Marco Weissheimer
Entre 2008 e 2014, a urbanista Raquel Rolnik, professora da Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), foi
Relatora Especial para o Direito à Moradia Adequada do Conselho de
Direitos Humanos da ONU. Nesta condição, Rolnik viajou pelo mundo e
conheceu de perto a realidade das políticas habitacionais de diversos
países. E fez isso justamente no período da crise financeiro-hipotecária
de 2007-2008 que teve um grande impacto na economia mundial e,
especialmente, na vida de milhares de pessoas que perderam suas casas
por não conseguir pagar as hipotecas. Enquanto essas pessoas foram para a
rua e ainda ficaram devendo para os bancos, estes receberam uma
bilionária injeção de dinheiro público para não irem à falência.
No dia 8 de junho, Raquel Rolnik esteve em Porto Alegre participando
de um debate na Faculdade de Economia da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) sobre o seu mais recente livro, “Guerra dos
Lugares. A colonização da terra e da moradia na era das finanças”
(Boitempo Editorial). Antes do debate, a urbanista visitou a Ocupação
Lanceiros Negros, no centro de Porto Alegre, onde conversou com
moradores e com um grupo de jornalistas. Nesta conversa, Raquel Rolnik
falou sobre o que define como uma “nova colonização” que transformou a
habitação em uma mercadoria e um ativo financeiro. Esse modelo é
caracterizado, segundo ela, pela produção massiva de moradias que não
atendem, necessariamente, as necessidades das pessoas. “Se você for no
México ou na Chin, hoje, encontrará milhões de casas e apartamentos
vazios, e muita gente sem um lugar para morar ou vivendo em
assentamentos informais”, relata.
A urbanista também fala sobre a situação da política habitacional no
Brasil e defende que o problema principal enfrentado pelo país não é o
de déficit de moradia. “Isso é uma falácia. Nós temos um problema de
déficit de cidade. Não temos produção de cidade suficiente para acolher a
totalidade das pessoas”, defende.
Sul21: Como consultora da ONU para o tema da
moradia digna, você conheceu de perto a realidade habitacional de muitos
países. A partir dessa experiência, qual a sua avaliação sobre o atual
estágio das políticas habitacionais?
Raquel Rolnik: A ideia de implantar programas
habitacionais massivos de construção de moradias, em nome da ideia de
fazer moradias de interesse social, foi implantada mundialmente nas
últimas décadas, com resultados muito parecidos. Se você for ao México
hoje, na região metropolitana do Distrito Federal, encontrará milhões de
casas vazias. Se você for a China, encontrará milhões de casas e
apartamentos vazios. Ao mesmo tempo, encontrará muita gente sem um lugar
para morar ou vivendo em assentamentos informais construídos pelas
próprias pessoas, o que está aumentando cada vez mais. Esse é um
fenômeno mundial, especialmente nos países do Sul global, na América
Latina, na África e na Ásia. Nestas regiões encontramos essa
contradição, uma espécie de descolamento entre o processo de produção do
espaço construído e as necessidades das pessoas. Essas duas dimensões
tornaram-se coisas completamente independentes, como se fazer cidades
não tivesse como objetivo principal satisfazer as necessidades das
pessoas.
Sul21: Qual é a lógica que anima esse tipo e modelo de programa habitacional que pode ser encontrado hoje em diversos países?
Raquel Rolnik: Pela oportunidade que eu tive de ser
relatora especial para direito à moradia adequada, da ONU, durante seis
anos, pude acompanhar de perto esse processo. O meu mandato coincidiu
com o estouro da crise financeiro-hipotecária, que foi a primeira grande
crise do modelo de mercantilização e financeirização da moradia. Esse
modelo opera uma transformação da moradia como resultado de uma política
social, que fazia parte da esfera dos bens comuns de um Estado de bem
estar social, em uma mercadoria e em um ativo financeiro. O modelo da
moradia como política social funcionava por meio da captura de um
excedente pelo Estado para atender as necessidades habitacionais das
pessoas.
Esse modelo de moradia teve várias versões, desde a mais radical,
implantada pelos países socialistas e comunistas, que produziram
massivamente moradia para os trabalhadores, segundo um modelo estatal ou
de cooperativas de trabalhadores, até aquela implantada pelos países
capitalistas, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, que
produziram políticas de acesso massivo à moradia para os setores de
menor renda, constituindo-se numa espécie de salário complementar. Neste
caso, na sua imensa maioria, estamos falando da construção de moradias
de aluguel, em várias modalidades. Esse modelo foi implantado em vários
países da Europa, nos Estados Unidos, Canadá, Austrália, entre outros.
