quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Atos golpistas: como funciona a psicologia da extrema direita brasileira

 Por Laura Greenhalgh — Para o Valor, de São Paulo

Cenas da barbárie em Brasília: um exército formado para destruir a democracia, no anseio de uma intervenção militar — Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

 Cenas da barbárie em Brasília: um exército formado para destruir a democracia, no anseio de uma intervenção militar — Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Especialistas analisam o fenômeno que vem levando grande parte da população a aderir a uma realidade paralela

“Olha aqui, os policiais não estão fazendo nada e o Congresso está invadido. Que lindo. São brasileiros que enfrentaram bombas, nem sei de onde vêm esses tiros... só sei que estou aqui, feliz da vida. Mônica, João, isso é para vocês.”

A mensagem é de uma mulher de meia-idade, que foi a Brasília participar dos atos golpistas de 8 de janeiro. Sua voz é comovida, porém, calma e pausada. Serve de fundo para as cenas de caos na Praça dos Três Poderes que ela capturava pelo celular. “Está pacífico...”, repete ao narrar o vídeo da sua epopeia. Talvez tão relevante quanto saber quem é a mulher e o que a levou a integrar aquela horda de vândalos depredadores seria entender o sentido profundo desta frase: “Mônica, João, isso é para vocês”.

Quem seriam os herdeiros da sua aventura? Filhos, netos, amigos chegados, não se sabe. Alistando-se num exército de demolidores da democracia, no anseio de uma intervenção militar que desse fim a um governo legitimamente eleito e recém-empossado, a mulher parecia viver o transe da sua relevância. Tanto que tratou de transferi-la em tempo real, pelo celular, para destinatários muito especiais. Falava como combatente. Arriscou-se para chegar à capital federal. Resistiu. Invadiu. Acredita que seu esforço será garantia de um futuro melhor para Mônica e João.

Enquanto a “patriota” postava o vídeo, o Congresso e o Palácio do Planalto estavam sob o signo da barbárie. Não tardaria a acontecer o mesmo com o Supremo Tribunal Federal. O que se viu naquela tarde foram cenas de violência e selvageria, protagonizadas por invasores que quebravam espaços públicos de dentro para fora, muitos com a destreza de gente treinada em táticas de assalto. O terror que assombrou o Brasil e o mundo destoava por completo do estado de graça da mulher do vídeo. Calcula-se em 4 mil o número total de participantes da tentativa de golpe. Feitas mais de 1.400 audiências de custódia, havia em torno de mil indivíduos com prisão preventiva decretada, no momento da conclusão deste texto.

Cenas da barbárie em Brasília: um exército formado para destruir a democracia, no anseio de uma intervenção militar — Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Cenas da barbárie em Brasília: um exército formado para destruir a democracia, no anseio de uma intervenção militar — Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Muito tem se especulado sobre realidades paralelas em que brasileiras e brasileiros se confinaram nos últimos tempos, rejeitando dados objetivos, e mesmo subjetivos, a partir das experiências existenciais que lhes toca viver. São milhões de pessoas encapsuladas em bolhas de “gente que pensa como a gente”, nas redes sociais. Ali trocam informações majoritariamente inverídicas, apavoram-se com falsos alarmes, divertem-se com tiradas de humor macabro, difamam personalidades do mundo cultural, político, acadêmico, reforçam preconceitos, professam religiosidades e, sobretudo, indignam-se todo santo dia. Nesta e nas próximas páginas, é justamente esse fenômeno psicossocial que será apreciado por especialistas de diferentes áreas.

“Não é exagero afirmar que o Brasil se tornou laboratório de realidade paralela”, propõe de saída o historiador e cientista político João Cezar de Castro Rocha, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e autor, entre outros títulos, de “Guerra cultural e retórica do ódio” (Caminhos). “É fácil verificar isso: hoje todos temos ao menos um parente ou amigo próximo que se enredou na trama bolsonarista. Foram quatro anos de uma dieta brava de desinformação, a ponto das pessoas passarem a acreditar só no que lhes era oferecido, descolando-se da realidade.”

