domingo, 26 de junho de 2016

A utopia tropical de Eduardo Giannetti

HÉLIO SCHWARTSMAN*

Eduardo Giannetti em ilustração de Filipe Rocha

RESUMO Em novo livro, composto de microensaios, Eduardo Giannetti analisa a relação entre ciência e o avanço da espécie humana. Para o economista, que foi consultor de Marina Silva em sua campanha à Presidência em 2014, o caráter brasileiro pode ajudar a resolver o impasse 
entre progresso e sustentabilidade.

Trópicos Utópicos", o mais recente livro de Eduardo Giannetti, é uma obra ambiciosa. O autor busca, numa sequência de 124 microensaios, que se estendem por apenas 163 páginas do breve volume [Companhia das Letras, 216 págs., R$ 49,90], identificar a crise civilizatória que acomete nossos tempos, destrinchar as ilusões que a alimentam e ainda esboçar uma saída para o problema, sob a perspectiva brasileira. 

Caberá ao leitor julgar em que medida Giannetti cumpre essas promessas, mas posso assegurar que é um grande prazer navegar pelos textos, que amalgamam "insights" valiosos com informações relevantes, erudição e estilo. Mesmo que o leitor discorde inteiramente dos diagnósticos e da terapia propostos pelo autor, encontrará farto material para reflexão. 

Antes de prosseguir, em obediência ao princípio da transparência, devo alertar para um potencial conflito de interesses. Como Giannetti é meu amigo, por mais objetivo que eu procure ser, é mais ou menos inevitável que esta resenha seja benevolente para com o autor e a obra. Cientes disso, os leitores podem dar a minhas observações os descontos que considerarem devidos. 

A estrutura de "Trópicos Utópicos" é simples. "Grosso modo", a primeira parte sustenta que a ciência falhou em sua promessa de banir o mistério do mundo e elucidar o sentido da vida; a segunda mostra que os avanços tecnológicos têm um limite e jamais nos levarão ao completo domínio sobre a natureza; e a terceira afirma que o crescimento econômico e os ganhos civilizatórios a ele associados não levam necessariamente ao aprimoramento ético e intelectual da humanidade. Na quarta parte, Giannetti propõe uma discussão sobre utopias e sobre a identidade nacional e sugere que algo contido no caráter brasileiro pode nos ajudar a resolver os impasses descritos nas três partes anteriores. 

A simplicidade da estrutura é, obviamente, enganosa. Todas as partes se inter-relacionam, e os microensaios, nome que Giannetti prefere a aforismos, embora possam ser lidos de modo isolado, só adquirem pleno sentido se interpretados de forma mais sistemática. 

Tenho várias discordâncias em relação aos tópicos discutidos, mas elas são muito mais de grau do que de natureza. Pincelo, sem nenhuma pretensão de exaurir as discussões suscitadas pelo livro, alguns pontos que me pareceram especialmente instigantes. 

No que diz respeito à primeira parte, acho que nem o mais ferrenho positivista lógico sustentaria, hoje, que a ciência tem a resposta para todos os nossos problemas. Giannetti, porém, não se contenta em indicar os limites da ciência e mostrar que ela também está calcada numa metafísica. Ele sustenta que a ciência, ao delimitar o tipo de pergunta que é legítimo fazer, acabou corroendo as metafísicas, como a religião, que davam sentido à existência. Isso é, para o autor, uma receita para o niilismo. Como já ensinava o físico Steven Weinberg, quanto mais compreendemos o universo, mais ele fica destituído de propósito. Ou, para utilizar as palavras de Giannetti, "a ciência ilumina, mas não sacia –e pior: mina e desacredita todas as fontes possíveis de repleção". 

De acordo. Mas, dando rédeas ao pequeno niilista que existe dentro de cada um de nós, pergunto: e se o universo e a existência forem de fato algo sem fim ou propósito? Será que, aí, criar sentido onde não existe um, buscar a tal da repleção, não seria uma forma de autoengano que a ciência teria por missão afastar? 

É claro que, ao dizer isso, já estou afirmando uma metafísica na qual a "verdade" (coloquem quantas aspas quiserem) prepondera sobre a "fome de sentido" (o termo é de Giannetti). O ponto central é justamente não conseguirmos, por mais que tentemos, nos livrar de alguma metafísica e nos faltarem critérios não metafísicos para hierarquizá-las. A opção do autor pelo sentido é válida e, provavelmente, mais em linha com os apetites humanos, mas é apenas uma opção, entre outras possíveis. 

Na segunda parte, Giannetti desnuda sua faceta ecológica. Mas, se ele é um "tree hugger" (abraçador de árvores), que denuncia o beco sem saída em que a exploração insustentável do planeta nos lança, não deixa de ser o economista racional, que reconhece as virtudes da economia de mercado, tanto em seus aspectos materiais (geração de prosperidade) como morais (promoção da liberdade). 

Conciliar as duas posições talvez seja impossível na prática, mas não o é na teoria. O próprio sistema de preços pode trazer parte da solução, ensina Giannetti, se for recalibrado para refletir o impacto negativo que cada tecnologia, produto ou serviço exerce sobre a biosfera. 

