Érico Andrade*
Bolsonaristas ganharam corações dos reacionários, que longe de condenar os ataques, seguiram a tática recorrente nas redes sociais de culpabilizar a vítima com a afirmação de que houve leniência do novo governo
Às nove horas da manhã do dia 8 de janeiro de 2023 uma ex-companheira me liga com voz quase ofegante. De Brasília ela mandava notícias que o hotel no qual estava havia sido tomado por pessoas com camisas da CBF ou com roupas que estampavam o que chamavam de atitude patriótica. E eram dezenas, me dizia ela ainda incrédula na mesma proporção de sua inquietação diante do ambiente hostil a pessoas que, como ela, tinham se deslocado até Brasília para ver a posse de Lula. Desligamos o telefone com a promessa de que ela iria antecipar a sua ida para o aeroporto.
Algumas poucas horas depois é por meio das redes sociais que o pressentimento de uma ação bolsonarista é confirmado da pior forma. Àquilo que minha ex-companheira tinha assistido era o prenúncio de um ataque à democracia. Certamente o maior ataque das últimas décadas. Sem qualquer especialidade em segurança pública ela antevia, a exemplo de outras tantas pessoas que estavam em Brasília, que aquela quantidade desproporcional de pessoas de meia idade em Brasília, vestidas com as cores do Brasil, conspirava para que na forma de um golpe conseguissem desfazer, ainda que apenas simbolicamente, a passagem da diversidade do Brasil pela rampa do planalto na imagem histórica da nova república. Foi uma reação como reativo são os sentimentos de quem se move para restaurar um Brasil branco, heteronormativo, masculino e patriarcal.
Se é verdade que os bolsonaristas não agiram no dia da posse e não conseguiram impedir a produção das imagens, capturadas por várias câmeras, que projetavam o protagonismo da democracia nas manchetes de jornais, eles conseguiram sequestrar a pauta do debate público. Agiram como agem nas redes sociais, aqui faço referência aos estudos de Letícia Cesarino, sempre tentando conduzir o debate público sem absolutamente nenhum compromisso ético com a verdade. Em certo sentido, conseguiram. Essa foi a primeira vitória do fascismo.
E vieram outras. Uma das características do fanatismo é que ele tem tendência suicida porque a vida das pessoas tomadas pelo fanatismo já foi suficientemente validada pelo simples fato de terem entrado na seita. Ou seja, a punição subsequente aos atentados terroristas, em alguma medida previstas pelos bolsonaristas, em geral não os atinge diretamente porque o propósito de sua ação se encerra nela mesma. As suas vidas já tiveram o seu troféu. Assim como um terrorista é capaz de jogar o seu corpo para morte e reter uma recompensa simbólica, os bolsonaristas acreditam que a prisão é apenas a demonstração da importância de seu combate. A punição é expiação.
Aquela quantidade desproporcional de pessoas de meia idade em Brasília, vestidas com as cores do Brasil, conspirava para que na forma de um golpe conseguissem desfazer, ainda que apenas simbolicamente, a passagem da diversidade do Brasil pela rampa do planalto na imagem histórica da Nova República
Nesse ponto, tiveram outra vitória. Os bolsonaristas provaram que representam um grande universo de pessoas que são capazes de relativizar a mutilação dos símbolos da república. Pessoas que não estão dispostas a sujar as mãos como assim o fizeram os mártires do bolsonarismo, mas que se animam com o rastro da merda deixado por eles como reação ao que tiveram que engolir na simbólica passagem na rampa das pessoas negras, com deficiência, sindicalistas, mulheres e pessoas trans. Os bolsonaristas ganharam os corações dos reacionários os quais longe de condenarem o ataque aos símbolos da república, seguiram a tática, recorrente nas redes sociais, de culpabilizar a vítima com a afirmação leviana de que houve leniência do recém empossado governo.