Embora circulem estimativas imprecisas sobre o número dos apoiadores mais exaltados de Jair Bolsonaro, projetadas a partir da presença de manifestantes em portas de quartéis, em bloqueios de estrada e pelo país - diz-se algo em torno de 100 mil -, Castro Rocha acredita que este segmento pode ser bem maior, considerando-se o universo de 58 milhões de votos recebidos pelo ex-presidente na campanha de 2022. “Falo daqueles com os quais não há chance de diálogo. Se divido uma mesa de restaurante com outras pessoas e uma delas diz que Bolsonaro fez bem ao país, peço uma garrafa de vinho e duas taças. Vamos conversar. Mas, se esta pessoa afirma que o coronel Brilhante Ustra, um torturador condenado, foi um herói nacional, daí pago a conta e vou embora. Farei o mesmo se a pessoa cravar que mulheres devem ganhar menos do que os homens ou que negros são seres inferiores. São situações em que conversar é perder tempo.”

Esta simulação de casos tem a ver com a linha de pesquisa do professor nestes tempos bicudos. Recuperando uma teoria dos anos 1950, a “dissonância cognitiva”, desenvolvida pelo psicólogo americano Leon Festinger (1919-1989), Castro Rocha procura entender os mecanismos associados ao modo como um indivíduo lida com dados da realidade. Festinger demonstrou que faz parte da condição humana uma certa dissonância entre “o que eu creio” e “o que eu faço”. Conhecido exemplo é o do médico pneumologista que fuma. Sabe que faz mal, mas não abre mão dos seus charutos.

“Não é exagero afirmar que o Brasil se tornou laboratório de realidade paralela”, diz João Cezar de Castro Rocha, professor da Uerj — Foto: Antonio Scorza/Agência O Globo

Não é exagero afirmar que o Brasil se tornou laboratório de realidade paralela”, diz João Cezar de Castro Rocha, professor da Uerj — Foto: Antonio Scorza/Agência O Globo

Trazendo o fenômeno para o campo social, Castro Rocha observa a ampliação da dissonância quando, numa espécie de looping, indivíduos passam a viver em comunidades virtuais ou bolhas que retroalimentam as suas crenças. “Daí a dissonância torna-se coletiva e perigosa. É quando as pessoas consomem teorias da conspiração que são potencializadas na midiosfera extremista, ou seja, num ecossistema de desinformação operando 24 horas por dia, todos os dias da semana.” Nessa midiosfera, segundo o professor, cabem grupos de WhatsApp, canais do YouTube, redes sociais, aplicativos e, elemento externo, a “mídia amiga”, como ideólogos de extrema direita nomeiam determinados veículos de comunicação comerciais, visivelmente alinhados.

A maior parte do Brasil, constituída de pessoas que rejeitam o ser político Jair Bolsonaro e pessoas que nele votaram sem endossar seu viés autoritário e antidemocrático, presenciaram uma escalada retórica ao longo do mandato presidencial, especialmente nas infovias. E funcionou para a ampliação da base de apoio do mandatário. Isso levou o escritor e psicanalista Christian Dunker, ouvido pelo Valor, a refletir sobre o enraizamento do bolsonarismo.

“Com toda certeza já se pode falar em um movimento social dando suporte a um projeto de poder”, garante Dunker, autor de “Lacan e a democracia” (Boitempo), livro no qual explora a articulação entre  psicanálise e política. O que se viu em Brasília, prossegue, seria apenas uma amostra desse movimento, incluindo mulheres e homens que sequer tinham claro para si o que reivindicavam. “Acreditaram que dariam um golpe de Estado contando com Bolsonaro fora do país, os generais em silêncio e as polícias em estado de leniência.”

Sempre recorrendo ao campo psicanalítico, Dunker chama a fúria destruidora do 8 de janeiro de “crença delirante artificialmente produzida”. Vale explicar: nem todos os participantes da Festa da Selma, codinome criado nas redes para batizar a invasão golpista, são psicóticos. O que serve de explicação para aquelas ondas humanas derrubando barreiras e adentrando os palácios, para daí quebrar sem dó o que lhes desse vontade, seria uma situação clínica descrita há mais de um século: a folie à deux, loucura a dois, que, na verdade, pode ser a três, a quatro, a mil. Como elemento de ignição, o promotor de um estado delirante envolve outro, daí mais outro, e essa adesão cresce a ponto de gerar uma realidade terceira, que já não pertence a ninguém.

