quinta-feira, 30 de junho de 2016

Pierre Lévy: "você não deve presumir que há privacidade na rede"



Somos todos curadores? Conferencista desta segunda-feira (27) no Fronteiras do Pensamento Porto Alegre, Pierre Lévy sobe ao palco do Salão de Atos da UFRGS para falar sobre como hoje todos estão aptos a categorizar, avaliar e navegar pela informação na rede. Para o pensador francês, nascido na Tunísia, a tecnologia tornou possível uma utopia necessária: a difusão do conhecimento produzido pela humanidade como um grande patrimônio comum.
Em entrevista concedida do Canadá, por skype, Lévy falou sobre os desafios da vida em rede e sobre como alguns deles não têm ligação direta com o mundo digital, mesmo que a sociedade tenda a tratá-los desta forma: crimes cibernéticos, controle de informação e da liberdade de expressão são apenas dilemas antigos que podem utilizar as tecnologias de seu tempo, mas que não nascem de determinada tecnologia. 

Confira abaixo a entrevista de Carlos André Moreira ao jornal ZH:

O senhor sempre defendeu que a inteligência é um patrimônio coletivo. Mas o mundo digital se dirigiu para um modelo em que os indivíduos se tornaram produtores de dados a serem comercializados por e com anunciantes e patrocinadores. O que pensa disso?
Muitas pessoas estão usando o Facebook, por exemplo. De fato, bilhões de pessoas. Milhões de pessoas estão usando Pinterest, Twitter, Instagram, seja qual for a rede. Todas essas pessoas usam a rede social de graça. Assim, o dinheiro tem de vir de algum lugar. Publicidade é a resposta clássica para resolver o problema do financiamento de mídia. Não apenas na mídia digital, mas foi o mesmo com a imprensa e com a televisão. Não há muita diferença neste assunto. 

Mas, para mim, não é um problema que a publicidade tenha acesso aos dados de modo que as redes sociais possam ser financiadas. O problema, para mim, é que as pessoas comuns não tenham esse acesso à informação que elas próprias produzem. 

Também têm sido constantes as discussões sobre as políticas de privacidade na rede. Qual sua opinião nesse debate?
O que eu digo aos meus estudantes é que a internet, em geral, é um espaço público. Então, quando você escreve ou posta em uma rede social, tem que partir sempre da suposição de que todo mundo está vendo. Mesmo o e-mail. Se você usa Gmail, deve saber que o Google usa seus dados para análises estatísticas aplicadas para mandar publicidade. Logo, você não deve presumir que há privacidade na rede. 

Se você ainda assim quer ter privacidade, o que é uma preocupação legítima, você tem duas opções: uma delas é usar encriptação de dados, e a outra é guardar o que você quer dizer para você mesmo, ou falar atrás de portas fechadas, ou algo como isso (risos). É um fato: as redes sociais são espaços públicos. 

Muitos movimentos se propõem a aumentar o acesso público aos benefícios do conhecimento. O senhor é otimista com relação a esse tema?
Penso que é um progresso quando mais pessoas têm acesso ao conhecimento. Por exemplo, se você tem uma cidade com biblioteca pública e uma sem, a cidade com biblioteca está melhor. Mas claro que os equipamentos técnicos e materiais não são o suficiente. As pessoas precisam ter a habilidade de ler e escrever, devem ter educação e cultura para poder tirar vantagem dessa disponibilidade da informação. Não é tão simples. 

Se queremos aprimorar o acesso geral ao conhecimento, há esforços a ser feitos nos aspectos técnicos, mas também nas partes culturais e educacionais da inteligência coletiva. Não é uma questão só de acesso físico. 

Então também precisamos de uma espécie de "alfabetização" digital básica?
Exatamente. A nova alfabetização não é só aprender as letras do alfabeto, ou a ler e escrever, mas também estar apto a selecionar as fontes de informação, a ser capaz de analisar dados, a ser capaz de interagir em grandes comunidades online. São coisas relativamente difíceis, e são habilidades que deveriam ser aprendidas ainda na escola. 

Esta seria uma forma de afastar o sentimento de muitos usuários de que a rede é perigosa, por conta de crimes e roubos de dados?
A internet é uma ferramenta técnica fantástica para a comunicação, para o armazenamento da memória e do conhecimento, para análise de dados. Mas isso não suprime o fato de que nela atuam ladrões, por exemplo. Só que as pessoas já roubavam bancos muito antes da internet, ladrões que roubavam usando todas as ferramentas tecnológicas que houvesse. Para mim, não há relação entre uma coisa e outra. 

Não é porque há uma ferramenta nova que um dilema moral básico da espécie humana vai desaparecer em um passe de mágica. Ainda temos pessoas honestas e desonestas. Criminosos podem usar a tecnologia, e a polícia também pode, então há um equilíbrio. 

Perguntei sobre essa questão dos crimes porque o parlamento do Brasil vem discutindo leis que, a pretexto de combatê-los, talvez criminalizem manifestações de opinião.
Os governos sempre tentam limitar a liberdade de expressão. É sua tendência natural. A oposição deve, por seu turno, lutar por essa liberdade. É uma coisa muito antiga e não é exclusiva da internet, começou com a imprensa em papel. Outro aspecto disso é que quase todos os governos tentam saber secretamente o que os cidadãos estão dizendo, tentam espionar seus cidadãos. Ao longo de todo o século 20 foi assim: governos abrindo cartas, por exemplo. 

Hoje, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, as instâncias oficiais tentam controlar a comunicação das pessoas. Isso é verdade nas democracias mais abertas, como Estados Unidos ou países da Europa, e mais verdade ainda na China, na Rússia, na Arábia Saudita. 

Na verdade, isso não tem a ver especificamente com a internet. Tem a ver com a relação entre governos que são mais ou menos autoritários e seu povo. Não é uma questão técnica, é política, atualizada com qualquer nova invenção técnica ou uma nova forma de comunicação. É por isso que eu não estou muito interessado nisso, porque não diz respeito abertamente à internet. 

O que diz respeito diretamente à rede são as novas oportunidades para as pessoas se comunicarem, cooperarem, criarem novas operações de troca de informações. É esse o ponto que estou tentando enfatizar. 

O senhor falou de cidades com bibliotecas. Em um livro recente, Robert Darnton verbalizou uma preocupação pelo que considerava a privatização de bibliotecas universitárias, digitalizadas por corporações como o Google, que cobra acesso a elas. O que pensa disso?
Se estamos falando de conhecimento científico, penso que o verdadeiro problema, os verdadeiros vilões, não são o Google, por exemplo, e sim os editores de publicações científicas. Porque, ok, a pesquisa científica é, em geral, financiada pelo público. Assim, os resultados deveriam voltar para o público. 

Mas na universidade, atualmente, você precisa publicar esses resultados em uma revista ou jornal científicos, de editoras especializadas. E essas editoras são empresas comerciais que vendem para as bibliotecas os resultados das pesquisas produzidas. Isso não está correto. 

Penso que a resposta certa a essa questão seria publicar esses resultados gratuitamente, por exemplo, em blogs. É uma grande tendência atualmente a criação de redes sociais voltadas especificamente para pesquisadores, como ResearchGate, Academia.edu ou Mendeley e assim por diante. O que se vê nessas redes sociais é que os papers e trabalhos circulam entre os próprios pesquisadores, livremente, e você não precisa pagar a um editor. 

Os editores foram realmente úteis até um determinado momento, enquanto só tínhamos a imprensa, porque se os trabalhos não fossem publicados, o conhecimento não poderia ser disseminado. Mas hoje em dia não precisamos mais de editores, podemos espalhar as informações gratuitamente em blogs e redes sociais. 

Mas seria necessária uma mudança de mentalidade em todo o sistema, não? Dado que o processo de validação entre pares passa pela pontuação dessas publicações.
Sim. Há certos trabalhos publicados em revistas científicas que ninguém lê. Ok, ele tem o selo de aprovação de uma instituição científica, mas é inútil. E alguns trabalhos que ainda não foram publicados em revistas porque ainda não foram totalmente concluídos já circulam entre os pesquisadores interessados no mesmo problema e têm uma grande influência. Assim, a verdadeira medida do valor científico não é a publicação, e sim a forma como esse trabalho é usado pela comunidade científica, o que pode ser mensurado por citações, referências etc. 

