segunda-feira, 3 de outubro de 2016

A literatura pode sobreviver sem crítica?


José Eduardo Agualusa*
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A crítica literária está sendo vítima da crise global do jornalismo em papel 

O colapso da crítica literária serviu de mote para um dos mais animados debates da segunda edição do Festival Literário Internacional de Óbidos (Folio), que se encerrou ontem, domingo. O escritor e crítico literário paranaense Miguel Sanches Neto dividiu a mesa com dois críticos literários portugueses muito conhecidos e muito distintos um do outro: Pedro Mexia e João Pedro George. Mexia, também poeta, é o intelectual de direita que a esquerda ama e cultua. Homem afável, inteligentíssimo, está tão à vontade a discutir literatura quanto cinema. Já João Pedro George, se fosse diretor de cinema, seria Tarantino. George pratica uma crítica-espetáculo, com muito sangue, veneno, explosões e adjetivos cheios de dentes. Ao longo dos anos tem-se esforçado por assassinar, embora sem grande sucesso, desde escritores respeitados, como Gonçalo M. Tavares, a expoentes da chamada literatura light, como Margarida Rebelo Pinto.

Logo nos primeiros minutos, Miguel Sanches Neto chamou a atenção para um curioso paradoxo: ao mesmo tempo que o espaço para a crítica literária diminui, o interesse pelo livro vem aumentando — graças sobretudo à multiplicação de festivais literários.

A crítica literária está sendo vítima da crise global do jornalismo em papel. Os jornais não têm dinheiro para pagar aos críticos. Além disso, a atividade é ingrata. “Exige uma vocação para ser odiado”, como explicou Miguel Sanches Neto. Os escritores odeiam os críticos que destroem os seus livros; odeiam inclusive os que lhes fazem elogios, porque “não eram aqueles elogios que eles esperavam ouvir”.

Pedro Mexia recordou Eduardo Prado Coelho, o último dos grandes críticos literários portugueses, segundo o qual “a crítica é um tribunal sem lei”. O crítico produz veredictos guiado, em último caso, pelo coração. Não há nada mais subjetivo do que uma opinião sobre uma obra de arte. Por isso mesmo, é um ofício que implica responsabilidade. Nos nossos dias assistimos a uma irresponsabilização da crítica: “É compreensível que muitos críticos jovens, sendo tão mal pagos, nem sequer leiam os livros que criticam”, assegurou George, que no entanto se recusou a classificar a situação como de colapso: “A critica passou para a internet.”

Sim e não. Como Pedro Mexia rebateu, são muito raros os blogs literários, quer no Brasil quer em Portugal, que publicam crítica literária de forma regular e com alguma qualidade. O leitor vulgar, de resto, não lê blogs literários.

Resumindo: a crítica literária está de fato a desaparecer. Os leitores não. Portanto, a pergunta que importa fazer é: podemos viver sem crítica literária?

Para mim, enquanto leitor, a crítica literária sempre teve um papel fundamental, desde logo, ao chamar a atenção para este ou aquele livro. Todos os dias chegam às livrarias títulos novos. Entrar numa livraria sem uma mão que nos guie pode ser uma aventura cruel. Claro que quando acertamos numa escolha a alegria é maior — porque se soma à alegria da descoberta. O problema é que as possibilidades de errar são imensas. Com o colapso da crítica literária a minha biblioteca vem-se enchendo de livros de que me desinteressei após ler as primeiras páginas.

“O grande papel da crítica é apontar caminhos”, disse ainda Miguel Sanches Neto. Ao que João Pedro George, na sua função discordante, naturalmente discordou, dizendo que a crítica não deve ser pedagógica. Deve, claro. Nos jornais ingleses e americanos, nos quais a crítica literária continua a ter bastante espaço, isso sempre foi algo claro. A crítica tem como objetivo iluminar a leitura, ajudar os leitores a fruir os livros.

Para um escritor, talvez seja ainda mais importante. A ideia de que um escritor não deve preocupar-se com a forma como a sua obra é recebida sempre me pareceu arrogante e absurda. Se um escritor publica é porque pretende ser lido; se quer ser lido, deve saber escutar quem o lê.

Festivais literários permitem que os escritores se confrontem com os leitores. A opinião dos leitores ajuda os escritores a buscarem caminhos para a própria obra. Tais eventos, porém, não substituem o espaço crítico. O colapso deste pode, sim, vir a empobrecer e degradar a própria literatura.

Não sei se a internet conseguirá algum dia substituir-se aos jornais em papel como novo veículo para a crítica literária e o debate sobre livros. Não vejo, contudo, outro caminho. Há alguns meses noticiei nesta mesma coluna o surgimento na Espanha de um portal literário chamado “Zenda”. Na altura recebi algumas mensagens de escritores brasileiros e portugueses interessados em replicar a iniciativa para o nosso universo. Espero que aconteça.
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* Colunista do Jornal O Globo.
  Fonte http://oglobo.globo.com/cultura/a-literatura-pode-sobreviver-sem-critica-20222639#ixzz4M1WqK3zo

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