità
(Só a verdade). O arcebispo de Viena, cardeal Christoph Schönborn,
criticou-o: “Uma indiscrição indecorosa. Não me parece bem que se
publiquem coisas tão confidenciais, sobretudo por parte do secretário
pessoal”. W. Kasper também disse que “seria melhor estar calado”.
De
qualquer forma, no livro não há grandes revelações. Uma delas refere a
dor de Bento XVI pelo facto de Francisco praticamente ter acabado com a
possibilidade da Missa em latim. Pessoalmente, pergunto: porquê lamentar
a proibição da Missa em latim? De facto, reclamar a possibilidade da
celebração em latim e de costas para o povo é, nem que seja só
inconscientemente, uma forma de clericalismo, pois só o clero (bispos,
padres) teria a possibilidade de falar directamente com Deus, como se
Deus só entendesse latim!
O
cardeal Pell, entretanto falecido, apontou o pontificado de Fancisco
como “um desastre”. E o cardeal Gerhard Müller, antigo prefeito do
Dicastério para a Doutrina da Fé, no seu novo livro de entrevistas com a
vaticanista Franca Giansoldati, publicado ontem, In buona fede (Com boa fé), ataca frontalmente Francisco, também por causa da Constituição Apostólica sobre a reforma da Cúria, Praedicate Evangelium
(Pregai o Evangelho). Para Müller, existe uma “tendência para reformar a
Igreja no sentido protestante” e que deriva de “uma visão liberal que
despreza a tradição”.
E
Francisco vai resignar? Já afirmou: “Se vir que não posso continuar ou
estou a causar dano ou a ser um estorvo, espero ‘ajuda’ para tomar a
decisão de retirar-me e, chegado esse dia, prefiro ser considerado
simples Bispo emério de Roma em vez de Papa emérito”. Note-se que, de
facto, teologicamente, não é aceitável o título “Papa emérito”. E também
disse a que gostaria de se dedicar: “Se sobreviver à renúncia, gostaria
de fazer coisas deste tipo: ouvir as pessoas em confissão e ver
doentes.”
No
entanto, a resignação não está para breve. Ele próprio acaba de
declarar em entrevista à Associated Press que está “bem de saúde” e que a
dor no joelho praticamente tinha desaparecido. De qualquer modo,
“governa-se com a cabeça e não com as pernas.” Repetiu que, no caso de
renúncia, seria “Bispo emérito de Roma” e viveria na residência para
padres reformados da diocese.
Para
já, continua com os seus compromissos: na semana próxima, visitará a
República Democrática do Congo e o Sudão do Sul; em Agosto, está em
Portugal para a Jornada Mundial da Juventude e já advertiu que a JMJ não
pode ficar reduzida a turismo religioso e espectáculo, e eu,
pessoalmente, estou convencido de que não gostará que a celebração da
Eucaristia final seja num altar-palco com o custo de mais de 4 milhões
de euros.
Dedicar-se-á
intensamente à continuação da preparação e celebração do Sínodo dos
Bispos sobre a sinodalidade em Outubro próximo, continuando no ano de
2024. De facto, a Igreja atravessa uma das suas mais dramáticas crises e
precisa de uma mudança estrutural. Para ele, é bom haver críticas,
“porque isso quer dizer que há liberdade para falar. A única coisa que
peço é que mas digam na cara, porque assim crescemos todos, não é
verdade?”
O
legado de Francisco será precisamente uma Igreja sinodal, caminhando
todos em conjunto, sem “imperador” e “uma ditadura da distância”.
*Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 28 de janeiro de 2023
Fonte: https://e-cultura.blogs.sapo.pt/bento-xvi-morreu-e-agora-francisco-1418329
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