Há alguns anos o senhor havia anunciado a intenção de desenvolver uma linguagem que permitiria aliar a linguagem verbal comunicacional e a linguagem computacional para uma real filosofia da era digital. Como anda esse projeto?
Neste momento em que conversamos, estou em Montreal, com a equipe que está desenvolvendo essa linguagem, a IEML (Information Economy MetaLanguage, ou "Metalinguagem da economia da informação", em português). Tenho a esperança de que ela será lançada no final do ano.
O dicionário e uma biblioteca da linguagem estarão disponíveis gratuitamente online, e haverá uma interface API com a qual você poderá conectar e interagir. E haverá uma espécie de interface de demonstração ao usuário. E ainda não decidimos completamente o que será, mas provavelmente será utilizável no Twitter, no Scoop.it e outras plataformas que permitem ao usuário categorizar dados.
Então, em vez de hashtags, por exemplo, teremos hashtags semânticas que serão capazes de computar relações semânticas com outras hashtags. No Scoop.it, em vez de tags que são apenas uma cadeia de caracteres, teremos um programa capaz de computar relações semânticas com outras tags. 

Sei que é um projeto com diversas ramificações, mas o senhor poderia explicar um pouco mais algumas das principais aplicações dessa linguagem artificial?
Teria aplicações em tradução automática, em análise de dados e, o mais importante para mim, refletir a inteligência coletiva.
As pessoas seriam capazes de observar online o desenvolvimento de suas próprias ideias. Uma ideia sendo um conjunto de dados classificado na linguagem IEML e todas as reações sociais associadas à classificação e aos dados. E tudo isso poderia ser visualizado e estaria aberto para todos, diferentemente do que acontece hoje no Facebook, em que a análise de dados é feita pelo Facebook e vendida para empresas comerciais, basicamente, ou para empresas de publicidade. 

Que diferença haveria de algumas outras experiências colaborativas de produção de conhecimento, como a Wikipédia, por exemplo?
O aspecto comum com a Wikipédia é que o conhecimento está completamente aberto, acessível a qualquer um para uso e edição. Mas na Wikipédia, o trabalho final de edição pertence a uma burocracia editorial. Minha abordagem é diferente, não há supervisão, qualquer um pode escolher e classificar os dados exatamente como quiser, e as pessoas serão capazes de filtrar as fontes que serão importantes para elas. Então, será muito mais aberta. Além disso, você pode usar a Wikipédia como uma fonte de dados, então você será capaz de classificar um artigo da Wikipédia na linguagem que criamos, e pessoas diferentes poderão ter pontos de vista diferentes sobre o mesmo artigo.
Acho que o grande problema da Wikipédia é que você pode ter apenas um artigo a respeito de um tópico. Isso restringe a liberdade de expressão. A minha ideia é que, a partir das mesmas informações, você possa ter diferentes aspectos e pontos de vista.

 O senhor já veio muitas vezes ao Brasil. Como tem acompanhado a crise política do país?É sempre prazeroso para mim ir ao Brasil. É como a minha pátria do coração. E claro que tenho acompanhado com interesse o que está acontecendo aí, é quase impossível não fazer isso quando há notícias todos os dias em todos os jornais do mundo. Eu não posso tomar partido, tenho amigos nos dois lados da questão, mas tenho acompanhado de perto e tenho esperança de que o crescimento e o dinamismo voltem ao Brasil em breve.
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Reportagem por  Carlos André Moreira - 26.06.2016
Fonte:  http://www.fronteiras.com/entrevistas/pierre-levy-voce-nao-deve-presumir-que-ha-privacidade-na-rede

Irvine Welsh traça uma sátira impiedosa sobre o culto à própria imagem em 'A Vida Sexual das Gêmeas'


Irvine Welsh
 Irvine Welsh

A barra sempre pesou na escrita do escocês Irvine Welsh. Basta acompanhar a célebre galeria de desajustados formada por Spud, Sick Boy, Renton e Begbie, eternizada no romance Trainspotting (1993), que lhe rendeu o status de grande nome da literatura britânica moderna. Welsh é um dos destaques de hoje da 19ª Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, que acontece na cidade fluminense. Ele dividirá a mesa das 21h30 com o americano Bill Clegg.

Entre outros assuntos (como relembrar sua primeira vinda ao Brasil), Welsh deve conversar sobre seu mais recente romance publicado no País, A Vida Sexual das Gêmeas Siamesas (Rocco). Se, em Trainspotting, ele chafurdou o mundo dos guetos, dos pubs e das drogas, agora investe contra a praia e o culto ao corpo perfeito. 

O romance se passa em Miami, onde uma personal trainer interfere em uma tentativa de assassinato, ao imobilizar um homem armado. Como o ato foi registrado por uma câmera de celular, Lucy Brennan logo se transforma em uma sensação midiática, atrás apenas de gêmeas siamesas de 15 anos do Arkansas que também colocaram a nação em suspenso com seu dilema moral: o que fazer quando uma quer sair enquanto a outra prefere ficar em casa?

Bem humorado, Welsh, que vive hoje nos EUA, falou ao Estado, por telefone, sobre sua sátira ainda mais ácida e impiedosa a respeito de uma sociedade obcecada por sua própria imagem.

Esse seu novo livro teve uma curiosa recepção nos EUA, onde seu estilo foi comparado a Bret Easton Ellis e Chuck Palahniuk, dois autores que também tratam dos males da sociedade moderna do ponto de vista da dor. O que achou disso?
Achei engraçado. Bret e Chuck apareceram mais ou menos na mesma época em que estreei, ou seja, há uma sensibilidade compartilhada para os mesmos temas, ainda que eu vivesse na Escócia enquanto eles estavam na América. Acho que a relação entre a gente vem do fato de O Psicopata Americano, de Bret, e Clube da Luta, de Chuck, sejam talvez os últimos dois grandes romances americanos dos anos recentes. Claro que surgiram novos e bons títulos depois, mas nada que fosse tão inovador. Como já disse antes, eles apontaram para novos caminhos da mesma forma que John Updike fizera nos anos 1980.

Também li que seu interesse em escrever esse romance foi motivado pela dicotomia que temos em nossa sociedade entre esporte e arte. Como nasceu essa curiosidade?
Para mim, é uma horrível dicotomia, pois nos obriga sempre (nos EUA, ao menos) a ser um grande atleta idiotizado ou um artista metido a besta. Foi o que tentei fazer ao criar Lucy Brennan e Lena Sorensen, a mulher que filma a atitude de valentia de Lucy. Por meio das duas, vistas em perspectiva, tentei moldar o perfil mais completo de uma pessoa moderna - pelo menos, alguém com o perfil médio apresentado pelos programas de televisão.

Lucy é o tipo de mulher vigorosa, decidida, no esplendor de sua forma física, enquanto Lena é uma artista vulnerável, tímida, ligeiramente gorda. Como você relaciona essas garotas a questões como gênero e feminismo?
São dois exemplos de feminismo: Lucy é mais independente, enquanto Lena está mais para o tradicional. Para mim, representam duas faces de uma mesma moeda, ou seja, complementares.

Junk food e viciados em exercícios físicos - é assim que você vê os Estados Unidos?
De uma certa forma, sim. Mas não apenas a América - nossa sociedade de consumo como um todo cria pessoas com um comportamento obsessivo compulsivo que não lhes deixa com liberdade de ação. Assim, se você é gordo porque come muita junk food, você não vai parar de comer isso para emagrecer - vai começar a tomar pílulas que supostamente vão te deixar mais magro. É assim que nossas mentes têm sido programadas.
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Reportagem por Ubiratan Brasil - O Estado de S.Paulo 30/06/2016
Fonte:  http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,irvine-welsh-traca-uma-satira-impiedosa-sobre-o-culto-a-propria-imagem-em-a-vida-sexual-das-gemeas,10000060029

O prazer de estar sozinho

luciana kotaka*

maior_sozinho_e_feliz
Aprender a ficar na solidão é um desafio 
extremamente prazeroso

Difícil é mudar a forma de pensar, desde pequenos aprendemos que nascemos para viver ao lado de outra pessoa e construir uma família. Temos o exemplo de nossos avós, nossos pais, pode até ser que durante nossa passagem da infância até a vida adulta tivemos pessoas próximas a nós que se separaram, mas logo estavam com outros parceiros, com raras exceções.