“Os ressentidos encontram múltiplas motivações para entrar nessa mitologia”, diz a psicanalista Maria Beatriz Vannuchi — Foto: Reprodução/Facebook

Os ressentidos encontram múltiplas motivações para entrar nessa mitologia”, diz a psicanalista Maria Beatriz Vannuchi — Foto: Reprodução/Facebook

“A realidade então se subordina a certezas construídas artificialmente, produzindo crenças que, para continuar a existir, precisam ser praticadas continuamente. É o que explica o compartilhamento incessante de fake news pelo celular, a tendência de ouvir sempre os mesmos gurus, a vontade de fazer parte da mesma bolha, e assim por diante. Em resumo, é a prática cotidiana da crença que dá consistência social ao delírio”, arremata Dunker.

São meramente personagens tresloucados os que se cobrem com a bandeira, tatuam bizarrices pelo corpo, rezam em torno de pneus e ameaçam a vida de ministros da Suprema Corte? Afinal, quem manipula e quem é manipulado? Mentores, organizadores e financiadores do projeto golpista de 8 de janeiro têm sido identificados e deverão responder criminalmente. Idem para os depredadores do patrimônio público. Porém, admitindo-se haver também uma massa de manobra nessa história, Dunker traz para a conversa um livro póstumo do colega Contardo Calligaris, editado em 2022, cujo título é “O grupo e o mal: estudo sobre a perversão social” (Fósforo). Trata-se da tese de doutorado de Calligaris, defendida na França em 1991, na qual ele buscou verter para a teoria psicanalítica o conceito de “banalidade do mal”, da filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975).

Um dos questionamentos do livro é por que aceitamos conviver com atrocidades. “Eu me convenci de que a verdadeira perversão é a social. É quando o indivíduo abdica da sua personalidade, como um sujeito esvaziado, entregando-se à instrumentalidade do grupo, sob o fascínio de servir ao outro”, explica Dunker. No prefácio do livro de Calligaris, o psicanalista Jurandir Freire Costa chama tal comportamento de servidão voluntária, remetendo-a ao contexto da ascensão das ideologias totalitárias pelo mundo, “pesadelos históricos que julgávamos varridos pelo tempo”. Essa espécie de prontidão para o que der e vier de gente que não pretende parar de louvar Bolsonaro e repetir slogans que aprendeu com ele pode caracterizar esse tipo de servidão.

Já alguns analistas políticos têm apontado a possibilidade de formação de um “bolsonarismo sem Bolsonaro”. Ou seja, mesmo que o ex-presidente saia de cena, o movimento seguirá adiante, ganhando massa. Em entrevista recente, Dimas de Souza, professor do Instituto de Ciências Sociais da PUC-MG, que justamente tem se concentrado em estudar a base ideológica do bolsonarismo, afirmou que o movimento se mantém ao criar para si uma mitologia, com um vilão (hoje, o presidente Lula), um salvador (hoje, Bolsonaro) e teorias da conspiração (entre elas, hoje, o Foro de São Paulo e o complô de dominação da esquerda).

Rudá Ricci diz que uma palavra-chave é tédio. Um sentimento difuso, habilmente explorado por agenciadores que oferecem viagens com tudo pago, para promover ataques terroristas — Foto: Reprodução/Youtube

Rudá Ricci diz que uma palavra-chave é tédio. Um sentimento difuso, habilmente explorado por agenciadores que oferecem viagens com tudo pago, para promover ataques terroristas — Foto: Reprodução/Youtube

“Mas eu ainda penso em bolsonarismo com Bolsonaro. Mesmo que o ex-presidente venha a sumir da cena política, as pessoas vinculadas ao movimento irão substituí-lo por outra figura. A identificação com o líder, feita de laços de paixão, como formulou Freud em ‘Psicologia das massas’, é algo muito forte e poderoso. Atravessa a realidade levando consigo um desejo gregário, afinal ‘sou instrumento daquele a quem sigo’. Ou, ‘sou parte disso tudo’”, exemplifica Maria Beatriz Vannuchi.

