ENTREVISTA | ROBERTO DUTRA, SOCIÓLOGO
O sociólogo Roberto Dutra estuda a população evangélico Sergio Amaral
Para sociólogo, cresce politização da religião, mas vida prática, e não moral, é fator decisivo no voto
Compõem hoje a maior bancada evangélica da história do Congresso brasileiro
75 deputados federais e três senadores, o que faz com que, cada vez
mais, suas posições e acordos tenham relevância no cenário político.
Para Roberto Dutra, doutor em sociologia pela Universidade Humboldt de
Berlim e professor da Universidade Estadual do norte Fluminense Darcy
Ribeiro (Uenf), o posicionamento dos congressistas, contudo, não deve
ser confundido com as convicções do eleitorado evangélico
como um todo. Em um momento em que esse grupo político se uniu em torno
do impeachment e de teses conservadoras no campo dos costumes, Dutra
avalia em entrevista ao EL PAÍS os reflexos da interferência da religião
na política e com que olhos os fiéis enxergam isso. Leia abaixo os
principais destaques da conversa.
Pergunta. Existem hoje temas específicos que motivam o voto do eleitorado evangélico?
Resposta. São vários temas, mas há dois eixos temáticos que têm se destacado. O primeiro é a questão da moral e dos costumes
que, contudo, até agora foi determinante apenas em eleições
legislativas. Isso não quer dizer que essa temática não possa se tornar
central em algum momento nas executivas, mas, por enquanto, ela depende
muito mais da instrumentalização política que líderes de perfil
religioso têm feito dela. Falar de costumes tem atraído um eleitorado,
mas o que realmente explica as motivações do comportamento eleitoral,
não só dos evangélicos, mas de todas as classes populares – considerando
aí que a maior parte dos evangélicos pertence às classes populares – é o
eixo do bem estar social. A preocupação é muito mais prática: saúde,
educação e programas sociais.
P. A bancada evangélica votou pelo impeachment de
Dilma Rousseff e tem expressado apoio a Michel Temer. Essa adesão é
transferível ao eleitorado evangélico?
R. É difícil fazer uma previsão, mas eu acredito que há uma tendência do Governo Temer
tentar usar a pauta dos costumes para fidelizar esse eleitorado
evangélico mais pobre, que, contudo, tende a se distanciar dele na
medida em que ele adotar uma política socialmente insensível de redução
do gasto social. Nós não podemos pegar um momento como esse, em que a
grande polarização ideológica e cultural leva a um fortalecimento da
pauta dos costumes, e projetar isso no comportamento eleitoral das
eleições deste ano ou de 2018. O voto religioso é circunstancial e muito
mais presente nas eleições legislativas do que nas executivas. Por
isso, eu acredito que se o Governo Temer não for capaz de fazer uma
política social minimamente satisfatória do ponto de vista dessa
população, ele não vai conseguir o apoio dela.
P. E por que o discurso moralista de políticos religiosos perde força nas eleições majoritárias?
R. Por razões próprias da política. Você consegue angariar um número grande de votos para eleger um deputado como o Bolsonaro,
fazê-lo o mais votado. Mas na eleição do executivo, a maior parte do
eleitorado não vota por religião e é também alimentada com informações
que servem para descredenciar o perfil religioso do candidato religioso.
Foi o caso do Marcelo Crivella (PRB), que perdeu a eleição para
Governador do Rio de Janeiro de forma avassaladora para o Luiz Fernando
Pezão (PMDB). No final, a vinculação do Crivella à Igreja Universal do
Reino de Deus atrapalhou. Tanto é que dizem por aí que o Crivella está
pensando em se desvincular do PRB, aderindo a um partido não religioso.
Ao contrário do que se pensa, o eleitorado brasileiro tem bom senso.
Elegemos um presidente sociólogo, um presidente operário e uma
presidenta guerrilheira. É um eleitorado que não é tão conservador como
se imagina.
"O voto religioso é circunstancial e muito mais
presente nas eleições legislativas do que nas executivas. Por isso, eu
acredito que se o Governo Temer não for capaz de fazer uma política
social minimamente satisfatória do ponto de vista dessa população, ele
não vai conseguir o apoio dela"
P. De qualquer jeito, a bancada evangélica tem crescido em número e importância nos últimos anos. O que explica o crescimento?
R. A extrema facilidade com que os líderes
religiosos pentecostais lidam com as regras da política. É a capacidade
dos evangélicos buscarem a vida política através do pragmatismo. O Edir
Macedo, por exemplo, apoiou o Governo Dilma até recentemente. Se
acontecesse uma improvável volta de Dilma daqui alguns meses, não tenho
dúvidas de que ele estaria pronto para apoiá-la novamente. Também é
importante dizer que é um equívoco falar em coesão da bancada religiosa.
A Igreja Universal, por exemplo, tem uma estratégia de atuação
parlamentar bem diferente da Assembleia de Deus. Só há união em momentos
específicos, como agora.