As histórias e filmes infantis reforçam muito a cultura do casamento, mas poucos, se é que existem, retratam a felicidade de ser feliz sozinho. Viver com uma pessoa compartilhando a vida não é fácil, basta nós vermos fotos de festas de casamentos, os pombinhos felizes, meses depois, acabou, cada um vai para um lado.

A verdade é que não fomos ensinados a lidar com as diferenças, com os limites, com a história que nosso parceiro traz para nossa vida. Temos que aprender na marra. A mesma coisa acontece quando a mulher se torna mãe, lemos literaturas a respeito, mas na hora que o bebê chora a noite inteira, socorro.

Mas tenho conhecidos que decidiram viver sem ninguém, às vezes por quererem estar só, outras vezes por falta de opção melhor, afinal, não dá para casar com qualquer um.

A grande questão é que podemos sim ser feliz sozinho, contrariando uma música bem conhecida, “Wave” de Tom Jobim ” Fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho”.

Dicas para curtir a solteirice:

– Faça planos de viajar, aproveite para conhecer lugares, se quiser se junte a excursões;

– Aproveite para ler muito, nada alimenta mais do que informações;

– Organize-se para sair com os amigos pelo menos uma vez na semana, dar risadas estimulará a produção do hormônio da felicidade;

– Participe de trabalhos voluntários, uma forma de proporcionar completude;

– Tenha um animal de estimação, mas lembre-se de que este precisa de cuidados durante sua ausência em busca de novas aventuras;

–  Aprenda a viver sozinho sem sentir-se triste, reinvente, aproveite todos os momentos livres;

– Nada melhor do que acordar e ficar na cama até a hora que se quer, ou mesmo, levantar bem cedo pegar a bike e curtir o dia;

-Nada impede de ter um romance, mas quem sabe cada uma em sua casa, assim pode preservar sua privacidade a sete chaves;

– Lembre-se de que a terapia pode ser um bom aliado para aprender a se proteger dos maus-olhados, não faltarão pessoas querendo estar em seu lugar, mas sem coragem de jogar tudo para o alto e aproveitar a vida.

Afinal, ter coragem de ser feliz é para poucos, por que não aproveita?
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* Colunista do Estadão.
Fonte:  http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/luciana-kotaka/o-prazer-de-estar-sozinho/30/06/2016

“Uma criança refugiada não se salva com comida, é preciso dar-lhe colo”

Há 21 anos que o Centro Norte-Sul do Conselho da Europa distingue duas pessoas que promovem a solidariedade entre os hemisférios. No ano da crise de solidariedade a que os líderes chamaram crise de refugiados, a premiada do Norte só podia ser a grega Lora Pappa.

Quando os políticos não fazem o seu trabalho e as regras não servem, há sempre alguém que não desiste. Lora Pappa não desistiu da Europa, mesmo quando a Europa desistiu dela. Aconselhou governos e foi consultora do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR). Depois de décadas a identificar as falhas no sistema de acolhimento de refugiados percebeu que só tinha uma opção. “Começámos do zero, decidimos fazer o que ninguém estava a fazer”, explica. Em 2010, fundou a ONG METAdrasi para ajudar as crianças que sobrevivem às guerras e se perderam dos pais a começar de novo. “O que eu mais queria era que o nosso trabalho deixasse de ser necessário”, diz a activista, em Lisboa para receber o Prémio Norte-sul do Conselho da Europa.

Como é que ninguém se tinha lembrado que as crianças têm necessidades especiais?
Em situações normais, o mandato do ACNUR é pressionar os governos a fazer o que é preciso. Nos anos todos que lá passei, fui percebendo quais eram as grandes falhas do sistema de acolhimento grego. A maior de todas era que muitos menores sem acompanhantes estavam em centros de detenção. E o mais extraordinário é que já havia centros só para menores em Atenas, mas não havia quem se responsabilizasse e os acompanhasse até lá.

O problema era a falta de guardiões legais?
Exacto. Foi um grande risco, porque há crianças que fogem e nós podemos ter problemas com a justiça. Mas decidimos que valia a pena. Dissemos, "alguém tem de o fazer". Começámos devagar, formámos assistentes sociais e treinámos intérpretes. O objectivo era que as crianças não passassem mais de 24 horas no centro de detenção. No nosso primeiro ano de actividade, 2011, tivemos muitos problemas com traficantes e fomos obrigados a contratar seguranças. Estes miúdos estão perdidos, não confiam em ninguém. E se alguém que viram no barco as convence a fugir para seguir viagem… é muito difícil explicar-lhes que é mais seguro ficar.

Quantas crianças já acompanharam?
Mais de 3700. Há os números oficiais e há a realidade, que é muito diferente. Percebemos que muitos menores não acompanhados nem sequer são registados como crianças. Dizem à polícia que têm 18 ou 19 anos porque têm medo de ser presos. E os polícias não têm culpa, não estão treinados para saber como agir.

E em que estado é que estas crianças vos chegam às mãos?
Quando uma criança sobreviveu à guerra e depois sobreviveu a um naufrágio, quando se perdeu dos pais e nem sabe se ainda tem família, tem de aparecer um adulto que perceba que tem de começar por lhe lembrar que é uma criança. São casos muito especiais, é preciso criar uma rede para que os miúdos voltem a sentir-se seguros. Por isso é que criámos a figura do guardião. Em muitos casos, elas nem sabem o que querem, já só sabem o que lhes disseram para fazer. "Tens de chegar à Alemanha", "Vens connosco, que vamos tratar de ti". Às vezes, basta um dia connosco e para voltarem a lembrar-se que são crianças.

O Governo e as instituições europeias já perceberam a razão de ser do vosso trabalho?
Demorou, mas agora percebem. Aliás, as outras ONG e os serviços do Governo estão sempre a pedir-nos ajuda. Quando a crise começou nós já tínhamos os guardiões nas fronteiras, nas ilhas, e em Atenas. Era só uma gota do oceano, mas era uma gota fundamental. Mas há quem ainda não entenda o nosso trabalho, quem pense que basta pôr-lhe um prato de comida à frente. Mas não pode ser, as crianças são crianças. Uma criança refugiada não se salva com comida, é preciso dar-lhe colo. Devíamos conseguir que cada criança tivesse o seu guardião, mas nas alturas mais complicadas temos de fazer opções. A certa altura, tivemos de dar prioridade aos rapazes até aos 15 anos, mas conseguimos sempre guardiões para todas as raparigas com menos de 18. Ter um guardião aumenta em 40% as possibilidades de uma criança ficar na Grécia em vez de seguir caminho e cair nas redes de traficantes. Nós não as largamos, se os pais ficaram para trás não descansamos até os encontrar. E os pais nunca desistem, há famílias que passam quatro meses na Grécia à procura dos filhos…

E quando já não há pais nem outros familiares?
Explicamos-lhes que é melhor ficarem connosco. Muitas vezes eles não sabem que os pais morreram, só sabem que se perderam deles. É preciso dar-lhes tempo para até poderem decidir por si próprios. Outras vezes viram os pais morrer, sabem que se afogaram. Mas para podermos avançar e requerer o asilo exigem-nos corpos e certificados de óbito… Como é que explica aos burocratas em Bruxelas que os corpos foram comidos pelos peixes?

Com o acordo entre a União Europeia e os turcos, os refugiados que já estavam na Grécia foram todos encerrados em centros de detenção à espera de serem devolvidos à Turquia. Como é que isso dificultou o vosso trabalho?
O acordo é uma loucura. A luta já era constante, mas ficou tudo pior. Quando a fronteira foi encerrada, em Fevereiro, nós estimámos que havia 2000 crianças desacompanhadas a tentar passar para a Macedónia. Finalmente, há duas semanas, os serviços gregos de asilo começaram o pré-registo dos menores... Já encontraram 500 na Grécia continental e mais de 300 nas ilhas. Estavam detidas nos centros e ninguém sabia.