Com intenso trabalho clínico a partir de São Paulo e experiência acumulada em análise institucional, a psicanalista explica que a realidade paralela deve ser entendida como uma criação psíquica, portanto permeada pela fantasia, servindo como um meio de fugir do real. “Só que a negação da realidade existencial, algo que pode se dar bem perto da psicose, traz consigo muita dor, às vezes no limite do insuportável. Vejo muita gente desesperada nesses acampamentos e atos golpistas

Vannuchi nos convida a olhar o bolsonarismo lá na origem, como um canal de expressão para indivíduos que não se sentiam incluídos ou contemplados. A partir de um dado momento, passam a seguir um discurso extremista, que articula a criminalização da política, o ataque à democracia e às instituições, a demonização da esquerda, a difamação de autoridades, o conservadorismo nos costumes - e tudo isso envolto no pacote do combate à corrupção, pela moralidade pública. “Assim os ressentidos encontram múltiplas motivações para entrar nessa mitologia.”

 

Mas como abraçar o mito incorporado por um presidente que não demonstrou ter empatia diante dos 700 mil mortos pela covid-19 no Brasil, que jamais foi ao sepultamento de uma vítima ou fez uma visita de pêsame a um familiar enlutado? Um presidente que inclusive colocou a sua carteira de vacinação sob sigilo de 100 anos, para não ter de prestar contas do seu negacionismo? “Bolsonaro não sente pena. Nem culpa. Jamais sentirá”, acredita Vannuchi. E prossegue: “E por encarnar o ‘macho ferido’ do patriarcado, seguidores seus tendem a imitá-lo, incluindo as mulheres”. Neste ponto da conversa, impossível não pensar nas cenas de faroeste urbano da deputada Carla Zambelli (PL-SP), às vésperas do segundo turno, correndo e acossando um homem negro em São Paulo, de arma em riste.

A realidade paralela ganha outros contornos com a ajuda de pesquisadores e teóricos da comunicação, campo onde se revelam as evidências de que engajamento tem a ver com dinheiro. Muito dinheiro. E a política já provou ser um instrumento eficaz para engajar - ao gerar polêmica, alimentar antagonismos, impulsionar compartilhamento e, do outro lado do balcão, multiplicar os anunciantes, tornando as plataformas digitais cada vez mais ricas e poderosas. “Como tudo isso tem a ver com faturamento, viveremos daqui para frente em estado de campanha”, anuncia Rose Marie Santini, professora da Escola de Comunicações da UFRJ e diretora do NetLab, núcleo de estudos e pesquisas sobre internet da universidade. Não será exagero prever: todos sentiremos os efeitos da tensão pré-eleitoral permanente em nossas vidas.

“Estudo internet há 20 anos. Comecei pesquisando pirataria e hoje me vejo às voltas com o ativismo das redes. Definitivamente, a política entrou nas plataformas, comandada por algoritmos que são unidades de inteligência artificial com alto poder de influência sobre os comportamentos humanos”, afirma Santini. “Evidentemente os conteúdos polêmicos engajam mais, daí por que o discurso do ódio ganhou tanto terreno. Engajamento é o que as plataformas querem mostrar ao mercado publicitário para atrair anúncios e faturar. Por trás dessa lógica, existem modelos de negócio muito bem estruturados e implantados, e não só no Brasil.”

Não restam dúvidas de que o assalto ao Capitólio nos Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021, foi articulado por meio das redes sociais. Investigações em torno da quebradeira promovida por trumpistas radicais - sem a cobertura dos militares, bem ao contrário - pavimentam o caminho para a responsabilização direta do ex-presidente Donald Trump. No entanto, observadores notam que a apuração torna-se mais arrastada quando o foco se volta para grandes plataformas.

