HÉLIO SCHWARTSMAN*
RESUMO Em novo livro, composto de microensaios, Eduardo Giannetti
analisa a relação entre ciência e o avanço da espécie humana. Para o
economista, que foi consultor de Marina Silva em sua campanha à
Presidência em 2014, o caráter brasileiro pode ajudar a resolver o
impasse
entre progresso e sustentabilidade.
Trópicos Utópicos", o mais recente livro de Eduardo Giannetti, é uma
obra ambiciosa. O autor busca, numa sequência de 124 microensaios, que
se estendem por apenas 163 páginas do breve volume [Companhia das
Letras, 216 págs., R$ 49,90], identificar a crise civilizatória que
acomete nossos tempos, destrinchar as ilusões que a alimentam e ainda
esboçar uma saída para o problema, sob a perspectiva brasileira.
Caberá ao leitor julgar em que medida Giannetti cumpre essas promessas,
mas posso assegurar que é um grande prazer navegar pelos textos, que
amalgamam "insights" valiosos com informações relevantes, erudição e
estilo. Mesmo que o leitor discorde inteiramente dos diagnósticos e da
terapia propostos pelo autor, encontrará farto material para reflexão.
Antes de prosseguir, em obediência ao princípio da transparência, devo
alertar para um potencial conflito de interesses. Como Giannetti é meu
amigo, por mais objetivo que eu procure ser, é mais ou menos inevitável
que esta resenha seja benevolente para com o autor e a obra. Cientes
disso, os leitores podem dar a minhas observações os descontos que
considerarem devidos.
A estrutura de "Trópicos Utópicos" é simples. "Grosso modo", a primeira
parte sustenta que a ciência falhou em sua promessa de banir o mistério
do mundo e elucidar o sentido da vida; a segunda mostra que os avanços
tecnológicos têm um limite e jamais nos levarão ao completo domínio
sobre a natureza; e a terceira afirma que o crescimento econômico e os
ganhos civilizatórios a ele associados não levam necessariamente ao
aprimoramento ético e intelectual da humanidade. Na quarta parte,
Giannetti propõe uma discussão sobre utopias e sobre a identidade
nacional e sugere que algo contido no caráter brasileiro pode nos ajudar
a resolver os impasses descritos nas três partes anteriores.
A simplicidade da estrutura é, obviamente, enganosa. Todas as partes se
inter-relacionam, e os microensaios, nome que Giannetti prefere a
aforismos, embora possam ser lidos de modo isolado, só adquirem pleno
sentido se interpretados de forma mais sistemática.
Tenho várias discordâncias em relação aos tópicos discutidos, mas elas
são muito mais de grau do que de natureza. Pincelo, sem nenhuma
pretensão de exaurir as discussões suscitadas pelo livro, alguns pontos
que me pareceram especialmente instigantes.
No que diz respeito à primeira parte, acho que nem o mais ferrenho
positivista lógico sustentaria, hoje, que a ciência tem a resposta para
todos os nossos problemas. Giannetti, porém, não se contenta em indicar
os limites da ciência e mostrar que ela também está calcada numa
metafísica. Ele sustenta que a ciência, ao delimitar o tipo de pergunta
que é legítimo fazer, acabou corroendo as metafísicas, como a religião,
que davam sentido à existência. Isso é, para o autor, uma receita para o
niilismo. Como já ensinava o físico Steven Weinberg, quanto mais
compreendemos o universo, mais ele fica destituído de propósito. Ou,
para utilizar as palavras de Giannetti, "a ciência ilumina, mas não
sacia –e pior: mina e desacredita todas as fontes possíveis de
repleção".
De acordo. Mas, dando rédeas ao pequeno niilista que existe dentro de
cada um de nós, pergunto: e se o universo e a existência forem de fato
algo sem fim ou propósito? Será que, aí, criar sentido onde não existe
um, buscar a tal da repleção, não seria uma forma de autoengano que a
ciência teria por missão afastar?
É claro que, ao dizer isso, já estou afirmando uma metafísica na qual a
"verdade" (coloquem quantas aspas quiserem) prepondera sobre a "fome de
sentido" (o termo é de Giannetti). O ponto central é justamente não
conseguirmos, por mais que tentemos, nos livrar de alguma metafísica e
nos faltarem critérios não metafísicos para hierarquizá-las. A opção do
autor pelo sentido é válida e, provavelmente, mais em linha com os
apetites humanos, mas é apenas uma opção, entre outras possíveis.
Na segunda parte, Giannetti desnuda sua faceta ecológica. Mas, se ele é
um "tree hugger" (abraçador de árvores), que denuncia o beco sem saída
em que a exploração insustentável do planeta nos lança, não deixa de ser
o economista racional, que reconhece as virtudes da economia de
mercado, tanto em seus aspectos materiais (geração de prosperidade) como
morais (promoção da liberdade).
Conciliar as duas posições talvez seja impossível na prática, mas não o é
na teoria. O próprio sistema de preços pode trazer parte da solução,
ensina Giannetti, se for recalibrado para refletir o impacto negativo
que cada tecnologia, produto ou serviço exerce sobre a biosfera.