De alguma maneira, esse modelo, não como realidade, mas como utopia,
também estava presente nos países latino-americanos e do hemisfério sul
em geral. A história da moradia popular nos países do Sul é a história
da autoconstrução, da produção do habitat pelas próprias pessoas com os
recursos que elas têm, ou seja, nada, em um estado de absoluta
precariedade e com relações contraditórias em relação à sua inserção nas
cidades.
Esse modelo vai sofrer uma mutação absolutamente radical, em datas
distintas, segundo a experiência concreta de cada país. Esse processo
teve início nos anos 70 com a formulação do projeto neoliberal. As
políticas de Margaret Thatcher, no Reino Unido, e de Ronald Reagan, nos
Estados Unidos, foram duas grandes matrizes teóricas, conceituais e
práticas da ideia de que a moradia, assim como a saúde, educação e
outros serviços não precisavam ser providos pelo Estado, mas sim ser
encarados como mercadoria, produzida pelo setor privado. Além disso, em
um estágio superior, a habitação se transforma também em um ativo
financeiro.
A melhor metáfora que conheço sobre essa transformação é a de Nouriel
Roubini, ao dizer que a habitação foi transformada em uma espécie de
caixa eletrônico. A hipoteca da casa passou a ser usada para levantar
dinheiro no banco para pagar a educação privada, a saúde privada, para
financiar o consumo do carro e outros bens de alto valor em um contexto
de arrocho salarial. Neste contexto, a moradia foi um dos primeiros
itens a sofrer essa mutação em processos de privatização em massa.
Tivemos uma mudança de paradigma, da habitação como um bem social, para a
moradia como uma mercadoria a ser produzida pelo setor privado e
desempenhando um papel importante como ativo financeiro, ou seja, como
uma das esferas onde um capital excedente financeiro global poderia
aterrissar para multiplicar renda através dos juros.
Há muitas versões dessa mudança, entre elas a da securitização das
hipotecas, que é o modelo que vai levar à crise financeira hipotecária. O
banco origina uma hipoteca para você obter um empréstimo para comprar
sua casa, mas depois vende essa hipoteca, com o retorno que ela promete
ao longo dos anos com a prestação que você em tese irá pagar, para outro
agente financeiro que, por sua vez, vende para outro, fazendo um pacote
com outras financeirizações. Outra versão deste mesmo modelo é o
programa Minha Casa, Minha Vida, que é, como costumo dizer,
completamente diferente e totalmente a mesma coisa. A minha leitura é
que estamos falando da hegemonia de um modelo global existente na
totalidade dos países do mundo, mas que, em cada um deles, assume uma
face completamente particular.
Sul21: Esse processo de securitização das
hipotecas sofreu alguma mudança significativa a partir da crise de
2007-2008 ou segue operando basicamente com os mesmos instrumentos?
Raquel Rolnik: Eu gosto de usar uma expressão de
Neil Smith, geógrafo escocês: o neoliberalismo está morto, porém
dominante. E o filósofo italiano Franco Berardi acrescentou: e nós
estamos morando dentro do cadáver. É um modelo que já provou ser um
fracasso. Ele prometeu uma coisa que não cumpriu: que todo mundo, a
partir desse modelo, teria, finalmente, acesso à moradia e segurança da
posse do lugar onde habita, sem aumentar o gasto público com isso. Essa
foi a promessa que, na verdade, carrega duas mentiras.
A primeira mentira foi revelada pela crise financeiro-hipotecária que
expôs o vínculo de dependência existente entre uma família e o lugar
onde ela mora às vicissitudes e loucuras de jogos especulativos do
mercado financeiro internacional. Quando esse mercado cai, na prática, o
que vai ocorrer é que aquela família vai ficar no meio da rua, no caso
dos Estados Unidos, vivendo dentro de carros e trailers ou indo morar
com algum familiar. No caso de um modelo como o chileno, que é o Minha
Casa, Minha Vida vinte anos antes, morando em casas e apartamentos
produzidos massivamente em periferias totalmente homogêneas, verdadeiros
containers de gente, um do lado do outro, sem emprego, sem acesso a
oportunidades de desenvolvimento humano. Moradia não é só quatro paredes
e um teto. Ela é muito mais do que isso. Moradia adequada, em sua
definição enquanto um direito humano, é um portal a partir do qual é
possível acessar às cidades e os benefícios que elas podem oferecer.
A segunda mentira é que esse modelo economizaria recursos públicos.