A União Europeia abandonou os gregos?
Quando a União assinou o acordo com a Turquia nem pensou no que estava a fazer à Grécia. Toda a gente sabia que os serviços de asilo gregos têm 250 funcionários. É preciso ser-se de outro planeta para não perceber que no dia seguinte à entrada em vigor do acordo toda aquela gente ia requerer asilo. E de um momento para outro temos 8000 pessoas a pedir asilo e… os mesmos 250 funcionários. Toda a ajuda que ia chegar nunca chegou.

E como é que os serviços gregos tentam fazer face a isto?
O que sei é que é os gregos fazem o que podem. Mas sem a solidariedade dos outros Estados membros é uma missão impossível. Em Agosto do ano passado, por exemplo, percebi que o número oficial de menores não acompanhados era igual ao do Verão de 2014… Com toda a gente que estava a chegar, claro que não podia ser! Apanhei um avião para [a ilha de] Lesbos e nem queria acreditar, havia crianças sozinhas por todo o lado. Mas os polícias não sabiam o que fazer. "Obrigo-as a irem para os centros de detenção? Já nem há áreas separadas", diziam-me. Não podem ser os polícias a decidir o destino destas crianças. Foi aí que percebemos que tínhamos de criar centros de trânsito especiais. Batemos a todas as portas a pedir dinheiro e a União Europeia respondeu que não nos podia ajudar, estava a gastar tudo com as ONG estrangeiras. Finalmente, conseguimos o financiamento através de jovens gregos que vivem nos Estados Unidos. E a situação era dramática, tínhamos crianças a enforcarem-se, uma rapariga foi violada…

Como é que é possível que as regras estejam tão longe da realidade?
Não sei. O que sei é que a Comissão Europeia tem o seu ritmo. O "monstro" da burocracia não se compadece com a realidade. Talvez tudo mude agora com o "Brexit". Não estou muito optimista, mas gostava que fosse uma chamada de atenção, que obrigasse quem decide a parar para pensar. Infelizmente, não acredito. Às vezes penso os líderes europeus só vão acordar no dia em que o continente estiver em guerra.
Se o acordo for levado à letra, a ideia é que a Grécia não respeite os direitos humanos e as Convenções de Genebra. O que eu sei é que os funcionários fazem o possível e o impossível para não tornar a vida destas pessoas ainda mais difícil.

A somar a tudo o que foi prometido à Grécia e nunca se fez, por causa do acordo houve ONG estrangeiras que decidiram sair do país.
Sim, é um luxo que nós não temos, por mais que discordemos do acordo. As pessoas continuam lá e precisam ainda mais de ajuda. As ONG que distribuíam comida, por exemplo, foram-se embora. E nós íamos deixar estas pessoas à fome? Não podíamos. Primeiro estão as pessoas, lutamos com elas, por elas, o que não podemos é abandoná-las. Decidimos que tínhamos de encontrar outras maneiras de protesto… E a verdade é que ainda nenhum sírio foi expulso para a Turquia, os que saírem decidiram fazê-lo. Vamos lutar por estas pessoas até ao fim, nos tribunais da Grécia ou nos tribunais internacionais, com todos os meios ao nosso dispor.

O vosso projecto mais recente passa por encontrar famílias de acolhimento para estas crianças. Como é que isso está a correr?
Nós já sabíamos que as melhores práticas implicavam criar essa estrutura. É o que se faz há muitos anos na Holanda ou na Bélgica. Mas o ideal é colocar as crianças em famílias com o mesmo contexto cultural e geográfico, que falem a língua... E quando avançámos, no fim de 2014, percebemos que na Grécia, com a crise económica, os imigrantes vivem todos em casas minúsculas e passam por muitas dificuldades. Acabámos por concluir que o único caminho era abrir esta possibilidade a famílias gregas, sem termos ideia de qual seria a reacção das pessoas. Começámos muito discretamente, fizemos um comunicado de imprensa e em dois dias tivemos 280 telefonemas… Gregos a dizer "já tenho um quarto, tragam-me a criança amanhã". Claro que não é assim, é preciso saber se as famílias cumprem determinadas condições. Mas foi tão comovente.

E os resultados estão a ser os que esperavam?
Ainda melhores! Já colocámos 12 crianças com famílias. E bastam umas semanas para estes miúdos estarem a falar-nos dos seus "pais gregos". É incrível o que eles crescem e se abrem quando se vêem de novo a viver com uma família. Tivemos o caso de uma miúda de 12 anos que estava a tomar conta do irmão, mais pequeno, desde a Síria. Claro que já não sabia o que era ser criança, já não se lembrava. É maravilhoso.
O principal obstáculo então não é a falta de dinheiro. É mesmo a burocracia?
Exactamente, é incrível, mas o custo de colocar uma criança refugiada numa família é três vezes menor do que o custo de a manter num abrigo. Claro que as famílias recebem um subsídio, mas é tão pequeno, ninguém faz isto pelo dinheiro. Quem decide receber uma criança só tem de ter empatia e paciência… Se os miúdos dão problemas é por lhes faltarem adultos que os mandem dormir, que os obriguem a fazer a cama. Estas crianças deixaram de saber o que é ter regras, disciplina. É tão simples quanto isso.

Outra área em que a METAdrasi foi absolutamente revolucionária é a formação dos intérpretes. O Governo, a ONU, toda a gente quer os vossos intérpretes e vos pedem para dar formação… O que é que não estava a ser feito?
Até nós aparecermos ninguém se preocupava com a qualidade dos intérpretes. Ninguém achava importante que se falasse a língua. Nós temos pessoas que falam 33 línguas. É uma irresponsabilidade enorme, achar que isso é secundário… Estes intérpretes não são simples tradutores, são a voz de pessoas que se encontram nas situações mais frágeis que se pode imaginar, podem fazer a diferença entre a vida e a morte. Se alguém se queixa de dores no "coração" e o intérprete traduz "rim", o que é que vai acontecer àquela pessoa? A maioria dos nossos intérpretes são ex-refugiados ou imigrantes, passaram por muito, estiveram em situações limite. Mas nem eles estavam preparados para o horror de que a Grécia tem sido cenário. Quando os corpos dão à costa, são eles que agarram nos pais em pranto enquanto esperam para reconhecer os filhos… São coisas que eles nunca mais vão esquecer.
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FONTE:  https://www.publico.pt/mundo/noticia/uma-crianca-refugiada-nao-se-salva-com-comida-e-preciso-darlhe-colo-1736774?page=-1

É possível educação de qualidade para todos?

