Anselmo Borges*
Não conheço condenação mais dura da pedofilia do que a de Jesus. Ele disse: "Deixai vir a mim as criancinhas", mas também disse: "Ai de quem escandalizar uma criança. Era melhor atar-lhe a mó de um moinho ao pescoço e deitá-lo ao mar."
Outra palavra de Jesus: "Nada há de oculto que não venha a revelar-se."
E esta: "A verdade libertar-vos-á." Sempre admirei ao chegar à
Universidade de Friburgo na Alemanha ver no frontispício precisamente
esta palavra do Evangelho de São João: "Die Wahrheit wird euch frei machen": a verdade tornar-vos-á livres.
Penso que foi neste contexto que José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, tomou a decisão corajosa de levar a Conferência a criar a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, que já apresentou os resultados do estudo. Denúncias validadas atingem o número de 512, tendo sido enviadas para o Ministério Público 25 -- destas, seis estão sob investigação --, é de 4815 o número estimado de vítimas ao longo dos últimos 72 ano. Estes são os números do flagelo.
A reflexão tem de atender aos números, mas, como diz o Papa Francisco, mesmo que houvesse apenas um caso, seria uma tragédia.
O
abuso é sempre abuso de poder. De facto, de um lado está um adulto e do
outro uma criança inocente. No caso da Igreja, o abuso é mais brutal,
porque se trata de um poder considerado sacro, divino, e, por outro
lado, a família e as crianças confiavam na Igreja e nos padres. Ora, foi
esta confiança que foi traída. Entre nós, foram publicados relatos
arrepiantes, mas também li num relatório dos Estados Unidos este
testemunho de uma família: "O padre entrava em nossa casa, era Deus que
entrava. Depois, pedofilizou os nossos filhos e dizia-lhes: não podeis
dizer nada, porque, se disserdes, ides para o inferno". Isto é a
perversão. Também entre nós -- era uma espécie de norma comum na Igreja e
não só, segundo o princípio: "a roupa suja lava-se em casa" --, houve
encobrimento por parte de responsáveis.
Perguntam-me se há relação, relação de causa-efeito, entre o celibato e
os abusos. À primeira vista, a resposta é: não. De facto, a maior parte,
parte substancial, dos casos de pedofilia, passa-se em contextos
familiares no sentido alargado, incluindo, vizinhos, amigos, portanto,
pessoas casadas. Mas, aprofundando, deve-se reconhecer que, atendendo à
formação tradicional nos Seminários, os futuros padres entravam ainda
miúdos e toda a formação, incluindo a passagem pela
puberdade-adolescência, se deu sem presença feminina, e a tentação era o
sexo, o que fez com que tenha havido certamente casos de padres com uma
sexualidade distorcida. Vítimas, eles próprios, fizeram vítimas.
O que fazer agora? Isto, ligado a imensos escândalos, também
financeiros, no Vaticano e não só, abusos de poder sobre as
consciências, etc...., constitui um sismo na Igreja e é necessário
reconstruir desde a raiz, sabendo que o fundamento é Jesus e o seu
Evangelho. Neste caso concreto, sem esquecer que se trata também de um
crime hediondo, exige-se um pedido sentido de perdão, um apoio sólido às
vitimas, psicológico, psiquiátrico, e, na medida do possível e em
condições a estabelecer, também financeiro. Os abusadores, eles próprios
com necessidade de apoio psicológico ou mesmo psiquiátrico, deverão
abandonar o ministério. Os encobridores, que antepuseram a defesa da
instituição, que queriam ver prestigiada, imaculada, à defesa das
vítimas, deveriam demitir-se. Sem "caça às bruxas", como disse o bispo
Ornelas, e salvaguardando o princípio da presunção de inocência, os
suspeitos precisam de atenção e devem ser mantidos sob vigilância até ao
apuramento dos factos. A Igreja, que leva com ela o Evangelho de Jesus,
a mensagem mais libertadora que a Humanidade alguma vez ouviu na sua
história, precisa de voltar a adquirir autoridade e credibilidade. No
próximo dia 3 de Março, espera-se da Conferência Episcopal a tomada de
medidas sólidas neste sentido, provando que haverá realmente "tolerância
zero" para a pedofilia.
Entretanto, é fundamental rever a formação nos Seminários, retomar sem medo o debate da questão do celibato obrigatório e da igualdade real das mulheres na Igreja, sem discriminação. Temas para próximas crónicas.
Concluo com palavras de Henrique Monteiro no Expresso de 17 deste mês, num texto lúcido: OS OBSCENOS. "Já se usaram todas as palavras. E mesmo alguns insultos, para caracterizar os abusos sexuais sobre menores na Igreja Católica que a Comissão Independente, designada pela mesma Igreja, revelou. Mas há indignação genuína, pura, sentida, e outra oportunista com duas facetas: a daqueles que se querem pôr de fora, quando estiveram sempre dentro do mal que os seus pares praticaram, e a daqueles que aproveitam mais uma oportunidade para atacar a Igreja. Como se fosse ela a única entidade a permitir ter no seu seio a ignomínia da pedofilia. Felizmente, os membros da Comissão têm sido sérios e competentes. Ainda ontem Daniel Sampaio dizia que, se fosse bispo e tivesse ocultado um caso assim, se demitiria. Não podia, nem pode ser de outra forma. A Igreja precisa de se limpar, de tomar um bom banho de humildade e autocrítica: de ser diferente caso pretenda manter o essencial do seu ministério. E isto diz quem vê de fora, quem nunca lhe pertenceu, nem teve fé, nem concorda com os dogmas, nem gosta de fogueiras inquisitoriais, mesmo para a entidade que as praticou."
*Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/-sobre-os-abusos-na-igreja-15895664.html
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