José Eduardo Agualusa*
A
crítica literária está sendo vítima da crise global do jornalismo em papel
O
colapso da crítica literária serviu de mote para um dos mais animados debates
da segunda edição do Festival Literário Internacional de Óbidos (Folio), que se
encerrou ontem, domingo. O escritor e crítico literário paranaense Miguel
Sanches Neto dividiu a mesa com dois críticos literários portugueses muito
conhecidos e muito distintos um do outro: Pedro Mexia e João Pedro George.
Mexia, também poeta, é o intelectual de direita que a esquerda ama e cultua.
Homem afável, inteligentíssimo, está tão à vontade a discutir literatura quanto
cinema. Já João Pedro George, se fosse diretor de cinema, seria Tarantino.
George pratica uma crítica-espetáculo, com muito sangue, veneno, explosões e
adjetivos cheios de dentes. Ao longo dos anos tem-se esforçado por assassinar,
embora sem grande sucesso, desde escritores respeitados, como Gonçalo M.
Tavares, a expoentes da chamada literatura light, como Margarida Rebelo Pinto.
Logo
nos primeiros minutos, Miguel Sanches Neto chamou a atenção para um curioso
paradoxo: ao mesmo tempo que o espaço para a crítica literária diminui, o
interesse pelo livro vem aumentando — graças sobretudo à multiplicação de
festivais literários.
A
crítica literária está sendo vítima da crise global do jornalismo em papel. Os
jornais não têm dinheiro para pagar aos críticos. Além disso, a atividade é
ingrata. “Exige uma vocação para ser odiado”, como explicou Miguel Sanches
Neto. Os escritores odeiam os críticos que destroem os seus livros; odeiam
inclusive os que lhes fazem elogios, porque “não eram aqueles elogios que eles
esperavam ouvir”.
Pedro
Mexia recordou Eduardo Prado Coelho, o último dos grandes críticos literários
portugueses, segundo o qual “a crítica é um tribunal sem lei”. O crítico produz
veredictos guiado, em último caso, pelo coração. Não há nada mais subjetivo do
que uma opinião sobre uma obra de arte. Por isso mesmo, é um ofício que implica
responsabilidade. Nos nossos dias assistimos a uma irresponsabilização da
crítica: “É compreensível que muitos críticos jovens, sendo tão mal pagos, nem
sequer leiam os livros que criticam”, assegurou George, que no entanto se
recusou a classificar a situação como de colapso: “A critica passou para a
internet.”
Sim
e não. Como Pedro Mexia rebateu, são muito raros os blogs literários, quer no
Brasil quer em Portugal, que publicam crítica literária de forma regular e com
alguma qualidade. O leitor vulgar, de resto, não lê blogs literários.
Resumindo:
a crítica literária está de fato a desaparecer. Os leitores não. Portanto, a
pergunta que importa fazer é: podemos viver sem crítica literária?
Para
mim, enquanto leitor, a crítica literária sempre teve um papel fundamental,
desde logo, ao chamar a atenção para este ou aquele livro. Todos os dias chegam
às livrarias títulos novos. Entrar numa livraria sem uma mão que nos guie pode
ser uma aventura cruel. Claro que quando acertamos numa escolha a alegria é
maior — porque se soma à alegria da descoberta. O problema é que as possibilidades
de errar são imensas. Com o colapso da crítica literária a minha biblioteca
vem-se enchendo de livros de que me desinteressei após ler as primeiras
páginas.
“O
grande papel da crítica é apontar caminhos”, disse ainda Miguel Sanches Neto.
Ao que João Pedro George, na sua função discordante, naturalmente discordou,
dizendo que a crítica não deve ser pedagógica. Deve, claro. Nos jornais
ingleses e americanos, nos quais a crítica literária continua a ter bastante
espaço, isso sempre foi algo claro. A crítica tem como objetivo iluminar a
leitura, ajudar os leitores a fruir os livros.
Para
um escritor, talvez seja ainda mais importante. A ideia de que um escritor não
deve preocupar-se com a forma como a sua obra é recebida sempre me pareceu
arrogante e absurda. Se um escritor publica é porque pretende ser lido; se quer
ser lido, deve saber escutar quem o lê.
Festivais
literários permitem que os escritores se confrontem com os leitores. A opinião
dos leitores ajuda os escritores a buscarem caminhos para a própria obra. Tais
eventos, porém, não substituem o espaço crítico. O colapso deste pode, sim, vir
a empobrecer e degradar a própria literatura.
Não
sei se a internet conseguirá algum dia substituir-se aos jornais em papel como
novo veículo para a crítica literária e o debate sobre livros. Não vejo,
contudo, outro caminho. Há alguns meses noticiei nesta mesma coluna o
surgimento na Espanha de um portal literário chamado “Zenda”. Na altura recebi
algumas mensagens de escritores brasileiros e portugueses interessados em
replicar a iniciativa para o nosso universo. Espero que aconteça.
------------------------------* Colunista do Jornal O Globo.
Fonte http://oglobo.globo.com/cultura/a-literatura-pode-sobreviver-sem-critica-20222639#ixzz4M1WqK3zo
Imagem da Internet
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