Essa é a mentira mais deslavada de todas. A lógica geral desse modelo é
produção em massa de moradia pelo mercado e compra da casa própria pelas
famílias por meio de crédito bancário. Esse crédito financeiro é
altamente subsidiado pelos fundos públicos em todos os casos. No caso do
Brasil é 100% fundo público, via Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
(FGTS) ou via orçamento da União por meio de subsídios para as famílias
de menor renda. No caso dos Estados Unidos, que é diferente do
brasileiro, a compra da casa própria envolve várias isenções posteriores
nas declarações de imposto de renda. Depois da crise
hipotecária-financeira qual foi a reação dos governos? Os bancos
centrais injetaram quantidades industriais de dinheiro público nos
bancos para que eles não quebrassem, enquanto as pessoas ficaram no meio
da rua sem casa. Na Inglaterra, milhares de jovens trabalhadores e de
classe média chegam aos 30 anos continuando a viver na casa dos pais,
pois não têm onde morar. Embora esse modelo já tenha revelado sua total
incapacidade de dar uma resposta adequada às necessidades de moradia dos
mais pobres no mundo, ele ainda é o modelo dominante, reiterado ad infinitum.
Sul21: Quais seriam as possíveis alternativas a esse modelo?
Raquel Rolnik: Um os grandes problemas desse modelo é
ser um modelo único. Se formos considerar quais são as necessidades
habitacionais concretas das pessoas no mundo, não há nenhum modelo único
capaz de atendê-las todas, porque elas são múltiplas e são variadas.
Isso é verdadeiro para o Brasil e para qualquer outro país. O modelo da
casa própria individual construída em condomínio pode ser um modelo que
responda às necessidades e aos desejos de certos grupos familiares, mas
ele está absolutamente longe de ser um modelo único. Vou dar um exemplo.
Nós estamos aqui numa ocupação, como milhares de outras pelo Brasil
afora, que está atendendo a uma necessidade emergencial de famílias e
indivíduos que estão numa situação de não ter para onde ir, por várias
razões. Há mulheres que estão saindo de situações de violência
doméstica, há tomadas de territórios populares por milícias ou pelo
tráfico de drogas, há pessoas que não conseguem mais pagar o aluguel
hoje e vão pra rua amanhã. Então, qual é o programa que temos hoje que
atende a situações de emergência como estas? Não temos.
Um programa de atendimento emergencial deveria contar com um estoque
de moradia disponível para funcionar como casa de acolhimento, como casa
de passagem, com uma estrutura básica que possa apoiar a pessoa até ela
ficar de pé e poder dar o passo seguinte na sua vida. É uma política
social, não é meramente uma política de construção de casas. Nosso
problema no Brasil não é déficit de moradia. Isso é uma falácia. Nós
temos um problema de déficit de cidade. Não temos produção de cidade
suficiente para acolher a totalidade das pessoas. Quando você faz um
programa de produção em massa de casas sem ter a produção de cidade
embaixo dela, você acaba gerando os problemas que foram gerados no Chile
e no México, por exemplo, e que estão começando a ser gerados aqui no
Brasil com a produção massiva do Minha Casa, Minha Vida faixa um, na
extrema periferia.
Outra questão que dialoga com esse lugar onde a gente está (Ocupação
Lanceiros Negros) é que nós temos uma quantidade enorme de prédios
vazios e subutilizados, muito bem localizados nas cidades, que já foram
moradia ou espaços comerciais. Nós precisamos de um programa que
reabilite esses edifícios para poder produzir moradia. Há muitos
territórios populares autoconstruídos que têm plenas condições de
permanecer onde estão e melhorar infinitamente a condição urbanística
das pessoas que vivem ali. Precisamos de um programa para urbanizar
esses assentamentos. Estou falando de uma gama de programas. Nenhum
modelo único vai atender a quantidade diversificada de demandas que nós
temos. A solução não é uma solução, mas são muitas.
Outra dimensão que devemos debater é essa verdadeira obsessão com a
propriedade privada individual como modelo único de relação entre as
pessoas e o território que elas ocupam ou moram. Por que a propriedade
privada individual tem que ser o modelo único? Ela pode existir sem
problema, ser uma referência, uma alternativa, mas ela não pode ser
imposta como modelo único para o conjunto da sociedade. Hoje, ela é o
modelo único porque é a única forma de relação entre os indivíduos e o
espaço que eles ocupam que pode circular livremente como um ativo
financeiro numa escala global. É por isso que ela é adotada, além,
evidentemente, de seu caráter ideológico, pois representa o
fortalecimento da ideia que é um dos fundamentos do modelo liberal de
sociedade, da livre concorrência pelo mercado, do Estado liberal, da
relação entre a liberdade e a cidadania. Há um sentido, portanto, pelo
qual a propriedade individual é imposta.
