sábado, 18 de junho de 2016

Júlio Pomar: "Um quadro é como um filho que se põe no mundo. Ele tem de se governar sozinho"

Miguel Videira/TSF
 
O processo de classificação de "O almoço do trolha" é o primeiro a acontecer com um pintor ainda vivo. Motivo de orgulho para Júlio Pomar? "Essas coisas já me escapam".
Um trabalho levou ao outro. Explica Júlio Pomar que foi a pintura dos frescos no cinema batalha no Porto que serviu de inspiração para "O almoço do trolha". O cinema estava na altura em construção e o pintor "convivia todos os dias com os operários" entre eles "o trolha". Um momento do dia-a-dia captou em especial a atenção de Júlio Pomar: "A cena da pausa em que a mulher chega com o filho pequeno e vem servir o almoço ao marido. Era uma cena que eu tinha todos os dias".

É o que está retratado neste quadro leiloado no ano passado por 350 mil euros. A obra está em processo de classificação pela Direção Geral do Património Cultural, até ao final do ano deverá passar a ter o estatuto de "bem móvel de interesse público". Pela primeira vez um quadro de um pintor vivo é alvo de classificação. Questionado sobre se é motivo de orgulho, responde Júlio Pomar: "Essas coisas já me escapam. Fiz o quadro, a tarefa já não é pequena"

As primeiras pinturas: os ovos estrelados
Júlio Pomar diz à TSF que desde muito cedo começou a revelar interesse pela pintura. Um interesse que motivou a oferta, por uma tia, de uma caixa de tintas a óleo. Foram "usadas até ao limite". Entre as primeiras pinturas recorda-se Júlio Pomar "de uns ovos estrelados numa frigideira de barro". A predisposição revelada por este menino, então com 7/8 anos, levou-o mais tarde a ingressar na escola António Arroio e numa fase mais adiantada da juventude nas escolas de belas artes de Lisboa e Porto.

A primeira exposição e Almada Negreiros
Em conjunto com alguns colegas o pintor decidiu por esta altura abrir o primeiro ateliê "num segundo andar da Rua das Flores". Explica Júlio Pomar que a ideia era dedicarem-se "ao exercício da pintura, na qualidade de artistas, na qualidade de gente que anda à procura não se sabe muito bem do quê". Mais tarde deram corpo ao projeto de tornar esse ateliê numa sala de exposição. O facto de essa exposição ter sido divulgada por alguns jornais despertou o interesse dos "intelectuais da Brasileira". Entre os visitantes, "José Almada Negreiros e António da Costa". Das memórias desse dia permanece "a emoção que nós tivemos de ver dois artistas de peso a debruçarem-se com curiosidade sobre o que faziam meia dúzia de garotos". Conta o pintor que Almada Negreiros dirigiu-se a Júlio Pomar dizendo-lhe: "Hei de ensinar-lhe o caminho da minha casa". Em sinal de interesse e de amizade, Almada Negreiros compra um quadro, ato acompanhado pela promessa de "fazer com que o quadro fosse exposto". E foi.

O processo disciplinar
A passagem pela escola de belas artes do porto fica marcada por um processo disciplinar que culmina na suspensão de Júlio Pomar. O pintor explica que este caso teve motivações políticas. Na base do incidente a "criação de uma associação académica" que acaba por fazer com que os alunos implicados perdessem o ano. Nada que tivesse perturbado Júlio Pomar que explica que naquela altura já estava a pensar deixar a escola face a uma encomenda que tinha recebido para a pintura de "mais de 100 metros quadrados de um cinema que ia abrir" (cinema batalha no porto).

O "fascismo doce"
Desde muito cedo que Júlio Pomar sentiu o apelo da intervenção cívica. De outra forma não poderia deixar de ser diz o pintor que lembra que "a situação portuguesa para quem andasse de olhos abertos era extremamente dolorosa, o fascismo português estava em todo o seu esplendor". A este propósito Júlio Pomar sublinha no entanto que "o fascismo português tem características muitos especiais que o distinguem do que aconteceu em Itália" pelo facto de ser "um fascismo em que as crueldades eram adoçadas abafadas". O pintor admite que pode até ser considerada "antagónica e repugnante" a associação destas duas palavras (fascismo e doce) mas considera que se encaixam no retrato daquele tempo em "que tudo era abafado, tudo se passava por meias palavras, não era necessário dizer as palavras todas".

A prisão em Caxias ao lado de Mário Soares
Na sequência do apelo a uma maior intervenção cívica, Júlio Pomar participa mais tarde no Movimento de Unidade Democrática (MUD) onde conhece Mário Soares. A "ousadia" custa-lhe a detenção pela PIDE. Esteve quatro meses na prisão de Caxias onde, revela, não foi alvo de violência física. Desses tempos ficou a amizade com Mário Soares com quem continua "naturalmente" a falar. "É uma amizade que ficou para a vida", esclarece.

O momento político atual
Júlio Pomar considera que o momento que hoje vivemos "com o que tem de agudo e posições extremadas" não tem paralelo. O pintor diz que é preciso medir bem as consequências das decisões e ao mesmo tempo "arriscar". Entre sorrisos explica o conceito: "Fazer riscos foi desde criança uma obsessão".

O país e os jovens artistas
Em 1963, Júlio Pomar decidiu partir para Paris. A decisão é justificada pelo facto de Portugal, naquela altura, para um pintor, "não ser um meio extremamente excitante". Hoje a realidade é diferente. "Não significa que a vida esteja fácil mas o número de oportunidades, embora escassas, não têm comparação. Raramente os artistas aceitam [hoje] uma segunda profissão". E o país? Revela hoje uma maior predisposição paras artes, para a cultura? "Gostaria de dizer que sim mas essa flutuação [maior literacia] não quer dizer que se possa analisar em termos de melhoria".

Falta pintar tudo
Aos 90 anos, Júlio Pomar ainda não pousou os pincéis. Explica o Mestre: "Não sei fazer outra coisa". A força, explica, já não é a mesma motivo pelo qual o tempo que dedica à pintura diminuiu. Mas não a vontade de pintar. E ainda falta pintar alguma coisa? Entre risos responde o mestre, "tudo".
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Fonte: Site de Portugal:  http://www.tsf.pt/cultura/interior/um-quadro-e-como-um-filho-que-se-poe-no-mundo-ele-tem-de-se-governar-sozinho-5225500.html

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