domingo, 26 de junho de 2016

A Europa precisa de um divã *

Pedro Norton
 
exit from the eurozone: golden star fallen from a blue wall

Cada um tem direito às suas manias, às suas obsessões. Eu não sou exceção e, perdoem-me a arrogância, o tempo há de dar-me razão. O génio do homem começa aliás a voltar a ser reconhecido. A Europa, permitam-me, pois, que me deixe de coisas e volte à carga com o meu amigo Zweig, “sucumbiu a uma grave crise psíquica”. Era ele que o dizia, não era eu. A Europa precisava de uma “desintoxicação moral”. Era em 32 e depois foi o que se viu. Dizia-o em 32 e repetiu-o em 34. Não se ficava pelo diagnóstico, propunha-lhe a solução, e a solução, lucidíssima, premonitória, clarividente, era a unificação. Não chegou a vê-la. Suicidou-se-lhe definitivamente a esperança a meio da guerra. Eram saudades a mais de um mundo de ontem que nunca mais verdadeiramente seria. Não foi a tempo de de saber que, apesar de tudo, alguma coisa aprenderiam os pais fundadores da União. Foi preciso, é a triste realidade, mais um sem dizer de sofrimento, para que o sonho se fizesse. Mas fez-se. Contra a guerra. Não se iludam. Tudo o mais era pretexto.

Agora está tudo à rasca. E com razão. A Europa pode muito bem estar por dias. E não me venham fazer contas à libra, muito menos me venham explicar de que lado da Mancha fica a mercearia que mais perde com a coisa. O ponto não é, nunca foi, verdadeiramente esse. O ponto foi, e continua a ser, a paz. Mas a intoxicação moral da Europa voltou. A crise psíquica agudiza-se num novo surto. Chamem-lhe crise dos refugiados, chamem-lhe renascer dos nacionalismos. Chamem-lhe falta de cultura, idolatria das finanças. Chamem-lhe pulsar dos populismos ou tentação dos autoritarismos. Dêem-lhe o nome que quiserem. O que eu quero saber é o que será da Espanha a seguir ao Brexit? O que será da Bélgica? O que será a Áustria, o que será a Finlândia, o que será a Hungria sem as amarras dos valores Europeus que, já doentes, tivemos medo de passar a escrito numa constituição?

Agora está tudo à rasca. E agora vão ficar ofendidos comigo. Porque está longe de ser simpático, muito menos politicamente correto afirmá-lo. A ideia de que democracia mais direta é mais democracia é uma das ideias mais estúpidas do final do século XX. A ideia populista que tudo deve referendar-se, a ideia maniqueísta de que todas as questões têm uma resposta dicotómica, que todo o sim tem o seu não, são ideias – repito – tão primariamente atrativas como estúpidas. A democracia demoliberal em que vivemos não renasceu de forma representativa por acaso. Nem por impossibilidade de fazê-la direta. Nasceu representativa em nome do refrear das tentações populistas, dos imediatismos, das pulsões irrefletidas, dos medos atávicos. A democracia, tal como até aqui a conhecemos e foi funcionando, nasceu em nome da possibilidade de erguer consensos, em nome da possibilidade de negociar com pragmatismo, em nome de uma crença em lideranças capazes de unir os povos em torno de propósitos comuns e que não se refugiassem, a toda a hora e a todo o momento, na simples auscultação da opinião publica. A coisa parece elitista? Menos democrática? Pouco simpática? Contra o ar dos tempos? Seja. De uma coisa podem estar certos. A Europa, inacabada, imperfeita, disfuncional, mas, apesar de tudo, unida que nos deu um dos maiores períodos de paz que alguma vez conhecemos, jamais se teria feito à força de referendos. A ironia é que pode ser que agora acabe aos pés desse mecanismo populista que nenhuma liderança ousa já afrontar. A Europa sucumbe a uma grave crise psíquica porque a democracia sucumbe a uma não menos grave. Nem uma, nem outra, por falta de cultura, sabem verdadeiramente quem são.
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* Este texto está na Visão de 24.6. Pessimista, eu?

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