Vladimir Safatle em conferência no IHU (Fotos: Ricardo Machado/IHU)
Olhar para o futuro mirando o retrovisor se constitui não
somente uma contradição lógica, mas também a forma como o Brasil encara
seus desafios. “Vivemos a consolidação de um processo de regressão política baseado na ascensão de discursos de viés autoritário, como o racismo, a misoginia e a homofobia, que pareciam não ter direito de cidade, direito à fala, mas que voltaram de uma maneira muito forte como nunca foi”, analisa Vladimir Safatle, durante evento realizado na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na noite da quarta-feira, 15-06-2016.
A o discutir seu livro O Circuito dos Afetos. Corpos Políticos, desamparo e o Fim do Indivíduo
o professor explicou a maneira pela qual não são as coerções em si
próprias que determinam as formas de governo, senão os amores. “Nenhum
poder consegue se perpetuar pela coerção porque é impossível a vigilância constante. Poder não é uma questão de força física, mas de sujeição psíquica.
Isso significa que não há nenhum exercício de poder que não se baseie
em alguma forma de amor e amamos de uma maneira peculiar aquilo que nos
assujeita”, provoca Safatle.
Capitalismo como sistema moral
O atual cenário de crises é potente para pensarmos, do ponto de vista conjuntural, como o capitalismo se constitui não apenas como um sistema econômico, mas também como um sistema moral.
“O que mais me preocupa é o capitalismo do ponto de vista moral. Isso
significa dizer que aqueles que vencem sabem se reinventar continuamente
e os que perdem são crianças mimadas esperando pelo Estado”, descreve. “Isso é uma maneira grotesca de eliminar o fato que as pessoas saem de lugares completamente diferentes.
Há uma moral que faz com que os indivíduos vejam que eles são um
fracasso em si próprios, o que ao mesmo tempo impede que a maioria das
pessoas percebam o fracasso da estrutura em que estão submetidas”, complementa.
O deserto da imaginação
Na perspectiva do professor, tanto o afeto do medo quanto seu par dialético, a esperança,
funcionam como forças paralisadoras, mesmo que a segunda não apareça
desta forma. São essas paixões que, de certa forma, condenam a
existência humana ao deserto da imaginação.
“Em uma situação de medo a pessoa faz tudo para conservar o mínimo de
segurança. A esperança também nos paralisa e isso pode parecer
contraintuitivo, mas esses afetos são formas de organizar o tempo em um horizonte de expectativas”, sustenta.
Tomando o tempo como um espaço de confirmações de projeções, medo e
esperança se tornam diferenças apenas de grau e não de natureza. “Ao
submeter o tempo à expectativa, eu esvazio o tempo, porque ele deixa de
ser o movimento no qual os acontecimentos se dão e passa a operar como
espaço de comprovação ou não de expectativas”, aponta.
Do poder às rupturas
Não há crises sem a produção sistêmica do medo. O fato, porém, é que os verdadeiros acontecimentos não operam na binariedade do medo/esperança. “O acontecimento é sempre aquilo que do ponto de vista de nossas experiências é impensável”, conceitualiza o professor.
Nesse sentido, ao retomar o pensamento de Lacan, para quem o debate sobre o possível e o impossível era secundário, Safatle aponta. “Conhecemos várias coisas impossíveis que não param de produzir efeitos.
Tudo o que colocou nossa história em movimento um dia foi impossível. A
filosofia política talvez esteja em um processo de deslocamento de seus
objetos e deixa de ser uma teoria do poder para ser uma teoria das
rupturas”, sugere.
Jogo das mutilações
Na análise do pesquisador, a filosofia deve pensar nas condições de
suspensão das formas de vida que se perpetuam no interior das relações.
“A nossa vida é mutilada em nome de uma experiência social do sofrimento
(aquilo que Freud chama de Mal-estar).
Entretanto, não sofremos porque não conseguimos ser 'incluídos' em
certos valores, mas porque os próprios valores constituem uma forma de
mutilação”, frisa. “Os valores que organizam os indivíduos modernos não
são os de luta pela liberdade, mas a internalização dos processos de servidão”, pondera.