Dois anos separam as explosões de violência vividas em Washington e Brasília, com semelhanças que vão além da mera coincidência, a começar pelo questionamento do resultado das eleições como estopim. “Só que, no caso brasileiro, era algo já anunciado. Há quatro anos acompanhamos mensagens raivosas contra o STF, com a convocação de invadir e tocar fogo em tudo”, diz a diretora do NetLab, que chegou a apresentar relatório para assessores dos integrantes da Corte.

A reação foi a de que aquelas manifestações de desagrado fariam parte da democracia. Agora, após uma tentativa de golpe de Estado, com centenas de prisões realizadas, o NetLab chama a atenção para outro aspecto inquietante: do ponto de vista das redes bolsonaristas, parece não haver arrependidos. “O que se vê é um discurso unificado e orquestrado, de que todos são pela democracia, menos a esquerda, e a destruição em Brasília foi feita por petistas infiltrados que agiram para incriminar os patriotas.”

“Existem duas situações distintas quando falamos de indivíduos fanatizados: os que cometem crimes e os que não cometem crimes. Os primeiros devem ser punidos com a força da lei, como já vem acontecendo nos Estados Unidos. Sobre os segundos, sempre existirão em qualquer democracia livre. O desafio é impedir que cheguem ao poder e imponham as suas loucuras ao restante da sociedade”, avalia o cientista político e escritor português João Pereira Coutinho, autor de livros como “As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários”.

Coutinho acha que poderá haver uma depuração natural no bolsonarismo após o vandalismo que se viu em Brasília. Nesse sentido, uma parte da centro-direita que votou em Bolsonaro, sem muita convicção, agora terá motivos para abandoná-lo. “Claro, estou sendo otimista, mas às vezes o otimismo é uma forma de realismo.”

Já para o professor Castro Rocha, o aumento do terrorismo doméstico é tema para o qual deve-se dar a devida atenção no Brasil. Por isso ele espera que respondam por seus atos aqueles que atuaram de forma criminosa, incluindo quem dá plausibilidade ao extremismo. “Ao comparar os atentados em Washington e Brasília, admitamos que o episódio brasileiro foi muito mais sério. Na capital americana, os bandidos se concentraram em atacar o Capitólio, no momento da confirmação do candidato vencedor. Na capital do Brasil, os bandidos atacaram todos os poderes da República, com um governo já empossado. Gravíssimo.”

Ao monitorar constantemente as redes, pesquisadores do NetLab têm detectado a presença de grupos que atuam como células terroristas - na maneira de se comunicar, no uso dos códigos, nas formas de mobilização etc. Caberia indagar: por frequentar esse ambiente de alta radicalização, o vândalo de ontem pode ser o assassino de amanhã? A resposta é “sim, para Christian Dunker. “Se a frustração dessas pessoas crescer e se o delírio em que entraram de alguma forma for ameaçado, respostas mais violentas podem surgir”, afirma o psicanalista, ressaltando a importância de se criar canais de mediação para começar a tratar esses conflitos.

Um exemplo de recaída radical se deu em novembro do ano passado, quando um homem invadiu a casa da presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, a deputada democrata Nancy Pelosi, então segunda autoridade na linha de sucessão do presidente Joe Biden. O terrorista arrombou a residência, situada num bairro chique de San Francisco, na Califórnia, berrando repetidamente “onde está Nancy?”, o mesmo grito raivoso que se ouvia quando tentaram capturá-la na invasão do Capitólio, em 2021.

Era madrugada quando o homem acordou o marido da deputada, o investidor americano Paul Pelosi, de 82 anos, que lhe disse que a mulher estava fora. Num dado momento, Pelosi conseguiu acionar o 911 e a polícia chegou. Mas não antes de o criminoso alvejá-lo com um golpe de martelo na cabeça. Paul Pelosi seguiu para a UTI, para ser submetido a uma cirurgia de reparação craniana.

