Cada um tem direito às suas manias, às suas obsessões. Eu não sou
exceção e, perdoem-me a arrogância, o tempo há de dar-me razão. O génio
do homem começa aliás a voltar a ser reconhecido. A Europa, permitam-me,
pois, que me deixe de coisas e volte à carga com o meu amigo Zweig, “sucumbiu a uma grave crise psíquica”. Era ele que o dizia, não era eu. A Europa precisava de uma “desintoxicação moral”.
Era em 32 e depois foi o que se viu. Dizia-o em 32 e repetiu-o em 34.
Não se ficava pelo diagnóstico, propunha-lhe a solução, e a solução,
lucidíssima, premonitória, clarividente, era a unificação. Não chegou a
vê-la. Suicidou-se-lhe definitivamente a esperança a meio da guerra.
Eram saudades a mais de um mundo de ontem que nunca mais verdadeiramente
seria. Não foi a tempo de de saber que, apesar de tudo, alguma coisa
aprenderiam os pais fundadores da União. Foi preciso, é a triste
realidade, mais um sem dizer de sofrimento, para que o sonho se fizesse.
Mas fez-se. Contra a guerra. Não se iludam. Tudo o mais era pretexto.
Agora está tudo à rasca. E com razão. A Europa pode muito bem estar
por dias. E não me venham fazer contas à libra, muito menos me venham
explicar de que lado da Mancha fica a mercearia que mais perde com a
coisa. O ponto não é, nunca foi, verdadeiramente esse. O ponto foi, e
continua a ser, a paz. Mas a intoxicação moral da Europa voltou. A crise
psíquica agudiza-se num novo surto. Chamem-lhe crise dos refugiados,
chamem-lhe renascer dos nacionalismos. Chamem-lhe falta de cultura,
idolatria das finanças. Chamem-lhe pulsar dos populismos ou tentação dos
autoritarismos. Dêem-lhe o nome que quiserem. O que eu quero saber é o
que será da Espanha a seguir ao Brexit? O que será da Bélgica? O que
será a Áustria, o que será a Finlândia, o que será a Hungria sem as
amarras dos valores Europeus que, já doentes, tivemos medo de passar a
escrito numa constituição?
Agora está tudo à rasca. E agora vão ficar ofendidos comigo. Porque
está longe de ser simpático, muito menos politicamente correto
afirmá-lo. A ideia de que democracia mais direta é mais democracia é uma
das ideias mais estúpidas do final do século XX. A ideia populista que
tudo deve referendar-se, a ideia maniqueísta de que todas as questões
têm uma resposta dicotómica, que todo o sim tem o seu não, são ideias –
repito – tão primariamente atrativas como estúpidas. A democracia
demoliberal em que vivemos não renasceu de forma representativa por
acaso. Nem por impossibilidade de fazê-la direta. Nasceu representativa
em nome do refrear das tentações populistas, dos imediatismos, das
pulsões irrefletidas, dos medos atávicos. A democracia, tal como até
aqui a conhecemos e foi funcionando, nasceu em nome da possibilidade de
erguer consensos, em nome da possibilidade de negociar com pragmatismo,
em nome de uma crença em lideranças capazes de unir os povos em torno de
propósitos comuns e que não se refugiassem, a toda a hora e a todo o
momento, na simples auscultação da opinião publica. A coisa parece
elitista? Menos democrática? Pouco simpática? Contra o ar dos tempos?
Seja. De uma coisa podem estar certos. A Europa, inacabada, imperfeita,
disfuncional, mas, apesar de tudo, unida que nos deu um dos maiores
períodos de paz que alguma vez conhecemos, jamais se teria feito à força
de referendos. A ironia é que pode ser que agora acabe aos pés desse
mecanismo populista que nenhuma liderança ousa já afrontar. A Europa
sucumbe a uma grave crise psíquica porque a democracia sucumbe a uma não
menos grave. Nem uma, nem outra, por falta de cultura, sabem
verdadeiramente quem são.
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* Este texto está na Visão de 24.6. Pessimista, eu?
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