Aproveito aqui para abrir um parêntese. Todos os ecologistas, do papa a Giannetti, passando pelos frequentadores de São Tomé das Letras, adoram falar mal do ar-condicionado. É como se esse aparelhinho não passasse de um luxo supérfluo que devora energia em quantidades pantagruélicas, contribuindo enormemente para o aquecimento global. Admito que é egoisticamente prazeroso escapar ao calor senegalesco que muitas vezes nos assalta nos meses de estio, mas ares-condicionados também salvam vidas. 

E não poucas. Estudo de 2013 de Alan Barreca, da Universidade Tulane, e colaboradores mostra que a adoção maciça de ares-condicionados pelos norte-americanos é o principal motivo para uma redução de 80% no número de mortes prematuras nos dias mais tórridos do verão naquele país. Pelas estimativas dos autores, os óbitos caíram de 3.600 ao ano no período entre 1900 e 1959 para 600 entre 1960 e 2004. Os valores foram ajustados para permitir a comparação. Segundo Barreca, a popularização dos ares-condicionados explica quase todo esse efeito. 

IDOLATRIA
 
Voltando a "Trópicos Utópicos", a cegueira do sistema de preços para as externalidades é apenas um dos muito desafios, que também incluem uma espécie de idolatria que mantemos em relação ao crescimento econômico e as próprias vicissitudes da liberdade (comportamentos individuais inofensivos, como ligar o ar-condicionado, podem se tornar um problema quando exercidos por multidões, como se vê pela crescente demanda de energia elétrica). 

Na terceira parte, Giannetti se embrenha por temas tão variados como sociedade de consumo, sexo e a combinação dos dois, expressa na máxima "Se as mulheres não existissem, todo o dinheiro perderia o sentido", atribuída ao milionário e sedutor Aristóteles Onassis. 

Nesse capítulo, provavelmente o meu favorito, Giannetti vai, em seus microensaios, compondo um quadro não muito lisonjeiro, mas, a meu ver, bastante preciso da natureza humana e da civilização.
Na série discordâncias de grau, eu, como sou mais otimista do que o autor, enfatizaria um pouco mais o lado bonito de nossa história. 

É verdade que nós não passamos de animais, e as estruturas que nos ligam ao que se convencionou chamar de civilização são frágeis, um verniz ralinho. 

Ainda assim, considerada a série histórica longa, estamos fazendo um bom trabalho. O mundo nunca foi tão próspero quanto o é hoje –e mesmo os mais pobres se beneficiam disso– e está se tornando cada vez menos violento. O processo de autodomesticação humana, ao qual o autor alude, está dando certo, ainda que talvez não no ritmo desejado. O fato de haver barreiras físicas à continuidade dessa expansão não diminui o valor do que logramos até aqui. 

É na quarta parte que Giannetti se torna um sonhático. Ele não perderia, é claro, a oportunidade de teorizar sobre isso. E o faz refletindo sobre o valor das utopias. 

"Ocorre, porém, que a realidade objetiva não é toda a realidade. A vida dos povos, não menos que a dos indivíduos, é vivida em larga medida na imaginação. A capacidade de sonho e o desejo de mudar fertilizam o real, expandem as fronteiras do possível e reembaralham as cartas do provável", escreve numa das várias passagens memoráveis do livro. 

A partir daí, Giannetti passa a se mover no terreno mais pantanoso da psicologia dos povos. Se, até o século 19, esse era um tópico quase obrigatório para autores tão diversos quanto Rousseau, Montesquieu, Marx, Nietzsche etc, ele se tornou suspeito em algum momento do século 20, quando passou a ser visto como uma generalização insustentável, quando não ingênua ou interessada. 

Confesso que fico um pouco incomodado com discussões sobre identidade nacional e seu corolário, que é a utilização de clichês como "cordialidade do brasileiro", "vocação para a felicidade", "exuberância tropical", "país do Carnaval". Frequentemente, julgo ter mais em comum com um jornalista americano ou francês vivendo em Nova York ou Paris do que com um brasileiro que habite em Belém do Pará e tire seu sustento da pesca. 

Por outro lado, não dá nem para começar a falar em cultura (um conceito que goza de grande prestígio na academia) sem ter como pressuposto certas comunalidades meio esotéricas e valores compartilhados que necessariamente resvalam nos clichês mencionados. 

Assim, considero legítima a incursão de Giannetti pela psicologia dos povos, mas não estou ainda certo de que compro sua conclusão –a saber, a de que o brasileiro, numa espécie de sabedoria não intencional, reúne as condições ideais para encontrar um caminho do meio, que, sem renunciar à prosperidade e ao conforto material proporcionados pela economia de mercado, consiga buscar em valores menos ocidentalizados os freios necessários para manter o desenvolvimento numa escala compatível com a preservação do planeta. 

Utopia? Provavelmente. Mas a intenção do autor é justamente nos provocar para que não caiamos na armadilha da objetividade possível. 

Nota: "Trópicos Utópicos" será lançado em São Paulo nesta segunda (27), às 19h, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional. 
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* HÉLIO SCHWARTSMAN, 50, é titular da coluna São Paulo, publicada na página 2 da Folha.
FILIPE ROCHA, 27, é designer gráfico da Folha. 
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/06/1785008-a-utopia-tropical-de-eduardo-giannetti.shtml

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