sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Guerra de mundos

Por Francisco Seixas da Costa

 GUERRA - Tropas ucranianas: Biden e agora Lula apontam a Rússia como agressora e a Ucrânia como vítima -

O Ocidente, através dos Estados Unidos, tinha ganho a Guerra Fria. Nesse contexto, exaurida e incompetente na gestão da sua sobrevivência, a União Soviética, em pouco tempo, implodiu institucionalmente. Do lado de cá, com o comunismo soviético pelas portas da amargura, um furor otimista quase decretou a vitória eterna da democracia.

A Rússia que sobrara para Moscovo pareceu, a certa altura, poder adotar um modelo de mercado que o neoliberalismo julgava salvífico para a criação, por ali, de um futuro regime de liberdades. Viu-se! Sem o cimento retórico dos amanhãs do socialismo real que não chegaram a cantar, o que restou da URSS acabou numa patética decadência. A regeneração, uma vez mais, veio a fazer-se em torno de um projeto de raiz proto-imperial, autoritário como sempre, marcado por uma imensa humilhação.

A ambição

No nosso Mundo, a euforia deu lugar à ambição. A Europa, que no pós-guerra se unira atrás do muro de Berlim e debaixo do chapéu de segurança americano, teve arroubos de existência política, quis-se potência, encheu-se de sucessivos tratados e tratadinhos, acolhendo no seu seio, um tanto à pressa, para aproveitar a janela de oportunidade da fragilidade russa, Estados que, décadas antes, em Ialta, os aliados haviam concordado em oferecer à tutela de Estaline.

França e Reino Unido faziam de poderes, ajudados pelo nuclear e pelo usucapião no Conselho de Segurança, com a Alemanha a comprar, com a riqueza e a continuada contenção securitária, a honra e a unidade perdidas nos anos 40.

Os americanos tinham percebido, entretanto, que o principal risco, ameaçador da sua hegemonia económica e, a prazo, também geopolítica, estava algures, estava na China. A Europa era um competidor económico controlável, a Rússia era vista como um poder regional, como um dia disse um presidente americano que, nem por ser muito estimável, deixará de ficar na história com um dos mais incompetentes gestores da postura externa de Washington. Cavalgando a russofobia dos neófitos europeus, com o 11 de setembro a fornecer-lhe um álibi para pescar em águas estratégicas tradicionalmente russas, Washington foi por aí adiante.

O teste

Com a promoção do golpe político da Maidan, em 2014, a América deu uma machadada final na hipótese da Ucrânia poder gerir, enquanto Estado unitário e democrático, a sua dualidade étnica. O acordo de Minsk foi um mero arranjo de fachada, no qual ninguém acreditou, a começar por Washington, que não se tinha sentado àquela mesa. Irritada como facto consumado da tomada da Crimeia, a América decretou a quarentena da Rússia do G8.

Putin arranjou um pretexto para se acantonar no Donbass e, à medida que Washington e Londres faziam entrar a Ucrânia para a NATO pelas traseiras, acalentou o projeto de reverter a independência ucraniana de 1991, a qual, verdadeiramente, nunca tinha aceitado. E mediu tudo mal: a determinação do opositor, o efeito do pânico nos europeus, o desejo de Biden de fazer esquecer a humilhação no Afeganistão e, surpresa das surpresas, a inadequação da sua força militar convencional.

Putin bem pode tentar disfarçar com bravata, mas o que se passou na Ucrânia neste último ano, foi uma imensa humilhação para a Rússia. A teoria do cerco externo promovido pelos Estados Unidos, com a Europa a fazer peito mas a ser um mero ajudante de campo, tem alguma coisa de verdade. Mas a voracidade territorial, bem como a barbaridade militar desproporcionada, colocou Moscovo na marginalidade da ordem internacional.

Muitas dezenas de milhares de mortos depois, de uma extensão inimaginável de material militar perdido e de uma condução errática do esforço de guerra, fica, da Rússia enquanto poder, uma imagem muito pouco lisonjeira.

E fica a trágica dúvida: se a Rússia se enganou na avaliação das suascapacidades numa guerra convencional, não poderá vir a repetir o equívoco numa qualquer aventura nuclear?

A fronteira

Em Varsóvia, Biden quis marcar a nova fronteira, democracias versus autocracias. Com isto, faz um favor a Putin, colocando potencialmente a seu lado, porque excluídos pelo país-tutela do mundo das liberdades, toda uma vasta legião de ditadores, autocratas editos iliberais, com quem pode não dar jeito aparecer na fotografia, mas que contam bastante no saldo político Norte-Sul. O presidente americano esquece que, na anterior Guerra Fria, foi com muita dessa gente que o ocidente contou para trilhar o caminho que levou ao colapso de Moscovo.

A guerra está aí agora, para lavar e durar. Sem boots on the ground, ganhando nas armas, no gás e, desta vez, nos princípios, a América está mais à vontade para a tarefa de abafar a Rússia. A Europa, por muito que Macron ziguezagueie, seguirá Washington, tendo de gerir as consequências políticas e económicas das sanções. Se os cidadãos americanos não sentirem negativamente no bolso o esforço orçamental, Biden pode mesmo vir a suceder a si mesmo, travestido de Matusalém. Quem havia de dizer!


*Embaixador

Fonte:  https://www.dn.pt/opiniao/guerra-de-mundos-15888857.html

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