Neste ponto, a vitória foi dupla. Reafirmaram o seu fanatismo com a prisão – expiação – e conseguiram o aumento da coesão em torno dos ideais reacionários que longe de serem questionados pelas lideranças políticas da direita são disputados por ela na forma de uma disputa pelo protagonismo. Basta ver a avidez do governador Romeu Zema contrária até a certa caricatura do mineiro calmo e ponderado, que se apressou em absolver a culpa dos que atentaram contra a democracia para a projetar no governo do PT. E para deixar claro, absolver a culpa aqui é retirar o caráter coletivo da ação, o que dá a sua dimensão de massa, para dizer que foram alguns poucos indivíduos. Como se a ideologia fascista não fosse um problema, mas apenas alguns poucos indivíduos que se excederam por estarem tomados por uma espécie de justa revolta. De qualquer forma, o fato é que o terrorismo reforçou a guinada mais extremista da direita brasileira.
Essas vitórias que o 8 de janeiro apresentou só foram possíveis porque os dois núcleos que sustentam o bolsonarismo e lhe confere um caráter de seita passam incólumes já que as punições, como é previsto no código penal, incidem sobre os indivíduos e não sobre a ideia que os move e lhes confere unidade de grupo/seita.
Trago para a conversa um famoso texto de Freud com fito de explicar mais a base fanática do bolsonarismo ou a base capaz de agir com as próprias mãos. Quando Freud escreveu Psicologia das Massas e Análise do Ego ele talvez não sonhasse que o seu texto seria uma das melhores formas de compreender o Brasil contemporâneo. Os dois grupos decisivos para o bolsonarismo foram os dois grupos estudados por Freud: a igreja e o exército.
Esses grupos se comportam como um único eu (indivíduos) porque a despeito das diferenças entre os indivíduos que os compõem, se reúnem em torno de uma unidade ideológica que lhes confere uma identidade. Para sustentar essa identidade topam tudo: cruzadas (contra as religiões de matriz afro-brasileira), torturas (ditadura militar) e etc. na mesma proporção que são capazes de absolver todos aqueles que cometeram crimes atrozes (estupros, chacinas e feminicídios) desde que se disponham a aderir à seita. Com esse conjunto de crenças, cujos indivíduos são capazes de tudo para as implementar, nada melhor do que a conformação ao neoliberalismo onde todo estado de direito social é diminuído para que o mais forte na competição prospere.
O que ocorre no Brasil é uma guinada reacionária nesses dois grupos, tradicionalmente ligados à direita conservadora, que não questionam a lógica neoliberal, mas sim a reafirmam porque encontram nela a autorização para o vale tudo. Por isso, o direito à liberdade de expressão incondicional é o elemento mais valioso para a seita porque mantém circulando as ideias mais violentas e animam os mais fanatizados a colocarem em ação práticas segregadoras ou de perseguição ideológica. O Estado de direito só serve naquilo em que pode ser justificativa para a opressão das minorias políticas.
Para combater um fascismo que arromba as portas da República para defecar sobre ela não podemos nos pautar na lógica da punição individual. Ainda que a punição seja, claro, necessária, ela não é suficiente para debelar a serpente do fascismo. Será necessário fortalecer o campo progressista nas igrejas e refazer a formação do exército que longe de ser calcada na ciência ou historiografia vigente nas universidades, é amparada num Brasil paralelo (lembrando que os militares já têm um regime previdenciário próprio, hospitais próprios, moradias próprias e clubes próprios). Sem uma reforma da formação dos militares e sem um avanço do campo democrático no interior das igrejas, estamos fadados ao fascismo como um fantasma que sempre irá nos assombrar. Se não é possível fazer essa mudança de uma hora para outra, é preciso saber que ela nunca ocorrerá sem que sejam dados os primeiros passos.
Érico Andrade é filósofo, psicanalista que atua na Rede de Escutas Marginais, pesquisador do CNPq e professor da Universidade Federal de Pernambuco
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/debate/2023/O-fascismo-arromba-a-porta-na-mutila%C3%A7%C3%A3o-dos-s%C3%ADmbolos-da-Rep%C3%BAblica
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