Escola CAIC Raimundo Pimentel Gomes, no bairro Alto da Bradília - Sobral (Ceará)
Estudo da Fundação Lemann identificou Sobral como exemplo de como garantir o
aprendizado de crianças com baixo nível socioeconômico 
Sim! Conheça essa experiência...
Claudia Costin*
Condições de sucesso escolar para alunos em situação vulnerável
podem ser melhoradas
Num livro publicado há poucos meses, Helping Children Succeed, Paul Tough observa, com tristeza, que o déficit de aprendizagem entre alunos de 8.º ano, provenientes de diferentes estratos de renda, vem crescendo nos Estados Unidos, ao invés de diminuir, a despeito dos esforços para mudar a situação. O país tem apresentado não apenas desempenho incompatível com seu grau de desenvolvimento, como tampouco conseguiu evitar que os mais pobres tenham um ensino ainda mais precário.
O mesmo pode ser dito em relação ao Brasil. Celebramos importantes avanços no Pisa de 2012, mas ainda estamos em posição inaceitável entre as 65 economias que participam desse teste internacional de qualidade da educação. Mais ainda, a despeito de sermos o país que mais avançou em Matemática, de 2003 para 2012, ainda temos 67,1% dos alunos com baixo desempenho na área. O tema de maior dificuldade para os alunos brasileiros, em que tivemos o menor desempenho, foi o de “formular situações matematicamente”, competência relevante para diversas profissões e áreas de pesquisa. Só 1,1% dos alunos apresentam desempenho elevado. Mas o que se mostra particularmente cruel para os que acreditam que educação é o caminho para gerar oportunidades para todos é a profunda desigualdade educacional do nosso país, tanto no acesso e na conclusão de cada etapa de escolaridade quanto no desempenho escolar ou na aprendizagem.
Estive recentemente em Xangai, cidade chinesa, com mais de 23 milhões de habitantes, que obteve o primeiro lugar entre as economias que participaram do Pisa. Fui lançar um estudo do Banco Mundial sobre as razões do excepcional desempenho da cidade. Em solução de problemas, por exemplo, Xangai ficou em 6.º lugar no Pisa 2012 entre 44 países ou sistemas regionaiso Brasil ficou na 38.ª posição. Embora conte com número importante de alunos em situação de pobreza, estudantes que se encontram entre os 10% mais pobres de Xangai são tão bons em Matemática quanto os 20% de adolescentes mais ricos do Reino Unido e dos Estados Unidos. Ou seja: Xangai não tem apenas o melhor desempenho em Matemática e um dos melhores em leitura e Ciências; é também um dos mais igualitários, apesar de contar com uma proporção elevada de migrantes internos.
O que fazem de excepcional para chegar lá?
a) Os professores são preparados para uma profissão e o currículo na universidade enfatiza o conhecimento do conteúdo a ser ensinado e a prática em sala de aula, incluindo a didática específica daquela área.
b) Além disso, a universidade reúne-se com os professores da escola para analisar, com eles, problemas de aprendizagem que lá tenham emergido e, juntos, constroem soluções possíveis com os recursos disponíveis.
c) Outro ponto importante é que os professores têm seu tempo de atividades extraclasse dentro da escola (e não fora dela, como em muitas escolas brasileiras), corrigindo tarefas escolares e preparando planos de aula minuciosos, com base no currículo e em colaboração com os colegas.
d) Observam, também, as aulas dos colegas e juntos discutem o que pode ser aperfeiçoado.
Não escrevo isso para que pensemos em copiar o modelo dessa megacidade chinesa, mas para que possamos perceber que é possível ter qualidade para todos. A escolaridade dos pais e a situação socioeconômica da família têm forte papel no desempenho escolar dos alunos. Afinal, interpretação de textos, por exemplo, depende muito do repertório cultural adquirido pelo aluno, e é sabido que importante parte dele vem da família. Mas a escola pode, deve e tem conseguido, em muitos casos, garantir o direito de aprender de crianças mesmo vindas de famílias de reduzida escolaridade ou situação socioeconômica adversa. Xangai ilustra isso, várias escolas no Brasil também o fazem, como mostra o interessante estudo da Fundação Lemann Excelência com Equidade – 250 escolas públicas com alunos de nível socioeconômico situado entre os 25% mais baixos da região onde estavam localizadas, e com pelo menos 70% dos alunos com nível adequado em Matemática e Língua Portuguesa na Prova Brasil e, no máximo, 5% de alunos no nível insuficiente, evidenciaram que é possível aliar qualidade e equidade. Duas delas estão localizadas no Rio de Janeiro, e tive a oportunidade de visitá-las. O que têm em comum? Metas claras e uma equipe de professores comprometidos com um ensino que assegure que todos aprendam.
Autora deste artigo
Mas como garantir que o exemplo dessas escolas seja estendido às demais no Brasil que concentram crianças em situação de pobreza? As condições de sucesso escolar para alunos em situação de vulnerabilidade podem ser melhoradas, e muito,
a) se houver uma política pública que assegure a atração e retenção de bons professores e lhes dê material de apoio adequado,
b) conte com uma educação de qualidade e cuidados na primeira infância.
c) Se investirmos mais em remunerar melhor o professor,
d) alocá-los numa única escola, com tempo para ali, colaborativamente, preparar suas aulas e aprender com os colegas, ajudaria.
e) Se tornarmos a formação inicial do professor mais adequada aos desafios da sala de aula, e não enfatizarmos apenas os fundamentos da educação, também ajudaria.
f) Mas se pudermos, além disso, reduzir o impacto das condicionantes socioeconômicas no desempenho escolar do aluno, por meio de um investimento forte e focado em educação infantil de qualidade e cuidados na primeira infância, poderemos, aí, sim, combinar qualidade com equidade, como preconiza o Objetivo do Desenvolvimento Sustentável, recém-aprovado pela ONU, para a educação (ODS-4), a ser atingido até 2030:
“Assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos”.
Não é muito difícil garantir educação de qualidade para poucos, mas o princípio da equidade demanda que isso seja estendido a todos – daí o nosso grande desafio!
* CLAUDIA COSTIN é diretora global de educação do Banco Mundial.
Fonte: O Estado de S. Paulo – Espaço aberto – Terça-feira, 28 de junho de 2016 – Pág. A2 – Internet: clique aqui.

segunda-feira, 27 de junho de 2016

O Brexit segundo Fukuyama

Luiz Antônio Araujo* 

 

 "Se você observar as características dos eleitores 
que escolheram sair, eles tendem 
a ser menos instruídos, 
menos organizados, 
mais idosos."

Se tivesse votado no plebiscito britânico de quinta-feira, o cientista político americano Francis Fukuyama teria optado pela permanência na União Europeia. No dia seguinte, por volta do meio-dia, quando atendeu a uma ligação de Zero Hora em Stanford, Califórnia, já sabia que o resultado não o agradava. Marcada dias antes, a entrevista trataria, se dependesse do entrevistador, dos impasses da democracia americana entre o final da Era Obama e a perspectiva de uma segunda Era Clinton ou de uma Era Trump. Diante do Brexit, a possibilidade de ouvir em primeira mão a análise de um dos mais célebres pensadores políticos americanos foi providencial. Fukuyama riu ao ouvir que, em vez de ser “o homem certo no lugar certo”, repórteres preferem às vezes ser “o homem certo com o número de telefone certo”. Em seguida, traçou o que provavelmente foi sua primeira avaliação de viva voz sobre uma das reviravoltas políticas mais dramáticas do século:

– O mundo está passando por muita instabilidade neste momento, e não precisamos romper instituições de cooperação internacional. A longo prazo, esta será uma decisão vital para a Grã-Bretanha, do ponto de vista econômico. Mas também penso que estamos vendo uma revolta global contra as elites e a globalização. Se você observar as características dos eleitores que escolheram sair, eles tendem a ser menos instruídos, menos organizados, mais idosos. Esses mesmos eleitores, em muitos países, estão votando em partidos populistas, incluindo os Estados Unidos: é exatamente o mesmo grupo demográfico que vota em Donald Trump.

A globalização, na opinião de Fukuyama, está sendo questionada pelos de baixo:

– Apesar de ter trazido enormes benefícios, de modo agregado, a muitos países, a globalização não ajudou a todos, especialmente trabalhadores menos educados na indústria manufatureira e em outros setores mais antigos da economia. Eles estão finalmente se encontrando em uma voz crítica e dizendo que não gostam do que está acontecendo. Uma outra questão é a migração, que é um grande elemento cultural. A mesma globalização trouxe uma série de problemas de identidade, com pessoas pensando que podem perder o controle de suas próprias sociedades. Por todas essas razões, creio que isso faz parte do processo democrático, embora não tenha gostado do resultado final.

Horas antes, Trump havia dito que o Brexit era uma “coisa boa”. Fukuyama identifica semelhanças pontuais entre o voto anti-UE e a ascensão do bilionário nova-iorquino nas pesquisas:

– Acredito que ambos têm uma base social similar, trabalhadores que foram deixados para trás pela globalização. Trump é um fenômeno um tanto único. Penso que ele é mais parecido com Silvio Berlusconi na Itália: um empresário bem-sucedido que se saiu bem na manipulação da mídia e que sabe usar isso para promover seus próprios interesses pessoais. Não sei até que ponto Trump tenha noções profundas sobre políticas públicas ou até que ponto ele se importa com as instituições democráticas e outras, mas ele certamente é muito bom em usar a mídia para promover seus próprios interesses empresariais. Não sei se há alguém confortável com isso entre os que votaram pelo Brexit. Isso faz da situação americana algo único.

O mundo caminha para a reversão da globalização? A resposta de Fukuyama é cautelosa:

– Não sei. Penso que há um verdadeiro grande risco. Há muito nacionalismo econômico em muitos lugares. Temo que, especialmente se Trump acabar se tornando presidente dos Estados Unidos e instaurar uma política econômica muito mais nacionalista, isso possa ser replicado em muitos países. Não diria que, no momento, a globalização será revertida, mas há um grande perigo de isso acontecer nos próximos anos.

