Entrevista com Zygmunt Bauman
A epicúrea ausência de
perturbações. A agostiniana "confirmação" de mérito e virtude. O
benthamiano comprazimento do Eu na satisfação da necessidade do Outro.
Até chegar ao reconhecimento civil e político de um direito humano, que a
modernidade, não raramente, transformou em privilégio.
A reportagem é de Valeria Arnaldi, publicada no jornal Il Messaggero, 03-06-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A felicidade
é um conceito – talvez utopia – sem tempo, mas, de fato, pela sua
própria natureza, fortemente ligado à época de cujos valores e de cujas
aspirações ele se faz imagem e parâmetro.
E, assim, em um momento histórico de
crise, é precisamente ao confronto entre ideal de felicidade e
sentimento de infelicidade que filosofia e sociologia olham para indagar
a contemporaneidade.
Não é por acaso que a felicidade é um dos temas de pesquisa de Zygmunt Bauman, pai da chamada "sociedade líquida", agora entre os convidados do festival internacional de literatura "Leggendo Metropolitano", que ocorre até o dia 5 de junho, em Cagliari, Itália.
Eis a entrevista.
Professor Bauman, o que significa hoje "felicidade"?
A declaração de independência
estadunidense proclamou, entre os direitos invioláveis do ser humano, a
sua busca: um marco para a civilização ocidental. As ideias de
felicidade são muitas, mas que podem ser remetidas a duas categorias. A
visão mais popular é a de uma vida plena de momentos agradáveis, sem
problemas e desafios. A outra nos foi mostrada por Goethe.
Já idoso, ele foi perguntado se a sua vida tinha sido feliz. Ele
respondeu que sim, mas que não se lembrava de uma única semana em que o
tivesse sido. Isso implica que ser feliz não significa não ter
dificuldades, mas superá-las.
A atualidade mudou essas visões?
Definir o que significa ser feliz é
muito complexo. A própria ideia de felicidade parece conter em si o
pressuposto da sua não existência no mundo. A felicidade deve ser
conquistada, mas, no nosso sistema de consumidores, vendem-se promessas
de promessas de algo que nos fará nos sentirmos melhor. O mercado, em
teoria, deveria aspirar a satisfazer todas as necessidades.
Na prática, porém...
Satisfazer os consumidores, na
realidade, é o pesadelo do mercado: envolveria não ter mais nada para
vender. Os especialistas, portanto, sabem nos manter continuamente
insatisfeitos. A publicidade nos promete que seremos felizes com o novo
celular, por exemplo, mas ela tinha feito o mesmo para o modelo anterior
e vai refazer o mesmo para o posterior. Porém, milhões de pessoas
correm para comprar.
O capitalismo está condenado, portanto, à infelicidade?
A atitude do sistema encoraja a ideia de
que há algo que pode resolver todos os problemas e alimenta
constantemente tal convicção. Isso torna os momentos de felicidade muito
curtos. O problema é que somos constrangidos a gastar o dinheiro que
ainda não ganhamos para comprar coisas das quais não precisamos para
impressionar pessoas que não nos importam muito. Esse é o caminho para
alongar os momentos de infelicidade.
É preciso repensar o nosso modo de nos imaginarmos satisfeitos?
É preciso redescobrir o prazer de
comunicar. Eu não me refiro aos tuítes, mas a conversas de verdade. Há
uma grande diferença entre encontros virtuais e tradicionais. Para
voltar aos acontecimentos ao estilo antigo, cada um deveria diminuir as
suas próprias demandas, mas o mercado tenta levantar as expectativas e
faz isso nos forçando a pensar, desde crianças, que cada momento de
felicidade deve ser melhor do que o anterior. Cada instante desperdiçado
é uma chance de felicidade perdida.
A sociedade líquida ainda é capaz de ser feliz?
A ideia da sociedade líquida é de que
nada permanece por muito tempo. Vivemos em um mundo de constante
novidade, em que envelhecemos cada vez mais rápido do que antes. Estamos
em um espaço vazio. Gramsci definiu
essa situação como um interregno em que as velhas regras desapareceram,
e as novas não foram inventadas. Isso gera ansiedade.
E para que cenários a ansiedade nos leva?
Quando eu era estudante, os professores
diziam que aprender nos torna mais ricos. Eu acho que a cultura
contemporânea não está mais fundamentada na capacidade de aprender, mas
de esquecer. Para aprender outros conceitos, você deve eliminar os
velhos. A maior qualidade seria, por isso, a habilidade de esquecer. Na Itália e na Espanha, vê-se menos isso. Na França, Alemanha, Inglaterra, a questão é evidente e é uma reação ao medo.
A crônica nos revela que muitos
gostariam de respostas mais duras por parte da política: o medo está
criando espaço para o retorno de regimes fortes?
Estamos voltando 200 anos atrás nas
lutas por democracia e liberdade. Agora, desejam-se mais regras.
Segurança e liberdade são valores fundamentais para a dignidade humana. A
segurança sem liberdade é escravidão. A liberdade sem segurança é um
tipo de deficiência. As pessoas, por séculos, procuraram equilibrar as
coisas, e isso não funcionou. Cada passo em frente para a liberdade
requer que se renuncie a uma parte da segurança. Cada passo rumo a uma
maior segurança envolve renunciar a um pouco de liberdade. Não há um
caminho direto para ter cada vez mais de uma ou da outra. É um pêndulo
que oscila, empurrando para a mudança.
Hoje, oscilamos para a segurança.
Muitas pessoas, em diferentes partes do
mundo, parecem ir na direção da renúncia a mais liberdades em favor da
segurança, desejando uma situação mais estável. É a tendência atual.
Ainda estamos em uma sociedade líquida, mas em que nascem sonhos de uma
sociedade menos líquida.
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FONTE: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/555960-felicidade-privilegio-para-todos-entrevista-com-zygmunt-bauman
Imagem da Internet
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