Por Larissa Roso
A mineira, autora do best-seller "Tudo É Rio" (2021), fala sobre a criação literária, a nova geração de autores do país e seus temas prediletos, incluindo a violência e a sexualidade feminina
O Brasil não é terra fácil para escritores, e o status de fenômeno literário ainda surpreende a publicitária Carla Madeira, 58 anos. Belo-horizontina, ela virou best-seller quando seu primeiro livro, Tudo É Rio (2021), foi relançado pela Record, uma das maiores editoras do país, depois de iniciar a carreira por um selo independente.
A narrativa apresenta o triângulo amoroso formado pelo casal Dalva e Venâncio e a prostituta Lucy, com um componente trágico. Seguiram-se à estreia Véspera (2021) e A Natureza da Mordida (2022), também com episódios brutais. Somados, os livros já venderam 263 mil exemplares.
– A força está no leitor. O acontecimento do livro é no leitor. Por que ele faz um livro acontecer? Porque foi tocado em questões que já estavam dentro dele – comenta a autora nesta entrevista concedida por telefone a GZH.
Você é uma autora que conquistou grande sucesso de público em um mercado literário difícil como o brasileiro. Como se sente?
Fico superfeliz. Foi um acontecimento para mim a força que os
livros ganharam com o leitor. Sinto uma alegria e uma troca muito grande
com as pessoas que leem, com a ressonância das pessoas, ao ver como o
livro mexeu com elas. As pessoas me dão muita notícia disso. Tem sido
uma jornada intensa de reflexão, de troca, de aprendizado. Às vezes,
fico surpresa também com a dimensão que a coisa tomou, mas tem sido
incrível, muito bom.
A
crítica também se detém na sua produção, mesmo que nem sempre com
comentários elogiosos – o que não deixa de ser um componente para o
sucesso, já que você atrai também o leitor que quer tirar a prova, ver
se gosta ou não gosta. De que forma lida com as avaliações negativas?
Estou aprendendo, também. Na época da primeira crítica negativa de Tudo É Rio,
talvez até a única mais contundente, sofri. Discordei de alguns pontos
que são caros para mim, como a profundidade dos personagens, as camadas
que percebo. E, principalmente, por perceber o não maniqueísmo, por ter
trabalhado muito com o desejo de construir personagens que não fossem
maniqueístas, que fossem capazes do bem e do mal. Vejo uma ressonância
muito forte de muitas pessoas ligadas à literatura,
à psicanálise. A turma da psicanálise trabalha muito com meus livros.
Então me assustei, porque a crítica não batia com a ressonância que eu
estava vivendo. Esse foi um aspecto que me incomodou. Na época, achei (essa crítica) preconceituosa,
julgando o leitor, como se o diminuísse. Me incomodou muito essa visão.
Sou publicitária, trabalho com comunicação, e a literatura é um espaço
de liberdade. Sou livre para achar o que quiser, não quero fazer
literatura preocupada com o que as pessoas vão achar porque a
publicidade já é isso, né? Tem que trabalhar com briefing, atendendo
expectativas. E a literatura, para mim, não é esse lugar. Como vou
proteger esse lugar de liberdade? Como não ficar afetada no sentido de
me preocupar se vão gostar ou não? Esse foi um sinal de alerta que essa
crítica acendeu. A polêmica é saudável, é um espaço de subjetividade.
Tudo É Rio,
seu maior sucesso, foi lançado pela primeira vez em 2014, por uma
editora independente. O texto havia ficado 14 anos parado, inconcluso,
até que você o retomasse. O que motivou esse hiato?
Comecei muito despretensiosamente. Na agência, sou diretora de
criação, trabalho muito com a parte de redação, criando filmes,
anúncios. Dei aula de redação publicitária na Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). Eu já tinha essa coisa de escrever e estava
sentindo falta de fazer algo mais autoral. Comecei. Era outro começo.
Começava pela história das três Marias. Entrei na segunda parte com
Lucy. Pretendia cruzar as duas coisas. Entrou em cena a violência do
Venâncio contra a mulher e o filho. Uma coisa brutal (o marido bate na mulher e arremessa o bebê longe).
E foi realmente brutal para mim. Eu não conseguia sair da situação.
Fiquei impressionada por ter escrito e não tinha recurso para seguir.
Parei ali. Fiquei 14 anos com aquilo ali guardado.
Há um outro Brasil, mais profundo, que surgiu na literatura. Questões identitárias, do feminino, do racismo, da violência doméstica, das minorias, são questões que estão sendo pensadas em todo momento, em todo lugar, em todas as conversas. Estão aí. E acho que o livro vem ajudar a colocar na mesa, a pautar.
Seus filhos nasceram nesse período.