Na quarta-feira, Fukuyama faz conferência sobre o tema A Construção do Estado e a Próxima Agenda para a América Latina no ciclo Fronteiras do Pensamento, em São Paulo.
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* Colunista da ZH
Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a6206821.xml&template=3916.dwt&edition=29222&section=3595
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Lévy, Morin e o erro de Messi

Juremir Machado da Silva*
 

Há domingos que rompem a rotina, indo do cinza ao sol maravilhoso, fazendo pensar sobre coisas muito diferentes a partir de pontos aparentemente incongruentes. Tudo se interliga ao sabor dos sonhos.

Fui almoçar, no Barranco, com o editor Luís Gomes e com o tradutor e professor da PUC-SP Edgard de Assis Carvalho, especialista na obra de Edgar Morin, nosso mestre e amigo, autor de dezenas de livros incontornáveis, que completará 95 anos de idade no próximo dia 8 de julho.

Voltei a tempo de ver o Internacional perder para o Botafogo.

Fui jantar, no Copacabana, com meu amigo Pierre Lévy, filósofo francês, professor no Canadá, especialista em tecnologias, um dos primeiros pensadores do virtual, do ciberespaço e da internet.

Voltei a tempo de ver Messi perder um pênalti.

No almoço, conversamos sobre a importância de Morin e sobre a resistência à obra dele de parte dos setores mais “conservadores” das Ciências Humanas. Por exemplo, os departamentos marxistas.

No jogo do Inter contra o Botafogo, vi uma ideia cara a Morin em ato: a imprevisibilidade.

Só os positivistas e os neopositivistas acreditam na cientificidade do futebol.

No jantar, falamos das transformações que só estão começando.

Pierre salientou que a internet ainda está na sua pré-história.
 
Muitas profissões, segundo ele, vão desaparecer.

Gravei com ele uma entrevista para o Caderno de Sábado.

O pênalti perdido por Messi é Morin na veia: os grandes também erram. Não há treinamento ou planejamento que possa impedir o acaso, a emoção, o imprevisível, o azar, o inesperado.

A grandeza do futebol está na sua complexidade: mescla de coletivo, individualidade, técnica, tática, planejamento, risco, acaso, erro, racionalidade, emoção, aposta, ousadia, cautela e mistério.

O erro de Messi humaniza e salva o futebol da tecnoburocracia cientificista.

No jogo, os dados nunca estão lançados.

Nem para o melhor do mundo.

Nem para a vida em rede.
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* Sociólogo. Escritor
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/
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domingo, 26 de junho de 2016

Nélida Piñon: ‘Quem não quer ser aventureiro?’


sky

Entrevista Nélida Piñon

Nélida Piñon, 78, é uma das escritoras brasileiras mais celebradas no mundo hispânico. Filha de imigrantes galegos, sua relação com a literatura espanhola vem desde criança. Dom Quixote é, assim, um de seus livros do peito. Em conversa com a Folha, ela falou não só da importância do livro para sua formação, mas também para o cânone literário.

Folha - Você já falou que vê em Dom Quixote uma crítica ao poder de Filipe 2ë (1527-1598). Pode explicar melhor?

Nélida Piñon - O Quixote é uma acusação à miséria espanhola no período. Cervantes mira a prepotência militar do rei. Onde havia riqueza, começam a surgir bodegões, albergues… Muitas ações do livro se passam nesses espaços. 

Mas você vê uma crítica atual ao poder instituído?
Sim, ao desmedido poder que gravita em torno de si mesmo. Acho que falta a todos nós a capacidade de criticar o poder. O poder é ingrato, ele não trabalha em favor do povo. A única coisa que importa ao poder é cuidar dele próprio, das amantes, das mulheres e dos filhos.

Qual foi o seu primeiro contato com Dom Quixote?
Comecei com os livros de aventura. Tenho uma gratíssima lembrança por aqueles grandes mentirosos que me introduziram no mundo da inverossimilhança. Somos seres das peripécias. Cervantes você vai descobrindo cada vez mais. Você já pensou no milagre que é um autor se modernizar como se estivesse vivo? Ai, meu Deus, como é que o gênio lhe outorgou esse milagre? Quando você o lê, você prolonga sua existência narrativa.

O livro instala princípios narrativos e estéticos de um vigor… Quem não quer ser aventureiro? Esse é um fascínio que Quixote exerce. 

Cervantes começa contando a história como um conto, mas acaba escrevendo dois volumes…

Há críticos que dizem que ele queria fazer um livro pequeno e depois o prorrogou. De todo modo, penso que toda história tem uma volúpia, um desejo de ir além dos seus limites. É como se ela dissesse: Ô, narrador! Vamos embora, porque tenho outras coisas para contar! Você não percebeu esse fio do qual você pode partir para puxar todos os fios do cordel?.
Como um clássico assim sobrevive ao tempo e às traduções. Há algo intrínseco à própria narrativa?
Tenho a impressão de que há um grande conteúdo teórico dentro de Dom Quixote. As reflexões e as considerações estéticas [de Cervantes] estão embutidas na ação. Isso ajuda o mundo. Cervantes é um contador de histórias. 

Em A Camisa do Marido, você defende Dom Quixote como um pilar da civilização ocidental. Por quê?
O Quixote é uma cápsula, uma esfera, um epicentro. Faz você se dar conta da sua humanidade. Como quando você conhece um santo. Não há nada do que é humano que não esteja dentro do livro.

Vá direto à fonte. Não perca tempo com livrinhos vagabundos. Após milhões de anos, conseguimos o quinto dedinho da mão, fizemos coisas espantosas e cruéis. Somos um milagre. Podemos perder tempo com banalidade?
A liberdade, Sancho, não é um pedaço de pão Dom Quixote
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Reportagem por  Maurício Meireles, colunista da Folha
Fonte: http://arte.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/04/23/shakespeare-e-cervantes/

A utopia tropical de Eduardo Giannetti

HÉLIO SCHWARTSMAN*

Eduardo Giannetti em ilustração de Filipe Rocha

RESUMO Em novo livro, composto de microensaios, Eduardo Giannetti analisa a relação entre ciência e o avanço da espécie humana. Para o economista, que foi consultor de Marina Silva em sua campanha à Presidência em 2014, o caráter brasileiro pode ajudar a resolver o impasse 
entre progresso e sustentabilidade.

Trópicos Utópicos", o mais recente livro de Eduardo Giannetti, é uma obra ambiciosa. O autor busca, numa sequência de 124 microensaios, que se estendem por apenas 163 páginas do breve volume [Companhia das Letras, 216 págs., R$ 49,90], identificar a crise civilizatória que acomete nossos tempos, destrinchar as ilusões que a alimentam e ainda esboçar uma saída para o problema, sob a perspectiva brasileira. 

Caberá ao leitor julgar em que medida Giannetti cumpre essas promessas, mas posso assegurar que é um grande prazer navegar pelos textos, que amalgamam "insights" valiosos com informações relevantes, erudição e estilo. Mesmo que o leitor discorde inteiramente dos diagnósticos e da terapia propostos pelo autor, encontrará farto material para reflexão. 

Antes de prosseguir, em obediência ao princípio da transparência, devo alertar para um potencial conflito de interesses. Como Giannetti é meu amigo, por mais objetivo que eu procure ser, é mais ou menos inevitável que esta resenha seja benevolente para com o autor e a obra. Cientes disso, os leitores podem dar a minhas observações os descontos que considerarem devidos. 

A estrutura de "Trópicos Utópicos" é simples. "Grosso modo", a primeira parte sustenta que a ciência falhou em sua promessa de banir o mistério do mundo e elucidar o sentido da vida; a segunda mostra que os avanços tecnológicos têm um limite e jamais nos levarão ao completo domínio sobre a natureza; e a terceira afirma que o crescimento econômico e os ganhos civilizatórios a ele associados não levam necessariamente ao aprimoramento ético e intelectual da humanidade. Na quarta parte, Giannetti propõe uma discussão sobre utopias e sobre a identidade nacional e sugere que algo contido no caráter brasileiro pode nos ajudar a resolver os impasses descritos nas três partes anteriores. 

