quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

ELOGIO À DÚVIDA

Por Bruno Nogueira Humorista

Imagem sabado_13.tif (17102831) (Milenium)

Imagem sabado_13.tif (17102831) (Milenium) Juan Cavia

Para todo o lado para onde olho, só vejo certezas. E não são certezas modestas, são certezas absolutas. Tudo é absolutamente preto ou branco, subtraiu-se o cinzento. A falta que faz a dúvida.

Volta e meia era bom que a dúvida tivesse o mesmo palco e a mesma voz que a certeza. Numa altura em que há pouco ou nenhum espaço para duvidar ou para tomar o tempo que for necessário para se ter uma opinião que não ceda ao populismo, nem ao nervosismo, nem a outros “ismos” que não trazem nada de bom ao debate público de discussões importantes, talvez pensar alto, sem julgamento nenhum prévio, seja uma boa maneira de percebermos que estamos todos ainda a aprender uma série de coisas que achávamos que já tínhamos como adquiridas. Estou também a falar para mim. Nesse processo, muitas vezes avança-se, outras vezes atrasa-se tudo o que se tinha avançado. Ninguém tem de terminar o dia a escolher um lado da trincheira, pode antes aceitar que não sabe, está a tentar saber mais, ou que já pensou uma coisa e agora pensa outra. Para todo o lado para onde olho, só vejo certezas. E não são certezas modestas, são certezas absolutas. Tudo é absolutamente preto ou branco, subtraiu-se o cinzento. A falta que faz a dúvida. A dúvida como motor de tudo. A dúvida como princípio de muitas outras dúvidas, até restarem muitas menos.

Na ciência, é ao manter a incerteza em cima da mesa e admitir que não sabemos tudo, que se avança para descobertas que são certezas só por uns tempos, até se redefinir essa certeza e se começar não do zero, mas do pouco que se conquistou com as dúvidas anteriores.

Na democracia a dúvida faz com que de quatro em quatro anos se dê início a novo diálogo, para que a mesma escolha ou uma nova possa acertar agulhas. Todas as certezas que os partidos políticos possam ter, explodem-lhes na cara e vergam frases feitas até serem só pó e interrogações, perante as dúvidas de quem vota.

A certeza de cada um é irrelevante, porque a natureza não contempla espaço para isso, age como tem de agir, apesar de nós. É indiferente ter a certeza absoluta de que o aquecimento global não existe. É indiferente acharmos que a Covid-19 é uma invenção. Repetir muitas vezes uma coisa não a torna verdadeira. A Covid matará os cépticos e os crédulos, e o aquecimento global mudará a vida de todos para sempre, sem olhar a dúvidas e certezas.

É por isto tudo que quando há umas semanas o palco principal do São Luiz foi alvo de um protesto, estranhei tantas certezas absolutas vindas de tantos lados e com tanta rapidez. As redes sociais tornaram-se um pântano de verdades onde não havia tempo para dúvidas. A pressa de ter alguma coisa explosiva para dizer contaminou o espaço que havia para pensar. O resultado foi a morte do debate, e o ataque como verdade única e absoluta.

No meio das dúvidas que eu possa ter, há algumas certezas que já cá estão antes de qualquer protesto, e até antes de mim: um encenador pode decidir que não quer nenhum homem em palco, e só quer mulheres. Pode decidir que só quer homens e nenhuma mulher. Pode decidir que quer que sejam todos negros, ou que sejam todos indianos. Pode decidir que são todos trans e que é assim que ele imagina aquela peça. Ao espectador caberá decidir o que acha dessas decisões, e é esse o horror e a beleza da arte: o público funciona como caixa de ressonância do que ali se passou. Pode manifestar-se à porta do teatro, mostrando o seu ponto de vista. Se por exemplo o público achar que uma peça é homofóbica, pode reagir não comprando bilhetes, ou saindo a meio do espectáculo, levando a que o encenador e o público reflitam sobre o que ali aconteceu, sem que haja obrigação de alterar absolutamente nada. Subir para cima de um palco e exigir que se mude o que se está a ver, é o princípio de uma coisa que se pode tornar um cadafalso, porque toda a gente tem uma luta que acha que deve ser representada em palco. Se o desespero for carta branca para se interromper uma peça, que perigos é que isso levanta? Outra dúvida é a de não sabermos o que leva um espectador a subir a um palco, nem o que leva com ele. Não sabemos se está armado, se quer agredir, se quer gritar, ou se quer só dizer que a escolha daquele encenador o está a matar por dentro e por fora. E é na sequência disto que vive a minha maior dúvida: um encenador ceder a essa manifestação e mudar o que fez (como aconteceu nesta peça), não irá criar um campo minado para todos os encenadores que se seguem? Porque se essa dúvida se transformar em certeza, talvez seja o princípio do fim da liberdade criativa. Esta é uma das dúvidas que se deve abordar, juntamente com todas as outras que o protesto provocou. Mas como parece haver certezas absolutas, só se pode ser a favor ou contra, e fim de conversa, porque a dúvida é para os fracos. É possível ser-se a favor de uma causa, e não se ser a favor da forma como essa causa se fez ouvir.

Descobre-se mais com a dúvida do que com a certeza. A certeza ata com muitos nós o cérebro, adormece a curiosidade e retira-nos o estrondo que causa o espanto e a descoberta. Descobrir que somos o oposto do que dizemos não é desandar, é reaprender a andar. É aceitar a mais desafiante das certezas, a de que somos múltiplas coisas ao longo da vida, e que no último dia somos todos a mesma. Mas até disso tenho dúvidas.
 
* Humorista
Fonte: https://www.sabado.pt/opiniao/cronistas/bruno-nogueira/detalhe/elogio-a-duvida?&utm_source=Newsletter&utm_campaign=Editorial_S%c3%a1bado_EdicaoManha&utm_medium=email&sfmc_segment=NEW&sfmc_term=NEW##utm## 

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