Acho que essa paralisia teve um pouco a ver com o fato de estar
querendo engravidar. Parei e fui viver a vida, tive meus filhos, estava
já no segundo casamento. Toquei. Mas aquilo sempre voltava, sempre
vinha uma cena ou outra. Quando resolvi voltar, voltei pelo quarto
capítulo, que é uma palavra só (Dor). Foi muito simbólico, para
mim, fazer um capítulo com uma palavra só. Foi uma síntese do que tinha
vivido com aquela brutalidade.
Como
você conciliou a Carla que começou o livro e a que deu continuidade à
escrita tanto tempo depois? Eram “Carlas” muito diferentes?
Acho que sim. A experiência da maternidade é muito
transformadora para uma mulher. A partir dali, foram muitos
acontecimentos pessoais, filhos, casamento. Teve uma vivência muito
intensa. Acho que, sem essa maturidade, eu não escreveria isso que
escrevi.
Falando de
violência doméstica e prostituição, Tudo É Rio se somou a um fenômeno
recente de autores com diversidade de vozes e temática de identidades
pouco representadas – vamos citar aí Itamar Vieira Junior e Jeferson Tenório, dois outros grandes sucessos. A que atribui essa tendência?
Acho que tem uma conversa, primeiro, de fugir de uma coisa
muito urbana. Há um outro Brasil, mais profundo, que surgiu na
literatura. Acho que a questão da mulher, da sexualidade feminina, da
violência, levanta questões que já estão dentro das pessoas. Elas já
estão pensando, elaborando. Questões identitárias, do feminino, do
racismo, da violência doméstica, das minorias, são questões que estão
sendo pensadas em todo momento, em todo lugar, em todas as conversas.
Estão aí. E acho que o livro vem ajudar a colocar na mesa, a pautar. A
força está no leitor. O acontecimento do livro é no leitor. E aí a
pergunta é: por que o leitor está fazendo esse livro acontecer? Porque
ele foi tocado em questões que já estavam dentro dele. Tenho essa
hipótese.
O tema da violência contra a mulher tem um componente autobiográfico, da sua família.
Minha mãe tinha um irmão que teve vários episódios de violência
física contra a mulher. A mesma mulher. A família ficava revoltada com
ele, se posicionava, tentava fazer uma rede de apoio para ela, ajudá-la a
romper, a sair daquilo. Ela não conseguia fazer esse movimento. Ela
começava, nos primeiros dias, saía, mas voltava para ele. Ela tinha uma
paixão, uma coisa louca, que ela nomeava como paixão. Eu via a família
não dar conta de ela não dar conta de se separar. Eu ouvia comentários
do tipo: “Gosta de apanhar”, “Tá vendo? Mulher de malandro”. Lembro que,
uma vez, vi um começo de briga e o desespero, o pavor, o sofrimento no
rosto dela. Fui para a casa da minha avó, que era ao lado, chamar a
família para intervir. Eu ficava muito chateada de ouvir as pessoas
falarem “mulher de malandro gosta de apanhar” porque claramente não era
isso. Tentava entender por que ela não ia embora. Não era falta de uma
rede de apoio. Por que ela não ia? Era uma coisa dela, do tempo dela,
que a colocava em risco. Isso me marcou muito. Acho que a família
acrescentava sofrimento ao sofrimento dela com a cobrança para que ela
desse conta de uma coisa de que ela não dava conta. Como é que a gente
podia ajudá-la? É lógico que estou falando em retrospecto, eu não tinha
isso tão elaborado.
Claro, é uma análise de muito tempo depois.
Sabe que aconteceu a mesma coisa com Véspera? Quando
escrevi, nem lembrava de um acontecimento que vivi com meu pai. Fui
lembrar muito tempo depois, nos clubes de leitura. Ele era matemático,
dava aula na UFMG, e eu fazia Matemática lá. Ele estava me esperando na
saída da universidade. Cheguei no carro e ele estava muito emocionado.
“Acabei de ouvir uma notícia no rádio de que uma mulher estava num
ônibus com o filho, ela desceu, deixou o menino do lado de fora, subiu
no ônibus e foi embora.” Ele estava muito comovido pelo ponto de vista
do menino. “Tadinho desse menino. Ele confia nessa mãe, que dor ele deve
ter sentido.” O que me intrigou foi essa mulher. O que aconteceu para
ela ser capaz de largar um filho? É o que acontece em Véspera.
Acho que a gente escreve com uma dose muito grande de inconsciente. Acho
que o autor, quando escreve, e o artista, de maneira geral, leva com
ele uma camada de inconsciente muito forte.
Acho que a gente escreve com uma dose muito grande de inconsciente. Acho que o autor, quando escreve, e o artista, de maneira geral, leva com ele uma camada de inconsciente muito forte.