P. E não há interferência direta de algumas igrejas no processo eleitoral?
R. Hoje há, de fato, igrejas aparelhadas. São verdadeiras redes que grandes líderes políticos, como Eduardo Cunha,
oferecem como recurso político para outros líderes. O que vemos é que o
púlpito tem fidelizado muito para o legislativo. Mas a curiosidade é
que, do ponto de vista programático, o repertório do sucesso das
eleições legislativas dos evangélicos é um repertório corporativo. É
mais algo do tipo “vote no deputado porque ele vai defender nossa
igreja” e menos “vote no deputado porque ele é contra o aborto”. Costume
e moral não são os fatos predominantes para explicar o voto. É muito
mais o sentimento de corpo mesmo, que é instrumentalizado pelos
pastores. Então, o que eu arrisco dizer é que existe, sim, um
crescimento grande da instrumentalização política das igrejas, mas isso
não é uma garantia de votos e pode, em determinado momento, virar até
motivo de debandada de fiéis.
P. Por quê?
R. Ser evangélico não é pré-requisito de voto para o
eleitorado evangélico. As pessoas observam aquilo que a mídia fala
delas, a imagem que é projetada sobre elas. Ficam preocupadas com a
interferência de líderes evangélicos na política. Se há um movimento
crescente de transformação das igrejas em curral eleitoral, por outro
lado, aumenta o sentimento de muitos fiéis de que eles estão sendo
feitos de palhaços pelo pastor. E ao mesmo tempo em que aumenta a
politização conservadora da religião, aumenta também o sentimento de que
a fé das pessoas está sendo manipulada por interesses próprios. E aí a
concorrência religiosa é fatal. O Brasil está em plena modernidade
religiosa. Caso esse sentimento dos fiéis aumente, pode surgir uma
variável de dinamização do próprio mercado religioso.
"Se há um movimento crescente de transformação
das igrejas em curral eleitoral,
por outro lado, aumenta o sentimento
de
muitos fiéis de que eles estão sendo
feitos de palhaços pelo pastor"
P. Você identifica em algum grupo específico esse olhar mais crítico?
R. Talvez nos jovens. Hoje há uma geração de jovens
que já pode ser chamada de “evangélicos não praticantes”. Uma coisa é
você ser convertido para uma religião evangélica, outra é você nascer
nessa cultura. Aí é natural que você olhe de modo mais distanciado. De
qualquer jeito, é importante não confundir os líderes políticos que têm
um perfil religioso – ou seja, líderes políticos que tem na religião um
recurso de poder e mobilização eleitoral – com as formas de
comportamento, consciência e visão de mundo dos evangélicos como um
todo. Além disso, apesar de óbvio, é necessário dizer que os evangélicos
também são heterogêneos. De modo que há na classe média brasileira
intelectualizada e, inclusive, de esquerda, um preconceito muito grande
contra os evangélicos. Há a premissa de que eles são burros, que eles
não sabem olhar com distanciamento a pauta política do Feliciano, do
Malafaia, do Pastor Everaldo, do Bolsonaro.
P. E como esse distanciamento da esquerda aparece de forma prática?
R. Ela não consegue ver a possibilidade de disputar a
fidelidade eleitoral e ideológica desse público. Dou o exemplo mais
forte. Um tema central na vida cotidiana dos evangélicos é a família,
mas a esquerda taxa isso de puro conservadorismo. A única alternativa
política que tem tematizado o tema da família é – em uma democracia como
a nossa, e eu diria que em várias outras também – a da direita. Ou
seja, é justamente quem fala para os evangélicos: a família corre risco
porque os homossexuais, a ideologia de gênero e os “esquerdopatas” estão
ameaçando ela. Sem outra explicação, muitas vezes o indivíduo aceita
essa mesma. Assim, a identificação dos evangélicos com a pauta política
de seus líderes vem em alguns casos por pura falta de alternativa e
compreensão dos setores ditos mais esclarecidos da sociedade que não
conseguem compreender que o tema da família não é necessariamente
conservador.
P. E por que esse tema tem tanto apelo?
R. Por razões de classe social. Os evangélicos se
dividem, basicamente, em dois tipos de classe, que eu e o grupo de
pesquisadores em torno do sociólogo Jessé Souza,
costumamos dividir como ralé estrutural e batalhadores. O primeiro é um
público completamente excluído das principais instituições da
sociedade. Em geral, eles frequentam igrejas evangélicas que funcionam
como uma espécie de pronto socorro espiritual. O segundo grupo tem uma
vida familiar e social mais estável, com vínculos sociais mais fortes.
Há uma proteção e solidariedade com que a ralé não conta. Para os dois
públicos, contudo, a ameaça familiar é uma ameaça real e constante, seja
por fatores econômicos, de alcoolismo ou de desestabilização social,
como a falta de uma moradia decente. São problemas que as classes
populares e excluídas enfrentam no mundo inteiro. Ora, só vai considerar
o tema da família conservador quem não vê no abandono um problema
cotidiano. Em resumo, os evangélicos agem muito mais por interesses
práticos e que podem tomar rumos muito variados, de acordo com os
partidos políticos que interpretam esses interesses práticos, do que
propriamente por convicções conservadoras. Convicções que eles podem até
ter, mas que não são tão claras e fortes como se imagina.
