domingo, 26 de junho de 2016

Nélida Piñon: ‘Quem não quer ser aventureiro?’


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Entrevista Nélida Piñon

Nélida Piñon, 78, é uma das escritoras brasileiras mais celebradas no mundo hispânico. Filha de imigrantes galegos, sua relação com a literatura espanhola vem desde criança. Dom Quixote é, assim, um de seus livros do peito. Em conversa com a Folha, ela falou não só da importância do livro para sua formação, mas também para o cânone literário.

Folha - Você já falou que vê em Dom Quixote uma crítica ao poder de Filipe 2ë (1527-1598). Pode explicar melhor?

Nélida Piñon - O Quixote é uma acusação à miséria espanhola no período. Cervantes mira a prepotência militar do rei. Onde havia riqueza, começam a surgir bodegões, albergues… Muitas ações do livro se passam nesses espaços. 

Mas você vê uma crítica atual ao poder instituído?
Sim, ao desmedido poder que gravita em torno de si mesmo. Acho que falta a todos nós a capacidade de criticar o poder. O poder é ingrato, ele não trabalha em favor do povo. A única coisa que importa ao poder é cuidar dele próprio, das amantes, das mulheres e dos filhos.

Qual foi o seu primeiro contato com Dom Quixote?
Comecei com os livros de aventura. Tenho uma gratíssima lembrança por aqueles grandes mentirosos que me introduziram no mundo da inverossimilhança. Somos seres das peripécias. Cervantes você vai descobrindo cada vez mais. Você já pensou no milagre que é um autor se modernizar como se estivesse vivo? Ai, meu Deus, como é que o gênio lhe outorgou esse milagre? Quando você o lê, você prolonga sua existência narrativa.

O livro instala princípios narrativos e estéticos de um vigor… Quem não quer ser aventureiro? Esse é um fascínio que Quixote exerce. 

Cervantes começa contando a história como um conto, mas acaba escrevendo dois volumes…

Há críticos que dizem que ele queria fazer um livro pequeno e depois o prorrogou. De todo modo, penso que toda história tem uma volúpia, um desejo de ir além dos seus limites. É como se ela dissesse: Ô, narrador! Vamos embora, porque tenho outras coisas para contar! Você não percebeu esse fio do qual você pode partir para puxar todos os fios do cordel?.
Como um clássico assim sobrevive ao tempo e às traduções. Há algo intrínseco à própria narrativa?
Tenho a impressão de que há um grande conteúdo teórico dentro de Dom Quixote. As reflexões e as considerações estéticas [de Cervantes] estão embutidas na ação. Isso ajuda o mundo. Cervantes é um contador de histórias. 

Em A Camisa do Marido, você defende Dom Quixote como um pilar da civilização ocidental. Por quê?
O Quixote é uma cápsula, uma esfera, um epicentro. Faz você se dar conta da sua humanidade. Como quando você conhece um santo. Não há nada do que é humano que não esteja dentro do livro.

Vá direto à fonte. Não perca tempo com livrinhos vagabundos. Após milhões de anos, conseguimos o quinto dedinho da mão, fizemos coisas espantosas e cruéis. Somos um milagre. Podemos perder tempo com banalidade?
A liberdade, Sancho, não é um pedaço de pão Dom Quixote
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Reportagem por  Maurício Meireles, colunista da Folha
Fonte: http://arte.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/04/23/shakespeare-e-cervantes/

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