Se examinarmos quem resistiu melhor à crise financeiro-hipotecária,
do ponto de vista da moradia, nos Estados Unidos e na Europa, foram as
habitações mais cooperativas, menos expostas às oscilações do mercado. O
que estou dizendo é que podemos adotar outros modelos, como o de
aluguel, de propriedade cooperativa, coletiva, copropriedade e vários
outros possíveis. Hoje não temos opção. Ou você fica na fila para
receber uma casa em um programa massivo de habitação de propriedade
privada individual ou não vai ter casa.
É claro que a crise econômica que estamos vivendo no Brasil é
absolutamente trágica pela instabilidade que ela gera, pelo desemprego e
outros problemas. Mas ela é também uma excelente oportunidade para se
pensar em alternativas. É importante pensar, inclusive do ponto de vista
da gestão das cidades, como apoiar esses movimentos de auto-organização
das pessoas. Quem está numa ocupação hoje está morando. Devemos pensar
como é possível melhorar essa condição, para que ela tenha mais
qualidade e menos precariedade e instabilidade.
Sul21: O governo interino de Michel Temer já
emitiu alguns sinais que pode responder com repressão ao aumento das
mobilizações dos movimentos sociais que lutam por moradia. Esses sinais
já apareceram aqui em Porto Alegre, em São Paulo, Brasília e outras
cidades. Como você analisa a possibilidade de uma escalada de violência
contra os movimentos sociais, especialmente pela ação das polícias
militares?
Raquel Rolnik: Acho que essa é uma das grandes
incógnitas e um dos grandes temores na atual conjuntura. Um dos
elementos presentes no golpe jurídico-midiático que aconteceu no Brasil,
retirando a presidenta Dilma e colocando um governo interino no lugar, é
que, para que ele fosse possível, passou-se por cima de vários
dispositivos muito importantes da ordem legal e jurídica. Para quem já
viveu processos semelhantes em outros momentos da nossa história, a
pergunta é: onde isso vai parar?
Em todo esse processo de afastamento da presidenta Dilma, eu pensei
muito na ascensão do nazismo. Diante de uma situação de instabilidade
econômica real, de instabilidade política real e de crise de
representação política real, onde os cidadãos têm um sentimento de
insegurança e temor, as consequências são muito perigosas. Como muitos
desses cidadãos foram manipulados no sentido de construir um culpado –
no caso, Dilma, Lula e o PT -, assumem como sua a tarefa de acabar com
esse culpado. Isso me lembra muito o nazismo, que trabalhou essa lógica
ao extremo, até produzir a eliminação física de judeus, comunistas,
homossexuais e ciganos, entre outros, apontados como grandes
responsáveis pela crise econômica e política real que a Alemanha estava
vivendo nos anos 30.
O fascismo se vale desse apoio das massas muito incondicional para
criar estados de exceção cada vez mais totalitários. Isso nos faz
pensar, sim, no tipo de repressão que os movimentos sociais vão
enfrentar, que tipo de restrição à liberdade de expressão que poderemos
enfrentar. De que forma isso vai evoluir? Não estou afirmando que vai
evoluir nesta direção, mas acredito que há um grande perigo disso
acontecer. Daí a importância da resistência, da denúncia, da organização
e mobilização neste período. Independente do afastamento ou não da
Dilma e do PT, essa questão permanece na ordem do dia.
Por outro lado, creio que os movimentos por moradia precisam fazer
uma profunda reflexão. Eu tenho um profundo respeito pela trajetória
desse movimento no Brasil. Ele foi o sustentáculo histórico da luta pela
reforma urbana desde a redemocratização. O movimento de moradia no
Brasil é protagonista na elaboração de políticas públicas e no processo
de democratização do país. Mas me parece que, ao apoiar o programa Minha
Casa, Minha Vida, o movimento acabou compactuando com a entrada no
Brasil de uma política de moradia que não é aquela que melhor atende as
necessidades e interesses dos trabalhadores e das populações de menor
renda. Será que não é hora de romper com esse modelo? Vamos ver os
movimentos contraditórios desse governo ilegítimo e golpista com o qual,
me parece, não devemos ter nenhum tipo de diálogo. Eu sou uma crítica
de várias políticas do PT e do governo Dilma, mas foi um governo eleito
pelo povo.
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Fonte: http://www.sul21.com.br/jornal/nosso-grande-problema-nao-e-o-deficit-de-moradia-mas-sim-o-deficit-de-cidade/
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