Roberto DaMatta*
As
utopias são ingênuas compensações inventadas por uma Europa para sempre
enredada num realismo cruel
e numa redenção impossível
Em
1968 ou em 1969 fiz o curso “Urbanização e utopia”. Éramos quase todos
estrangeiros naquela Harvard onde a palavra estrangeiro não existia, pois, como
me disse um Thomas Skidmore — saudoso e recentemente falecido — “somos todos
estrangeiros diante do conhecimento”.
Richard
Moneygrand ministrou esse curso, definido como uma reflexão sobre os dilemas do
individualismo moderno e as utopias nascidas dessa extremada valorização da
parte sobre o todo. De um sistema no qual os elos entre homens e as coisas são
mais importantes do que as relações dos homens entre si.
Lemos
o clássico de Lewis Mumford, revisamos Platão, Thomas More e Fourier. Mas não
esquecemos o Paraíso sem deixar de lado H. G. Wells, Kakfa, Aldous Huxley,
Burgess, Orwell e os modernos arquitetos, os quais, como bons desenhistas,
tentavam “solucionar” os erros de um sistema a ser redimido.
Fomos
solicitados a falar das utopias de nossas sociedades. Um africano escreveu
sobre as ideias de Kwame Nkrumah; um russo, sobre as utopias soviéticas; um
francês, que sabia mais do que todos nós, abordou os escritos de Voltaire e
Rousseau. Juan Porras y Porras, um mexicano aristocrático, exortou o que seria
uma utopia caudilhesca para mostrar como os sistemas sociais fundados em elos
pessoais seriam funcionais, caso não fossem atropelados pela modernidade do
individualismo igualitário acasalado com a dominação burocrático-legal.
Coube,
porém, a um par de colegas americanos a apresentação mais radical. Para eles, a
“República” era a desmistificação das utopias. O humano seria movimentado por
um equilíbrio instável entre crises de carência e abundância. A história era
uma inútil busca terrena das idealizações que agravavam a sensação de erro (e
da culpa) porque condicionavam a vida real (sempre contraditória) a códigos
transcendentais feitos no céu, que nos tornavam devedores. As repúblicas
democráticas e igualitárias voltadas para o mundo enfrentavam crises
permanentes todos os dias. Nelas, tudo era crise, e a crise — frisavam — não
era exceção, mas a realidade de suas perpétuas construções.
Jamais
me esqueci deste trabalho que tenho plagiado ao longo de minha carreira. Os
colegas americanos deram-me, num trabalho de semestre, uma diretriz para a
vida.
Despertaram
minha incredulidade nos sistemas fechados e estáticos. Só fui duvidar desta
dúvida quando, num antigo estado de Goiás, tentei compreender sociologicamente
os chamados “índios apinayé” e comecei a admirar esses jê-timbira com o seu
saudável e explícito dualismo (“tudo tem o seu contrário" — o mundo se
divide em gente do Sol e de Lua), suas associações e, acima de tudo, sua
moralidade sem culpa e epifanias. Para eles, tudo o que nos afeta (acidentes,
doenças, desonestidade, ressentimento etc...) foi “dado” pelos demiurgos, de
modo que não há o que pagar ou compensar, pois não existe um grupo humano que
não seja defeituoso ou torto por natureza. Sabem que somos finitos e falam de
uma aldeia dos mortos, mas não postulam nenhuma imortalidade, pois até mesmo as
almas — após uma longa, mas insossa vida no mundo dos mortos — morrem. Deste
modo, não existem perseguidos nem tenebrosos perseguidores, esses avatares da
discriminação e do autoritarismo.
Hoje,
estou certo de que o humano é defeituoso, carente e encrencado. As utopias são
ingênuas compensações inventadas por uma Europa para sempre enredada num
realismo cruel e numa redenção impossível. A crise era a nossa marca, e a
República jamais seria um sistema estático, mas um modo de vida a ser
permanentemente corrigido. Ela, entretanto, só poderia funcionar com bom senso,
amparada por uma ética de honestidade. A democracia — se ainda me lembro da
conclusão dos meus jovens colegas — não resolve, ela é uma tentativa de
resolução.
Findo
o curso, eu estava mais para Orwell do que Platão. Foi quando eu me lembrei do
Brasil e do sempre lúcido e antiutópico Bandeira. O Manuel que, na sua
arrebatadora simplicidade, abafa a fanfarronice ideológica corrente, sussurrava
uma utopia tão real quanto profética:
“Vou-me
embora pra Pasárgada/Lá sou amigo do rei/Lá tenho a mulher que eu quero/Na cama
que escolherei.”
A
esperança é que os “reis” segurem esses amigos que confundem parentesco com
papéis públicos, andam de bicicleta, montam em burro brabo e continuam
convencidos de que ainda podem venturosamente subir em pau de sebo!
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* Roberto
DaMatta é antropólogo
Fonte: http://oglobo.globo.com/opiniao/pasargada-19555502
Imagem da Internet
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