Hermann Hesse escreveu uma das ficções mais
marcantes sobre o conflito entre ação e contemplação. Narciso e
Goldmund regressam agora às livrarias
Aos 18 anos, o loiro e belo Goldmund,
discípulo no convento de Mariabronn, acredita que está destinado à
ordenação monástica. Narciso, o noviço asceta e mestre auxiliar com quem
ele desenvolveu uma amizade intensa, acredita que essa não é, de todo, a
verdadeira natureza do rapaz. Por isso, traça uma linha intransponível
entre os sonhadores, poetas e amantes e os intelectuais, e explica: “A
vossa pátria é a terra, a nossa a ideia. O perigo para vós consiste em
afogar-vos no mundo dos sentidos, para nós em sufocarmos no espaço
rarefeito do ar. Tu és artista, eu sou pensador. Tu dormes no regaço da
mãe, eu mantenho a minha vigília no deserto. Para mim brilha o Sol, para
ti a Lua e as estrelas; tu sonhas com raparigas, eu com rapazes...”
Esta passagem, talvez a mais famosa do romance, resume o conflito de
“Narciso e Goldmund”, a obra-prima de Hermann Hesse (1877-1962, Nobel da
Literatura em 1946), datada de 1930. “Um livro completamente alemão”,
segundo o crítico E. R. Curtius; “um romance poético singular na sua
pureza”, segundo Thomas Mann.
Hermann Hesse revelou-se muito cedo uma criança complexa, com
inteligência e rebeldia excecionais. Educado num lar pietista, aos 14
anos decidiu escapar-se (durante 33 horas) do seminário teológico da
abadia de Maulbronn (inspiração para a “Mariabronn” ficcional e hoje
património da UNESCO) e iniciou com esse gesto um percurso tormentoso de
procura de expressão de um eu verdadeiro – como Goldmund, passará
também por um período de prática de um ofício artesanal. Após várias
crises psicológicas e errâncias intelectuais e vivenciais, que o levaram
por exemplo a descobrir as culturas chinesa e indiana e a filosofia
budista (inspirações patentes em “Siddhartha”), Hesse encontrará por
fim, aos 40 anos, um ponto de equilíbrio entre as tendências contrárias
da sua alma para a ação e a contemplação e um espaço de retiro, na Casa
Camuzzi, na pequena vila suíça de Montagnola, onde escreverá “Narciso e
Goldmund”.
O romance, cujo ação se passa no século XV, atualiza a tradição
confessionalista do romantismo alemão e parte de projeções
autobiográficas do autor. Assim, podem reconhecer-se em Goldmund traços
da sua vocação inicial de andarilho (wanderlust) e boémio e, em Narciso,
sinais do carácter introspetivo do seu amigo Thomas Mann. O conflito
entre os apelos do mundo secular (da Mãe Terra) e do mundo espiritual
(de Deus Pai) é também abordado numa perspetiva psicanalítica,
determinada pelo contato de Hesse com a psicoterapia e com Carl Jung. No
essencial, a ficção descreve a amizade apaixonada entre dois homens de
naturezas opostas e, sobretudo, o despertar e o percurso de aprendizagem
estética, prática e sensual de um deles. No fim, reunidos os dois
amigos, a espessura e profundidade do romance atingem o seu auge.
“Narciso e Goldmund” é também um panorama colorido da Idade Média, no
qual se movimenta um herói pícaro e se assinalam episódios picantes que
lembram a ambiência de Decameron, de Bocaccio, símbolo da ruptura do
realismo literário com o espiritualismo medieval. Hesse foi um
apaixonado pelo latim e pela hagiografia, bem como pela arte e pela
filosofia medievais. Como para os seus antecessores românticos alemães, a
Idade Média significava para ele, não um período de trevas, mas de
intensa luminosidade espiritual e sensorial. É nesta moldura simbólica
que acontece o choque épico entre os dois mundos, de Narciso e Goldmund,
duas faces da obsessão do escritor com a polaridade da arte e da vida.
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Reportagem por Filipa Melo
Texto em português de Portugal
Fonte: http://ionline.sapo.pt/ jornal "i" 04/06/2016
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