Véspera é
o livro de sua autoria de que mais gosto, com esse tema brutal: o
abandono de uma criança pela mãe. Como foi o “parto” dessa história?
Essa questão da maternidade atravessa todos os meus livros.
Família, esse primeiro lugar onde a gente começa a ter nossas primeiras
noções civilizatórias. No núcleo familiar ou na ausência de um núcleo
familiar, é onde a gente começa a lidar com essas potências que temos,
de bem, de mal. Me interessa muito. O nascimento de Véspera é
fragmentado. Teve a ideia desse acontecimento inicial, do abandono, que
conversava muito com a história de Caim e Abel. É a primeira história,
pelo menos da matriz ocidental que vem com a Bíblia, de rejeição. Deus
rejeita uma oferenda de Caim. Acho que esses dois movimentos começaram
meio juntos: a mãe exausta, que está por um triz, essa coisa do triz, um
centímetro em que você não segura a loucura, a violência. O que faz
aquela pessoa ultrapassar essa linha? Ela cruza o limite. Está exausta.
Queria investigar isso sem já condená-la. Fiquei sabendo de um crime na
Alemanha de uma mãe com três meninos. Ela estava cozinhando, um deles
chorando, aquela pressão. Um menino estava agarrado na perna, e ela deu
tipo um coice. O menininho voou longe, bateu a cabeça e morreu. Lembro
de uma amiga da Alemanha me contar esse caso e eu ficar com uma
compaixão imensa por essa mãe. Acho que a maternidade põe muitas
sobrecargas na mulher. Ela tem que dar conta de tudo e ainda encarar, às
vezes, um casamento violento, que é o caso da personagem. Toda essa
carga... Que limite é esse? Logo ela se arrepende, mas aí já foi, já
foi. É um corpo exausto que rompe o limite. Essas questões me
impressionam muito e sinto vontade de pensar sobre elas.
Pela ordem de escrita, Véspera é o mais recente. Você considera o seu trabalho mais maduro como escritora?
Sim. João Cabral de Melo Neto falava que o autor escreve com
duas possibilidades: ou para jorrar, transbordar, ou para preencher. Tudo É Rio foi
um transbordamento. Escrevi na ordem em que o leitor lê, escrevi de
forma visceral. Tem um narrador com uma linguagem muito presente,
poética. Véspera já tem o aprendizado da contenção. Aprender a
contenção, que não precisa estar tudo ali é, na literatura, um certo
nível de maturidade.
A Natureza da Mordida (o
segundo a ser escrito e o último a ser lançado) também tem um
componente muito forte, algo que fica mais claro só rumo ao final. O que
pode falar do enredo, que envolve duas mulheres, Biá e Olívia, que vão
revelando – e escondendo, em certa medida – suas dores?
Tenho um carinho enorme por esse livro. E agora, com a revisão
que fiz, acho que ficou do jeito que eu queria. Não é que tenha mudanças
muito grandes. A Natureza tem uma amizade e também um processo de
análise que ocorre ao longo da história. Tem uma pergunta que fiz para o
meu psicanalista na época: “O que um psicanalista não pode esquecer que
enquanto ele não tiver esquecido ele ainda é um psicanalista?”. A Biá
está com demência, mas ainda atua como psicanalista com a Olívia. Ela
ajuda a Olívia, acontece uma transferência, um processo. Tem uma coisa
interessante: essa psicanalista, capaz de lidar com os sonhos do outro,
não consegue ajudar o marido a resolver o que acontece com ele: tensões
eróticas com a filha. Tem uma momento que me comove muito em que ela
fala que “é difícil ser mãe de minha filha quando ela não está no meu
colo”, quando a gente está com os pés na linha da largada, uma do lado
da outra. Ou seja, quando competimos como mulher. É o que acontece
quando o marido começa a sonhar com a filha. Ele não quer, também fica
apavorado com aquilo, está tendo sonhos eróticos com a filha. Vai embora
para protegê-la. “Você não tem culpa, mas tem corpo”, essa é a grande
frase da história. Essa é a frase que Biá fala para a filha quando a
pega nua em casa, bate nela e diz para nunca mais fazer isso.
Mas acho que nem todo leitor se dá conta do que está tomando forma ali.