Não à toa a ideia de propriedade é constitutiva do indivíduo moderno,
que opera no âmbito pessoal, dono de si mesmo, e social, o direito à
propriedade. “Isso significa dizer que os indivíduos entram na vida
social procurando mostrar o que é sua propriedade e por isso eles
ingressam na sociedade com esse desejo contratual. Uma sociedade de
indivíduos só se dá pela forma do contrato, pelo desejo de possessão”,
demonstra.
Do contrato à possessão
Dos conceitos capazes de sintetizar a racionalidade moderna, a ideia de possessão é exemplar. Isso porque possessão
é uma espécie de meio termo entre a paixão e o cálculo, uma tentativa
de calcular o incalculável. “A relação entre os indivíduos é uma relação
de posse de bens e um tipo específico de posse do outro”, ressalta.
Disso deriva outro grande equívoco moderno, na opinião do conferencista, que é a ideia de que a liberdade é uma espécie de autonomia,
de estar sob a “jurisdição” de si próprio. “Talvez esse conceito de
liberdade seja o maior equívoco da filosofia moderna. Talvez a liberdade não seja uma autonomia, mas uma heteronomia sem servidão.
Não se trata de algo que se submeta à vontade do outro, por isso não é
servidão, mas estou sendo causado por algo que depõe tanto a minha
vontade quanto a vontade do outro”, provoca. Para Safatle, a heteronomia é, ao mesmo tempo, o sapato que faz a engrenagem da servidão emperrar e o motor de partida de uma imaginação política em movimento.
Ecos do Evento
Para o doutorando em psicologia social da Universidade Federal do Rio Grande do Sol - Ufrgs, Lucas Goulart,
uma das questões suscitadas pela conferência foi como pensar as lutas
identitárias de grupos minoritários a partir de uma perspectiva
heterônoma. Safatle respondeu que, antes que qualquer coisa, é preciso reconhecer os circuitos de violência
contra certos setores sob o risco de perpetuação da discriminação. Em
contrapartida ele ressaltou que “não é possível criar um âmbito de
aplicação genérica das lutas contra a exclusão constituindo novas
exclusões”, destaca. “A sociedade não é um acordo entre diferenças, mas
uma zona de indiscernimento de diferenças porque de certa forma as
demandas dizem respeito a todos”, complementa.
Já para Lucas Hertzog, também estudante de sociolofia de Ufrgs, o ponto em aberto na perspectiva de Safatle é como entender a afirmação da ética da autenticidade e a autonomia, ponto de vista que vem de Charles Taylor.
Segundo o professor, é preciso levar em conta que a autenticidade só
pode ser expressa de uma maneira codificada, o que resolve o problema do
ponto de vista estético, mas do ponto de vista dos sujeitos é mais
complexo. “As pessoas dizem que as motivações vêm na expressão de um eu,
mas a Freud diz que a autonomia gira entre o eu
(pronome definido) e o isso (pronome indefinido). Eu colocaria a
pergunta ao Taylor no seguinte sentido: o que fazer com o que é
refratário? O que nos impulsiona a uma forma de ação pode ser pensada
sob a forma da autenticidade ou exigira outro conceito?”, recoloca a
pergunta.
Quem é Vladimir Safatle
Vladimir Safatle
é graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo - USP e em
Comunicação Social pela Escola Superior de Propaganda e Marketing.
Realizou mestrado em Filosofia pela USP e doutorado em Lieux et
transformations de la philosophie, pela Université de Paris VIII.
Atualmente é Professor Livre Docente do departamento de Filosofia da
USP. Foi professor visitante das Universidades de Paris VII, Paris VIII,
Toulouse, Louvain e Stellenboch (África do Sul), além de responsável de
seminário no Collège International de Philosophie (Paris). É um dos
coordenadores da International Society of Psychoanalysis and Philosophy,
do Laboratório de Pesquisa em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise
(Latesfip) e presidente da Comissão de Cooperação Internacional (CCint)
da FFLCH-USP desde 2012. É autor de diversos livros, dentre os quais
destacamos A paixão do negativo: Lacan e a dialética (São Paulo: Unesp,
2006), Lacan (São Paulo: Publifolha, 2007), A esquerda que não teme
dizer o seu nome (São Paulo: Três Estrelas, 2012) e O circuito dos
afetos. Corpos Políticos, desamparo e o Fim do Indivíduo (São Paulo:
Cosac Naify, 2015).
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Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/556481-a-vida-no-deserto-da-imaginacao
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