Edgar Morin*
A urgência é grande: esta guerra provoca uma crise considerável que agrava e agravará todas as outras enormes crises do século sofridas pela humanidade, como a crise ecológica, a crise econômica, a crise das civilizações, a crise do pensamento. Que, por sua vez, agravam e agravarão a crise e os males nascidos dessa guerra.
O erro e a ilusão muitas vezes reinaram nas mentes dos governantes e dos governados. Houve uma década de sonambulismo coletivo de 1930 a 1940, e houve a impossibilidade de acreditar na ocupação da França e em uma Segunda Guerra Mundial. Durante os chamados “Trinta Anos Gloriosos” de desenvolvimento econômico rumo a uma sociedade do consumo, era impensável imaginar que as próprias bases da nossa civilização seriam abaladas e que o desenvolvimento tecnoeconômico levaria não apenas ao subdesenvolvimento ético-político, mas também a gigantescas crises planetárias.
Ao mesmo tempo, foi ignorada e ocultada a degradação da biosfera que engloba a antroposfera, reconhecida desde 1970 pelos pioneiros científicos da ecologia. E a consciência ecológica, removida por meio século, ainda continua sendo insuficiente.
Era ilusória a certeza dos políticos e dos economistas segundo a qual o neoliberalismo seria o produtor de um crescimento contínuo. A pandemia mundial, suscitando uma crise planetária enorme e multidimensional, foi incompreendida, dado o domínio de um pensamento mecanicista, linear, incapaz de conceber a complexidade dos fenômenos.
Enquanto nos regozijamos pelo fato de termos entrado na sociedade do conhecimento, afundamos em uma cegueira que é ainda maior ao acreditar que possui os meios adequados do saber.
Essa cegueira leva a ignorar que, em 1945, começou uma nova era com a ameaça de morte para a humanidade, ameaça que é continuamente aumentada pela proliferação de armas nucleares, pela sua sofisticação e pela sua possível utilizado se a escalada continuar agravando e amplificando a Guerra da Ucrânia. Entramos na crise da humanidade sem acessar a Humanidade; mas não vemos o todo, no máximo vemos alguns fragmentos do grande problema.
E foi nessas condições que ocorreu a invasão da Ucrânia pela Rússia. Não só se reproduzem os horrores e os crimes das guerras anteriores, como as da Segunda Guerra Mundial; não só permanece ausente a consciência do inesperado, do imprevisível, do erro, da ilusão que nunca deixaram de nos fazer de brinquedos inconscientes da história, mas também aparecem novos horrores, novos erros, novas ilusões, novas surpresas, novos inesperados.
Pode-se agora entender a minha intenção ao voltar às guerras que conheci. Porque toda guerra envolve criminalidade, maior ou menor conforme a natureza dos combatentes; toda guerra encerra em si maniqueísmo, propaganda unilateral, histeria bélica, espionagem, mentira, preparação de armas cada vez mais mortais, erros e ilusões, imprevistos e surpresas...
E parece-me essencial que essas considerações estejam presentes no nosso olhar sobre a guerra atual: a Guerra da Ucrânia não escapa às lógicas de todas as guerras travadas entre adversários resolutos e ferozes.
Devemos agora reconhecer, ao mesmo tempo, aquilo que é simples (a invasão da Ucrânia pela Rússia, a oposição entre democracia ocidental e despotismo russo) e aquilo que é complexo (o contexto histórico e geopolítico). É surpreendente que, em uma conjuntura tão perigosa, cujo perigo aumenta continuamente, levantem-se tão poucas vozes em favor da paz nas nações mais expostas, sobretudo nas europeias.
É surpreendente ver tão pouca consciência e tão pouca vontade na Europa, sobretudo em imaginar e em promover uma política de paz. Falar de cessar-fogo e de negociações é denunciado como uma ignominiosa capitulação por parte dos belicosos, que encorajam a guerra que querem a todo custo evitar na própria casa.
Recentemente, levantaram-se algumas vozes, entre elas a de Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio. Mas elas são abafadas pela voz estrondosa dos defensores russos e estadunidenses do “até o fim” (onde é o fim?).
A urgência é grande: esta guerra provoca uma crise considerável que agrava e agravará todas as outras enormes crises do século sofridas pela humanidade, como a crise ecológica, a crise econômica, a crise das civilizações, a crise do pensamento. Que, por sua vez, agravam e agravarão a crise e os males nascidos dessa guerra.
Em 2017, havia 80 milhões de seres humanos à beira da fome. Então, depois da pandemia, 276 milhões e, atualmente, 345 milhões. Quanto mais a guerra se agrava, mais a paz é difícil e urgente. Evitemos uma guerra mundial. Seria pior do que a anterior.
* Filósofo e sociólogo francês. A opinião é do Edgar Morin, em artigo publicado em La Repubblica, 10-02-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/626164-crise-de-crises-guerra-de-guerras-artigo-de-edgar-morin
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