"Em resumo, os evangélicos agem muito
mais por
interesses práticos e que podem
tomar rumos muito variados, de acordo
com os partidos políticos que interpretam
esses interesses práticos, do
que
propriamente por convicções conservadoras"
P. Mas onde entram as classes mais altas evangélicas nessa separação que você colocou?
R. Elas constituem um público mais tradicional, não
pertencente historicamente às classes hegemônicas católicas brasileiras,
que em geral faz parte das chamadas igrejas protestantes históricas ou
de missão, como as igrejas Batista e Presbiteriana que, embora tenham
copiado muitos dos ritos e das ideias das pentecostais, como Universal e
Assembleia de Deus, mantêm um estilo, digamos, mais sóbrio. O público é
formado por uma classe média ascendente com um determinado padrão de
formação escolar e nível de renda mais estável. Mas esse é um público
minoritário entre os evangélicos.
P. Pode resumir a diferença entre o protestantismo “clássico” e o pentecostalismo?
R. Ele é uma revolução protestante dentro da
revolução protestante e surge na Igreja Metodista Wesleyana. John Wesley
é um dos grandes fundadores do pentecostalismo, mas outros líderes
menores popularizam ainda mais essa religião entre os negros dos EUA no
final do século 19, início do 20. Ela se caracteriza por uma crença,
muito grande, na força de Deus para mudar as coisas cotidianas. É o que
podemos chamar de uma religiosidade mágica. No Brasil, isso chega em
1910, mas é só a partir da década de 1960, com a urbanização da pobreza,
que o protestantismo brasileiro vai tomando a cara do pentecostalismo.
Qual é a diferença básica? É que o protestantismo clássico não enfatiza
tanto a presença cotidiana do espírito santo para resolver os problemas
cotidianos das pessoas. O protestante batista não espera que Deus vá
ajuda-lo a passar em um concurso público, já um pentecostal crê nisso. O
pentecostalismo é mais popular que o protestantismo clássico. Por isso,
com o tempo, vai virando a religião dos excluídos. Disso que nós
denominamos ralé estrutural. É uma religião que oferece valor social
para os excluídos: Deus tem um projeto para sua vida, você vale alguma
coisa.
"Um tema central na vida cotidiana dos
evangélicos
é a família, mas a esquerda taxa isso
de puro
conservadorismo.
A única alternativa política que
tem tematizado o tema
da
família é a da direita"
P. Você disse que existe um preconceito de setores
progressistas com os evangélicos. Há uma crítica de que o PT se afastou
dos mais pobres nos últimos anos, perdendo espaço para as igrejas. Você
concorda com essa avaliação?
R. Acredito que é uma explicação muito reducionista.
Eu concordo que o PT se distanciou dos pobres, mas o que significa
isso? O PT certamente não se distanciou dos pobres no sentido de fazer
políticas sociais para os pobres. No entanto, o PT se distanciou
culturalmente dos pobres. O PT é informado por uma visão de esquerda de
que os pobres devem seguir um modelo de ser e agir que vem dos moldes
dos sindicatos. Os pobres devem ser coletivistas. Os pobres devem se
enquadrar em um viés de solidarismo anti-individualista. Toda vez que o
PT encontra a valorização do indivíduo, a valorização da autonomia do
indivíduo frente às intempéries da vida, que, em resumo, é a pregação
cotidiana das igrejas pentecostais, o PT aponta o dedo acusatório: “É a
pregação do individualismo, é a pregação do neoliberalismo dentro das
igrejas”. O PT não entende essa filosofia liberal popular e nem o valor
moral do individualismo que está por trás dela.
P. O que você quer dizer com “valor moral do individualismo”?
R. É a ideia de que para ser alguém valoroso na
sociedade é preciso ser um indivíduo respeitado em sua privacidade, em
seu projeto de vida. De modo que há, de forma muito presente nas
igrejas, essa cultura da valorização da iniciativa individual. E isso
não significa a negação da solidariedade. Acredito que há uma cegueira
do PT em compreender a alma e a cultura dessa nova classe trabalhadora
que não é formada no sindicato e que hoje é a maior parte dos
brasileiros pobres e remediados do país. Esse é o distanciamento que
existe, mas ele não é exclusivo do PT. A esquerda de forma geral não
entendeu que o sonho dessa nova classe trabalhadora é, muitas vezes, ter
uma empresa própria, ser um empreendedor. Há muitas semelhanças com a
população dos EUA,
por exemplo. É um liberalismo popular que não é, necessariamente,
conservador. Hoje, esses ideais liberais de autonomia e afirmação do
indivíduo estão em disputa e os conservadores têm conseguido capturá-los
com mais eficiência.
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REPORTAGEM POR André de Oliveira
São Paulo
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