A simplicidade da estrutura é, obviamente, enganosa. Todas as partes se inter-relacionam, e os microensaios, nome que Giannetti prefere a aforismos, embora possam ser lidos de modo isolado, só adquirem pleno sentido se interpretados de forma mais sistemática. 

Tenho várias discordâncias em relação aos tópicos discutidos, mas elas são muito mais de grau do que de natureza. Pincelo, sem nenhuma pretensão de exaurir as discussões suscitadas pelo livro, alguns pontos que me pareceram especialmente instigantes. 

No que diz respeito à primeira parte, acho que nem o mais ferrenho positivista lógico sustentaria, hoje, que a ciência tem a resposta para todos os nossos problemas. Giannetti, porém, não se contenta em indicar os limites da ciência e mostrar que ela também está calcada numa metafísica. Ele sustenta que a ciência, ao delimitar o tipo de pergunta que é legítimo fazer, acabou corroendo as metafísicas, como a religião, que davam sentido à existência. Isso é, para o autor, uma receita para o niilismo. Como já ensinava o físico Steven Weinberg, quanto mais compreendemos o universo, mais ele fica destituído de propósito. Ou, para utilizar as palavras de Giannetti, "a ciência ilumina, mas não sacia –e pior: mina e desacredita todas as fontes possíveis de repleção". 

De acordo. Mas, dando rédeas ao pequeno niilista que existe dentro de cada um de nós, pergunto: e se o universo e a existência forem de fato algo sem fim ou propósito? Será que, aí, criar sentido onde não existe um, buscar a tal da repleção, não seria uma forma de autoengano que a ciência teria por missão afastar? 

É claro que, ao dizer isso, já estou afirmando uma metafísica na qual a "verdade" (coloquem quantas aspas quiserem) prepondera sobre a "fome de sentido" (o termo é de Giannetti). O ponto central é justamente não conseguirmos, por mais que tentemos, nos livrar de alguma metafísica e nos faltarem critérios não metafísicos para hierarquizá-las. A opção do autor pelo sentido é válida e, provavelmente, mais em linha com os apetites humanos, mas é apenas uma opção, entre outras possíveis. 

Na segunda parte, Giannetti desnuda sua faceta ecológica. Mas, se ele é um "tree hugger" (abraçador de árvores), que denuncia o beco sem saída em que a exploração insustentável do planeta nos lança, não deixa de ser o economista racional, que reconhece as virtudes da economia de mercado, tanto em seus aspectos materiais (geração de prosperidade) como morais (promoção da liberdade). 

Conciliar as duas posições talvez seja impossível na prática, mas não o é na teoria. O próprio sistema de preços pode trazer parte da solução, ensina Giannetti, se for recalibrado para refletir o impacto negativo que cada tecnologia, produto ou serviço exerce sobre a biosfera. 

Aproveito aqui para abrir um parêntese. Todos os ecologistas, do papa a Giannetti, passando pelos frequentadores de São Tomé das Letras, adoram falar mal do ar-condicionado. É como se esse aparelhinho não passasse de um luxo supérfluo que devora energia em quantidades pantagruélicas, contribuindo enormemente para o aquecimento global. Admito que é egoisticamente prazeroso escapar ao calor senegalesco que muitas vezes nos assalta nos meses de estio, mas ares-condicionados também salvam vidas. 

E não poucas. Estudo de 2013 de Alan Barreca, da Universidade Tulane, e colaboradores mostra que a adoção maciça de ares-condicionados pelos norte-americanos é o principal motivo para uma redução de 80% no número de mortes prematuras nos dias mais tórridos do verão naquele país. Pelas estimativas dos autores, os óbitos caíram de 3.600 ao ano no período entre 1900 e 1959 para 600 entre 1960 e 2004. Os valores foram ajustados para permitir a comparação. Segundo Barreca, a popularização dos ares-condicionados explica quase todo esse efeito. 

IDOLATRIA
 
Voltando a "Trópicos Utópicos", a cegueira do sistema de preços para as externalidades é apenas um dos muito desafios, que também incluem uma espécie de idolatria que mantemos em relação ao crescimento econômico e as próprias vicissitudes da liberdade (comportamentos individuais inofensivos, como ligar o ar-condicionado, podem se tornar um problema quando exercidos por multidões, como se vê pela crescente demanda de energia elétrica). 

Na terceira parte, Giannetti se embrenha por temas tão variados como sociedade de consumo, sexo e a combinação dos dois, expressa na máxima "Se as mulheres não existissem, todo o dinheiro perderia o sentido", atribuída ao milionário e sedutor Aristóteles Onassis. 

Nesse capítulo, provavelmente o meu favorito, Giannetti vai, em seus microensaios, compondo um quadro não muito lisonjeiro, mas, a meu ver, bastante preciso da natureza humana e da civilização.
Na série discordâncias de grau, eu, como sou mais otimista do que o autor, enfatizaria um pouco mais o lado bonito de nossa história. 

É verdade que nós não passamos de animais, e as estruturas que nos ligam ao que se convencionou chamar de civilização são frágeis, um verniz ralinho. 

Ainda assim, considerada a série histórica longa, estamos fazendo um bom trabalho. O mundo nunca foi tão próspero quanto o é hoje –e mesmo os mais pobres se beneficiam disso– e está se tornando cada vez menos violento. O processo de autodomesticação humana, ao qual o autor alude, está dando certo, ainda que talvez não no ritmo desejado. O fato de haver barreiras físicas à continuidade dessa expansão não diminui o valor do que logramos até aqui. 

É na quarta parte que Giannetti se torna um sonhático. Ele não perderia, é claro, a oportunidade de teorizar sobre isso. E o faz refletindo sobre o valor das utopias. 

"Ocorre, porém, que a realidade objetiva não é toda a realidade. A vida dos povos, não menos que a dos indivíduos, é vivida em larga medida na imaginação. A capacidade de sonho e o desejo de mudar fertilizam o real, expandem as fronteiras do possível e reembaralham as cartas do provável", escreve numa das várias passagens memoráveis do livro. 

A partir daí, Giannetti passa a se mover no terreno mais pantanoso da psicologia dos povos. Se, até o século 19, esse era um tópico quase obrigatório para autores tão diversos quanto Rousseau, Montesquieu, Marx, Nietzsche etc, ele se tornou suspeito em algum momento do século 20, quando passou a ser visto como uma generalização insustentável, quando não ingênua ou interessada. 

Confesso que fico um pouco incomodado com discussões sobre identidade nacional e seu corolário, que é a utilização de clichês como "cordialidade do brasileiro", "vocação para a felicidade", "exuberância tropical", "país do Carnaval". Frequentemente, julgo ter mais em comum com um jornalista americano ou francês vivendo em Nova York ou Paris do que com um brasileiro que habite em Belém do Pará e tire seu sustento da pesca. 

Por outro lado, não dá nem para começar a falar em cultura (um conceito que goza de grande prestígio na academia) sem ter como pressuposto certas comunalidades meio esotéricas e valores compartilhados que necessariamente resvalam nos clichês mencionados. 

Assim, considero legítima a incursão de Giannetti pela psicologia dos povos, mas não estou ainda certo de que compro sua conclusão –a saber, a de que o brasileiro, numa espécie de sabedoria não intencional, reúne as condições ideais para encontrar um caminho do meio, que, sem renunciar à prosperidade e ao conforto material proporcionados pela economia de mercado, consiga buscar em valores menos ocidentalizados os freios necessários para manter o desenvolvimento numa escala compatível com a preservação do planeta. 

Utopia? Provavelmente. Mas a intenção do autor é justamente nos provocar para que não caiamos na armadilha da objetividade possível. 

Nota: "Trópicos Utópicos" será lançado em São Paulo nesta segunda (27), às 19h, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional. 
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* HÉLIO SCHWARTSMAN, 50, é titular da coluna São Paulo, publicada na página 2 da Folha.
FILIPE ROCHA, 27, é designer gráfico da Folha. 
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/06/1785008-a-utopia-tropical-de-eduardo-giannetti.shtml

Neurociência e psicanálise: aliadas ou inimigas?

