terça-feira, 7 de junho de 2016

Literatura. Da carne e do espírito

  
Hermann Hesse escreveu uma das ficções mais marcantes sobre o conflito entre ação e contemplação. Narciso e Goldmund regressam agora às livrarias


Aos 18 anos, o loiro e belo Goldmund, discípulo no convento de Mariabronn, acredita que está destinado à ordenação monástica. Narciso, o noviço asceta e mestre auxiliar com quem ele desenvolveu uma amizade intensa, acredita que essa não é, de todo, a verdadeira natureza do rapaz. Por isso, traça uma linha intransponível entre os sonhadores, poetas e amantes e os intelectuais, e explica: “A vossa pátria é a terra, a nossa a ideia. O perigo para vós consiste em afogar-vos no mundo dos sentidos, para nós em sufocarmos no espaço rarefeito do ar. Tu és artista, eu sou pensador. Tu dormes no regaço da mãe, eu mantenho a minha vigília no deserto. Para mim brilha o Sol, para ti a Lua e as estrelas; tu sonhas com raparigas, eu com rapazes...” Esta passagem, talvez a mais famosa do romance, resume o conflito de “Narciso e Goldmund”, a obra-prima de Hermann Hesse (1877-1962, Nobel da Literatura em 1946), datada de 1930. “Um livro completamente alemão”, segundo o crítico E. R. Curtius; “um romance poético singular na sua pureza”, segundo Thomas Mann.

Hermann Hesse revelou-se muito cedo uma criança complexa, com inteligência e rebeldia excecionais. Educado num lar pietista, aos 14 anos decidiu escapar-se (durante 33 horas) do seminário teológico da abadia de Maulbronn (inspiração para a “Mariabronn” ficcional e hoje património da UNESCO) e iniciou com esse gesto um percurso tormentoso de procura de expressão de um eu verdadeiro – como Goldmund, passará também por um período de prática de um ofício artesanal. Após várias crises psicológicas e errâncias intelectuais e vivenciais, que o levaram por exemplo a descobrir as culturas chinesa e indiana e a filosofia budista (inspirações patentes em “Siddhartha”), Hesse encontrará por fim, aos 40 anos, um ponto de equilíbrio entre as tendências contrárias da sua alma para a ação e a contemplação e  um espaço de retiro, na Casa Camuzzi, na pequena vila suíça de Montagnola, onde escreverá “Narciso e Goldmund”. 
O romance, cujo ação se passa no século XV, atualiza a tradição confessionalista do romantismo alemão e parte de projeções autobiográficas do autor. Assim, podem reconhecer-se em Goldmund traços da sua vocação inicial de andarilho (wanderlust) e boémio e, em Narciso, sinais do carácter introspetivo do seu amigo Thomas Mann. O conflito entre os apelos do mundo secular (da Mãe Terra) e do mundo espiritual (de Deus Pai) é também abordado numa perspetiva psicanalítica, determinada pelo contato de Hesse com a psicoterapia e com Carl Jung. No essencial, a ficção descreve a amizade apaixonada entre dois homens de naturezas opostas e, sobretudo, o despertar e o percurso de aprendizagem estética, prática e sensual de um deles. No fim, reunidos os dois amigos, a espessura e profundidade do romance atingem o seu auge.

“Narciso e Goldmund” é também um panorama colorido da Idade Média, no qual se movimenta um herói pícaro e se assinalam episódios picantes que lembram a ambiência de Decameron, de Bocaccio, símbolo da ruptura do realismo literário com o espiritualismo medieval. Hesse foi um apaixonado pelo latim e pela hagiografia, bem como pela arte e pela filosofia medievais. Como para os seus antecessores românticos alemães, a Idade Média significava para ele, não um período de trevas, mas de intensa luminosidade espiritual e sensorial.  É nesta moldura simbólica que acontece o choque épico entre os dois mundos, de Narciso e Goldmund, duas faces da obsessão do escritor com a polaridade da arte e da vida.
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Reportagem por Filipa Melo 
Texto em português de Portugal
Fonte: http://ionline.sapo.pt/ jornal "i" 04/06/2016

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