Tem muita gente que, na conversa entre pai e filha, ainda fica
com dúvida. É interessante perceber o quanto o incesto é um assunto
interditado. Uma das primeiras pessoas que leram, ainda no manuscrito,
era muito ligada à literatura. Ele me entregou o livro, nos encontramos
para conversar, e ele estava completamente tomado porque viveu essa
situação na família. Mas eu acho que A Natureza é isso. Tenho
gostado muito das trocas que tenho tido. Foi meu livro mais trabalhoso
porque eu tinha uma personagem que narrava a história de uma certa
maneira, a Biá, com as anotações, e ela é uma psicanalista, que eu não
sou. Foi trabalhoso entrar naquilo, descobrir aquela linguagem. Depois
tive uma professora de literatura que fez um artigo maravilhoso em que
fala que fiz uma coisa muito difícil. Essas duas vozes são muito
diferentes, sem cacoete. Você sabe quando é Olívia e quando é Biá. Pelo
jeito de falar, pelo viés da psicanálise, pela linguagem de cada uma.
O
silêncio é quase um personagem nas suas narrativas. Está presente na
vingança, na punição, no afastamento, na loucura. Poderia comentar esse
aspecto?
Tudo É Rio, apesar de ter o silêncio como punição de Dalva (a Venâncio),
o narrador é onisciente do início ao fim. Tudo é revelado, toda a dor
dela é revelada, mesmo ela fazendo silêncio em relação a Venâncio, mas
nada dela fica sem ser conhecido. A dor dela é profundamente conhecida. O
narrador é muito onisciente. E mais do que isso: ele se mistura com as
personagens. Ele é contaminado pela história que está narrando. Tem uma
linguagem mais crua quando vai falar de Lucy, tem uma linguagem mais
poética ao contar de Dalva, e vai sendo contaminado. Às vezes, sem
travessão, a personagem fala misturada com a voz do narrador. Então, eu
saí de Tudo É Rio pensando: quero escrever um livro com
silêncio. Pensei muito sobre isso, com muita consciência. O que é fazer
silêncio ao escrever? E em A Natureza isso me atravessou muito,
foi muito consciente. Você falar um pouquinho sobre uma questão e
deixar ali, em silêncio, para o leitor, sem tocar naquilo, e você retoma
mais na frente. Então, de fato, foi uma investigação muito forte sobre o
silêncio. Em Tudo É Rio, não considero que tenha esse
silêncio. Tem esse ato de silêncio de um personagem, na punição, mas, na
história mesmo, tudo está posto. Ali não tem contenção. É um rio mesmo,
correnteza, você muitas vezes é arrastado, não consegue parar de ler.
Saí dele falando que não queria mais essa linguagem, não queria a
escrita poética. Fui para A Natureza de outro jeito. Até falei:
quero fazer um livro que as pessoas queiram ler, fiquem presas, mas que
não tenha nada para ser grifado.
O Instagram está cheio de páginas com frases suas grifadas (risos).
As pessoas falam: “Ah, você não conseguiu, não”. Olívia é tão
objetiva, aquela linguagem de jornalista... Não consegui, mas é bem
diferente (risos).
Seu próximo livro já está em processo de elaboração. O que pode adiantar?
Está tão caótico. Tem uma coisa que está me provocando. Até já
mudou um pouco... Tem a figura de uma criança no meio de uma situação
complexa. Mas tenho pensado, tenho anotado, cheguei a fazer uns dois
capítulos. Estou ainda querendo achar um jeito de narrar, a forma. Tenho
escrito contos. Vou lançar um na Vogue, inédito. Fiz um conto inédito
para um livro da Record, outro para o Instituto Moreira Salles. Meus
contos têm uma veia de humor, têm ironia. Acho que isso também está nos
meus livros. Véspera tem um pouco disso, apesar da história triste. Uma
linguagem mais livre, irônica, certa liberdade com as palavras. A
ludicidade da linguagem faz um contraponto. Não sei se você percebe
isso. (Sobre o próximo livro) Pode mudar. Ano passado, vivi
coisas muito difíceis. Perdi minha mãe, perdi meu psicanalista. Minha
sócia, que é tipo uma irmã, teve que se afastar por problemas de saúde e
ainda não voltou. Ainda não sei se estou com energia para me jogar em
uma empreitada dessas. Levei três anos e meio escrevendo A Natureza, três anos escrevendo Véspera e, eu brinco, 14 anos e oito meses escrevendo Tudo É Rio. Em Tudo É Rio, quando voltei, escrevi diariamente. Em Véspera e A Natureza,
tive uns intervalos. Fiz uma viagem para buscar minha filha que fez
intercâmbio na Bélgica e parei de escrever por um mês. Mas estava
anotando, estava em processo de escrita. Nesse sentido, eu realmente já
estou escrevendo um novo livro. Estou diariamente pensando nessas
personagens que já apareceram, nas histórias, no modo de falar delas. Já
tem um bom tempo. Deve ter quase um ano...
Então faltam dois, pelo menos (risos).
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/livros/noticia/2023/02/a-forca-de-um-livro-esta-no-leitor-o-acontecimento-do-livro-e-no-leitor-diz-carla-madeira-cldluf421003l01574fzik323.html
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