Quanto ao criminoso, David Wayne De Pape, de 42 anos, sabe-se que é um propagador do QAnon, teoria da conspiração de extrema direita com muitos adeptos entre os invasores do Capitólio. O QAnon garante haver um complô de adoradores do Satã, em conluio com pedófilos e traficantes sexuais, contra Donald Trump, guiado por Hillary Clinton, Barack Obama, o banqueiro e filantropo George Soros e, não por acaso, a deputada Pelosi.

Admita-se que nem todos os “patriotas” que acamparam em quartéis e invadiram as sedes dos Poderes agiram de forma criminosa, insuflados por influenciadores antidemocráticos e financiadores de golpes. Então, o que fazer para pouco a pouco ajudar esses brasileiros a saírem das suas bolhas e realidades paralelas? Este foi um dos tópicos tratados pelo sociólogo e cientista político Rudá Ricci em entrevista ao Valor. “Para enfrentar o extremismo, o governo não poderá ficar apenas nas ações institucionais. Terá de se aproximar do povo e dos movimentos sociais, escutar o que estão dizendo e daí propor programas de valorização e defesa da democracia. Todo governo tem uma ação pedagógica, portanto, hora de usá-la.”

Ricci trabalhou com Paulo Freire (1921-1997), um ícone da pedagogia mundial atacado pela extrema direita, e recentemente lançou o livro “Fascismo brasileiro: E o Brasil gerou o seu Ovo da Serpente” (Kotter Editorial). Tem procurado entender as razões do ressentimento de razoável parcela da população, praticamente a metade do país. Acredita que, para se chegar a um diagnóstico correto, será preciso olhar para o Brasil profundo, constituído de 65% dos municípios brasileiros que estão distantes dos centros urbanos.

“Ao analisar as listas dos detidos em Brasília, vê-se que muitos saíram de pequenas e médias cidades, no Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Daí o dono da oficina se apresenta na polícia como empresário. Idem para a vendedora de doces. A manicure se define como empreendedora. Ou seja, aquela cultura caipira melancólica, do Jeca Tatu de Monteiro Lobato, ou a cultura janeleira, do cronista João do Rio, foram substituídas por uma cultura country acelerada, mercantilista, ostentatória”, compara Ricci. “Os jovens desse imenso interior parecem cansados de estacionar o carro para beber cerveja e ouvir sertanejo universitário no fim de semana. Assim como idosos estão fartos de excursões de terceira idade com direito a hotel decadente, sopão no jantar e baile da saudade antes de dormir. Digo isso porque entrevisto essas pessoas”, conta Ricci, diretor e fundador do Instituto Cultiva, que trabalha com projetos de educação.

Na sua descrição de um Brasil desinteressante, a palavra-chave é tédio. Um sentimento difuso, habilmente explorado por agenciadores que oferecem viagens com tudo pago, para promover ataques terroristas e tentar golpes de Estado. Programa arriscado? Sim. Mas, animado, também. Muitos chegaram a Brasília sentindo-se em excursão de turismo, num grande embalo golpista. Foram detidos pela polícia e levados para dentro de ônibus, de cujas janelas lançavam sinais de vitória, risadas, gritos, e faziam selfies.

São múltiplos os caminhos de interpretação da realidade paralela. Maria Beatriz Vannuchi não perde de vista a “sensação de pertencimento” ao grupo, que transforma desencanto em aventura, sofrimento em gozo. Chama ainda a atenção para o quadro epidêmico de problemas de saúde mental no Brasil, algo que precisa ser cuidado com urgência. Christian Dunker segue atrás dos mecanismos que levam ao refúgio de uma “realidade encantada”, ainda que temerária. Castro Rocha continuará pesquisando a midioesfera extremista. Coutinho se volta para a capacidade de as políticas democráticas disciplinarem a violência. Rose Marie Santini finaliza um relatório sobre quatro anos de ataques à democracia no Brasil. Quanto a Rudá Ricci, continuará com a sua escuta social, quem sabe encontrando as vertentes de uma pedagogia dos ressentidos: “Não é suficiente dizer que o Brasil voltou. Na verdade, o Brasil mudou”.

Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2023/01/27/atos-golpistas-como-funciona-a-psicologia-da-extrema-direita-brasileira.ghtml

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário