O
processo de classificação de "O almoço do trolha" é o primeiro a
acontecer com um pintor ainda vivo. Motivo de orgulho para Júlio Pomar?
"Essas coisas já me escapam".
Um
trabalho levou ao outro. Explica Júlio Pomar que foi a pintura dos
frescos no cinema batalha no Porto que serviu de inspiração para "O
almoço do trolha". O cinema estava na altura em construção e o pintor
"convivia todos os dias com os operários" entre eles "o trolha". Um
momento do dia-a-dia captou em especial a atenção de Júlio Pomar: "A
cena da pausa em que a mulher chega com o filho pequeno e vem servir o
almoço ao marido. Era uma cena que eu tinha todos os dias".
É
o que está retratado neste quadro leiloado no ano passado por 350 mil
euros. A obra está em processo de classificação pela Direção Geral do
Património Cultural, até ao final do ano deverá passar a ter o estatuto
de "bem móvel de interesse público". Pela primeira vez um quadro de um
pintor vivo é alvo de classificação. Questionado sobre se é motivo de
orgulho, responde Júlio Pomar: "Essas coisas já me escapam. Fiz o
quadro, a tarefa já não é pequena"
As primeiras pinturas: os ovos estrelados
Júlio
Pomar diz à TSF que desde muito cedo começou a revelar interesse pela
pintura. Um interesse que motivou a oferta, por uma tia, de uma caixa de
tintas a óleo. Foram "usadas até ao limite". Entre as primeiras
pinturas recorda-se Júlio Pomar "de uns ovos estrelados numa frigideira
de barro". A predisposição revelada por este menino, então com 7/8 anos,
levou-o mais tarde a ingressar na escola António Arroio e numa fase
mais adiantada da juventude nas escolas de belas artes de Lisboa e
Porto.
A primeira exposição e Almada Negreiros
Em
conjunto com alguns colegas o pintor decidiu por esta altura abrir o
primeiro ateliê "num segundo andar da Rua das Flores". Explica Júlio
Pomar que a ideia era dedicarem-se "ao exercício da pintura, na
qualidade de artistas, na qualidade de gente que anda à procura não se
sabe muito bem do quê". Mais tarde deram corpo ao projeto de tornar esse
ateliê numa sala de exposição. O facto de essa exposição ter sido
divulgada por alguns jornais despertou o interesse dos "intelectuais da
Brasileira". Entre os visitantes, "José Almada Negreiros e António da
Costa". Das memórias desse dia permanece "a emoção que nós tivemos de
ver dois artistas de peso a debruçarem-se com curiosidade sobre o que
faziam meia dúzia de garotos". Conta o pintor que Almada Negreiros
dirigiu-se a Júlio Pomar dizendo-lhe: "Hei de ensinar-lhe o caminho da
minha casa". Em sinal de interesse e de amizade, Almada Negreiros compra
um quadro, ato acompanhado pela promessa de "fazer com que o quadro
fosse exposto". E foi.
O processo disciplinar
A
passagem pela escola de belas artes do porto fica marcada por um
processo disciplinar que culmina na suspensão de Júlio Pomar. O pintor
explica que este caso teve motivações políticas. Na base do incidente a
"criação de uma associação académica" que acaba por fazer com que os
alunos implicados perdessem o ano. Nada que tivesse perturbado Júlio
Pomar que explica que naquela altura já estava a pensar deixar a escola
face a uma encomenda que tinha recebido para a pintura de "mais de 100
metros quadrados de um cinema que ia abrir" (cinema batalha no porto).
O "fascismo doce"
Desde
muito cedo que Júlio Pomar sentiu o apelo da intervenção cívica. De
outra forma não poderia deixar de ser diz o pintor que lembra que "a
situação portuguesa para quem andasse de olhos abertos era extremamente
dolorosa, o fascismo português estava em todo o seu esplendor". A este
propósito Júlio Pomar sublinha no entanto que "o fascismo português tem
características muitos especiais que o distinguem do que aconteceu em
Itália" pelo facto de ser "um fascismo em que as crueldades eram
adoçadas abafadas". O pintor admite que pode até ser considerada
"antagónica e repugnante" a associação destas duas palavras (fascismo e
doce) mas considera que se encaixam no retrato daquele tempo em "que
tudo era abafado, tudo se passava por meias palavras, não era necessário
dizer as palavras todas".
A prisão em Caxias ao lado de Mário Soares
Na
sequência do apelo a uma maior intervenção cívica, Júlio Pomar
participa mais tarde no Movimento de Unidade Democrática (MUD) onde
conhece Mário Soares. A "ousadia" custa-lhe a detenção pela PIDE. Esteve
quatro meses na prisão de Caxias onde, revela, não foi alvo de
violência física. Desses tempos ficou a amizade com Mário Soares com
quem continua "naturalmente" a falar. "É uma amizade que ficou para a
vida", esclarece.
O momento político atual
Júlio
Pomar considera que o momento que hoje vivemos "com o que tem de agudo e
posições extremadas" não tem paralelo. O pintor diz que é preciso medir
bem as consequências das decisões e ao mesmo tempo "arriscar". Entre
sorrisos explica o conceito: "Fazer riscos foi desde criança uma
obsessão".
O país e os jovens artistas
Em
1963, Júlio Pomar decidiu partir para Paris. A decisão é justificada
pelo facto de Portugal, naquela altura, para um pintor, "não ser um meio
extremamente excitante". Hoje a realidade é diferente. "Não significa
que a vida esteja fácil mas o número de oportunidades, embora escassas,
não têm comparação. Raramente os artistas aceitam [hoje] uma segunda
profissão". E o país? Revela hoje uma maior predisposição paras artes,
para a cultura? "Gostaria de dizer que sim mas essa flutuação [maior
literacia] não quer dizer que se possa analisar em termos de melhoria".
Falta pintar tudo
Aos
90 anos, Júlio Pomar ainda não pousou os pincéis. Explica o Mestre:
"Não sei fazer outra coisa". A força, explica, já não é a mesma motivo
pelo qual o tempo que dedica à pintura diminuiu. Mas não a vontade de
pintar. E ainda falta pintar alguma coisa? Entre risos responde o
mestre, "tudo".
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Fonte: Site de Portugal: http://www.tsf.pt/cultura/interior/um-quadro-e-como-um-filho-que-se-poe-no-mundo-ele-tem-de-se-governar-sozinho-5225500.html
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