DIOGO LARA*

A PSICANÁLISE HOJE É UM EXERCÍCIO ESTÉTICO, NÃO UM TRATAMENTO DE SAÚDE, DISSE IZQUIERDO. A DECLARAÇÃO REPERCUTIU EM AMBOS OS CAMPOS, ALGUNS CONCORDANDO COM A FORMULAÇÃO, OUTROS CRITICANDO. ZH CONVIDOU PROFISSIONAIS LIGADOS À PSICANÁLISE, À PSIQUIATRIA E À PESQUISA NEUROCIENTÍFICA PARA DEBATER

Em recente entrevista à Folha de São Paulo, o neurocientista Iván Izquierdo afirmou que a neurociência avançou mais do que a psicanálise, que hoje pode ser considerada um exercício estético, não um tratamento de saúde. Apesar da reação de adeptos de teorias psicanalíticas, o próprio Izquierdo reconheceu Freud como uma grande referência, com contribuições importantes e trabalhos pioneiros em usar a extinção de memórias no tratamento de fobias.

Na ciência, estamos acostumados a criticar e a receber críticas dos pares no terreno das ideias e de fatos experimentais sem levá-las para o lado pessoal. A crítica e a dúvida são bem-vindas no exercício em busca da verdade, assim como experimentos rigorosos para colocar as hipóteses à prova. Já a sustentação da psicanálise advém de modelos teóricos sofisticados e da observação empírica, ou seja, da experiência baseada nos sentidos, buscando reforçar suas teorias. Nesse sentido, neurociência e psicanálise têm abordagens opostas em relação ao conhecimento.

A proposta do tratamento psicanalítico é buscar as causas dos problemas que, muitas vezes, seriam inconscientes e cuja origem estaria na relação com os pais no contexto de infância. A favor dessa proposição, existem centenas de estudos científicos em animais e em seres humanos mostrando que as adversidades na infância advindas da relação com os pais podem ter efeitos nocivos e duradouros. A interpretação dos sonhos serviria para acessar o conteúdo inconsciente, e a própria relação com o psicanalista seria o caminho para a cura e o bem estar. Nesse quesito, existem poucos estudos científicos, alguns a favor e outros contra a efetividade do tratamento psicanalítico. Já outras abordagens de psicoterapia aderiram ao modelo científico e, por isso, têm evoluído e conquistado cada vez mais espaço.

A psicanálise foi a precursora das psicoterapias e introduziu conceitos que já fazem parte da nossa cultura. Na minha prática como psiquiatra, são comuns os relatos de que a psicoterapia psicanalítica traz benefícios e promove maior consciência das origens dos problemas, mas a maioria não sabe o que fazer com essas descobertas. Nas palavras de um paciente, “a psicanálise me ajudou a ligar a luz, a saber que tem um monstro na sala e a ver como ele é. Mas ele ainda está lá”.

O que me surpreende é que há décadas existem técnicas de processamento de memórias muito eficazes para “tirar o monstro da sala”, mas pouca gente sabe disso. A mais bem estudada delas, o EMDR, conta com 25 estudos científicos positivos no tratamento de memórias traumáticas graves, com ótima resposta já em poucas sessões. Na neurociência, o fenômeno que mais se assemelha ao processamento de traumas é conhecido como janela de reconsolidação de memórias. Quando memórias antigas são “reativadas”, abre-se uma oportunidade em que elas se tornam mais flexíveis e passíveis de serem modificadas. Outras técnicas excelentes, como o Brainspotting e a Experiência Somática, usam estratégias semelhantes para promover cura emocional. Se fosse vivo, talvez Freud estivesse usando o processamento de traumas para testar suas hipóteses. São experiências muito recompensadoras para pacientes e terapeutas.

Apesar de diferentes pontos de vista, todas as abordagens da psicologia, da psiquiatria e das neurociências são aliadas contra um inimigo comum: o sofrimento psíquico, principal problema de saúde pública em pessoas até os 50 anos. Cerca de 30% da população tem um transtorno psiquiátrico crônico e somente 14% desses recebe algum tipo de tratamento, segundo dados do estudo Megacity em São Paulo. Apesar dos tratamentos eficazes disponíveis, as principais barreiras são custo, preconceito e preocupações com confidencialidade. Portanto, o desafio maior é fazer com o que os tratamentos cheguem a quem precisa.

O rápido avanço e amplo acesso à tecnologia gera uma perspectiva promissora para quebrar as barreiras existentes, mas ainda é pequeno o uso de aplicativos e plataformas online na área do comportamento. Para melhorarmos o trágico cenário atual, precisamos de mais pessoas e instituições, como governo, mídia, empresas, universidades, sindicatos, escolas, igrejas e ONGs, fomentando a saúde emocional. Muitas abordagens atuais têm valor terapêutico. Tentar ganhar a discussão é menos produtivo do que unir forças e promover sinergias para se aprimorar o cérebro e a mente dos brasileiros.
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*  PSIQUIATRA E PESQUISADOR DA PUCRS E DO CNPQ, DIRETOR DO SITE CODIGODAMENTE.COM DE AUTOTERAPIA ONLINE
Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a6165022.xml&template=3898.dwt&edition=29215&section=4572

SANTO AGOSTINHO

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.*

O crescimento econômico não é solução para tudo, mas sem crescimento não há solução para nada. Esta máxima se aplica certamente ao que é hoje um dos nossos principais desafios macroeconômicos – o ajustamento das contas públicas.

Com a economia em recessão, o controle das finanças do governo se torna uma tarefa de Sísifo. A recessão derruba as receitas porque deprime as bases sobre as quais recaem os impostos – a produção, as vendas, as rendas e os empregos. Numa recessão profunda como a atual, a queda das receitas tende inclusive a ser maior do que a do nível de atividade, uma vez que os agentes econômicos buscam se proteger aumentando a evasão fiscal e atrasando o pagamento de tributos. Ao mesmo tempo, a recessão eleva automaticamente os gastos de natureza cíclica, como o seguro-desemprego e despesas de assistência social.

Em suma, a recessão amplia o déficit do governo, acelerando o crescimento da já elevada dívida pública. Mas se o governo responde a isso com cortes de gastos e aumentos de impostos, o resultado provável é o aumento da recessão. Instaura-se um círculo vicioso em que o ajuste fiscal acaba se autoderrotando.

Como retomar o crescimento econômico? Não se pode contar com a política fiscal, evidentemente. O espaço fiscal é zero ou até negativo. Qualquer tentativa de impulsionar a demanda com cortes de impostos ou aumento do gasto público teria vida curta. Nas circunstâncias atuais, o máximo que se pode fazer é manter uma política fiscal neutra, que não contribua para aprofundar a recessão.

A responsabilidade recai, portanto, sobre a taxa de câmbio e a taxa de juro. Esses seriam os instrumentos de onde poderia vir certo alento para a economia no curto prazo. A depreciação cambial dos anos recentes já está fazendo a sua parte, estimulando os setores exportadores e os que disputam o mercado interno com importações de bens e serviços. O que cabe agora é evitar uma revalorização excessiva do real, que venha a interromper o impulso dado ao setor externo da economia. Note-se ainda que, como o setor público brasileiro é credor líquido em moeda estrangeira, a depreciação cambial tem efeito positivo direto sobre as contas governamentais.

Porém, numa economia continental, como a brasileira, a taxa de câmbio não tem força para carregar sozinha a reativação. É essencial criar as condições para diminuir a taxa de juro e fomentar o crédito. A queda dos juros, além de estimular a atividade, teria efeito positivo direto sobre as contas do governo ao diminuir o custo da dívida pública.

Isso nos traz de volta à questão fiscal. Para reduzir os juros de forma significativa e sustentável, é importante equacionar o problema das contas públicas. Como sair do impasse? A estratégia factível nesse tipo de situação é combinar flexibilidade de curto prazo com ajustamento no longo prazo. Ou seja: preservar alguma função estabilizadora para a política fiscal, evitando que ela aprofunde a recessão, mas adotar ao mesmo tempo, de forma crível, um programa rigoroso de longo prazo, que garanta as condições de solvência do setor público.

É a prece de Santo Agostinho: “Dai-me a virtude, mas não agora”.

A recessão amplia o déficit do governo.
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Economista*
paulonbjr@hotmail.com
Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a6168596.xml&template=3898.dwt&edition=29215&section=1012