Aproveito aqui para abrir um parêntese. Todos os ecologistas, do papa a
Giannetti, passando pelos frequentadores de São Tomé das Letras, adoram
falar mal do ar-condicionado. É como se esse aparelhinho não passasse de
um luxo supérfluo que devora energia em quantidades pantagruélicas,
contribuindo enormemente para o aquecimento global. Admito que é
egoisticamente prazeroso escapar ao calor senegalesco que muitas vezes
nos assalta nos meses de estio, mas ares-condicionados também salvam
vidas.
E não poucas. Estudo de 2013 de Alan Barreca, da Universidade Tulane, e
colaboradores mostra que a adoção maciça de ares-condicionados pelos
norte-americanos é o principal motivo para uma redução de 80% no número
de mortes prematuras nos dias mais tórridos do verão naquele país. Pelas
estimativas dos autores, os óbitos caíram de 3.600 ao ano no período
entre 1900 e 1959 para 600 entre 1960 e 2004. Os valores foram ajustados
para permitir a comparação. Segundo Barreca, a popularização dos
ares-condicionados explica quase todo esse efeito.
IDOLATRIA
Voltando a "Trópicos Utópicos", a cegueira do sistema de preços para as
externalidades é apenas um dos muito desafios, que também incluem uma
espécie de idolatria que mantemos em relação ao crescimento econômico e
as próprias vicissitudes da liberdade (comportamentos individuais
inofensivos, como ligar o ar-condicionado, podem se tornar um problema
quando exercidos por multidões, como se vê pela crescente demanda de
energia elétrica).
Na terceira parte, Giannetti se embrenha por temas tão variados como
sociedade de consumo, sexo e a combinação dos dois, expressa na máxima
"Se as mulheres não existissem, todo o dinheiro perderia o sentido",
atribuída ao milionário e sedutor Aristóteles Onassis.
Nesse capítulo, provavelmente o meu favorito, Giannetti vai, em seus
microensaios, compondo um quadro não muito lisonjeiro, mas, a meu ver,
bastante preciso da natureza humana e da civilização.
Na série discordâncias de grau, eu, como sou mais otimista do que o
autor, enfatizaria um pouco mais o lado bonito de nossa história.
É verdade que nós não passamos de animais, e as estruturas que nos ligam
ao que se convencionou chamar de civilização são frágeis, um verniz
ralinho.
Ainda assim, considerada a série histórica longa, estamos fazendo um bom
trabalho. O mundo nunca foi tão próspero quanto o é hoje –e mesmo os
mais pobres se beneficiam disso– e está se tornando cada vez menos
violento. O processo de autodomesticação humana, ao qual o autor alude,
está dando certo, ainda que talvez não no ritmo desejado. O fato de
haver barreiras físicas à continuidade dessa expansão não diminui o
valor do que logramos até aqui.
É na quarta parte que Giannetti se torna um sonhático. Ele não perderia,
é claro, a oportunidade de teorizar sobre isso. E o faz refletindo
sobre o valor das utopias.
"Ocorre, porém, que a realidade objetiva não é toda a realidade. A vida
dos povos, não menos que a dos indivíduos, é vivida em larga medida na
imaginação. A capacidade de sonho e o desejo de mudar fertilizam o real,
expandem as fronteiras do possível e reembaralham as cartas do
provável", escreve numa das várias passagens memoráveis do livro.
A partir daí, Giannetti passa a se mover no terreno mais pantanoso da
psicologia dos povos. Se, até o século 19, esse era um tópico quase
obrigatório para autores tão diversos quanto Rousseau, Montesquieu,
Marx, Nietzsche etc, ele se tornou suspeito em algum momento do século
20, quando passou a ser visto como uma generalização insustentável,
quando não ingênua ou interessada.
Confesso que fico um pouco incomodado com discussões sobre identidade
nacional e seu corolário, que é a utilização de clichês como
"cordialidade do brasileiro", "vocação para a felicidade", "exuberância
tropical", "país do Carnaval". Frequentemente, julgo ter mais em comum
com um jornalista americano ou francês vivendo em Nova York ou Paris do
que com um brasileiro que habite em Belém do Pará e tire seu sustento da
pesca.
Por outro lado, não dá nem para começar a falar em cultura (um conceito
que goza de grande prestígio na academia) sem ter como pressuposto
certas comunalidades meio esotéricas e valores compartilhados que
necessariamente resvalam nos clichês mencionados.
Assim, considero legítima a incursão de Giannetti pela psicologia dos
povos, mas não estou ainda certo de que compro sua conclusão –a saber, a
de que o brasileiro, numa espécie de sabedoria não intencional, reúne
as condições ideais para encontrar um caminho do meio, que, sem
renunciar à prosperidade e ao conforto material proporcionados pela
economia de mercado, consiga buscar em valores menos ocidentalizados os
freios necessários para manter o desenvolvimento numa escala compatível
com a preservação do planeta.
Utopia? Provavelmente. Mas a intenção do autor é justamente nos provocar
para que não caiamos na armadilha da objetividade possível.
Nota: "Trópicos Utópicos" será lançado em São Paulo nesta segunda (27), às 19h, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional.
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* HÉLIO SCHWARTSMAN, 50, é titular da coluna São Paulo, publicada na página 2 da Folha.
FILIPE ROCHA, 27, é designer gráfico da Folha.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/06/1785008-a-utopia-tropical-de-eduardo-giannetti.shtml
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