Não tinham o direito de se servir de Bob
Dylan para fazer o que fizeram. É só o que o jovem de calções que eu era
e que admirou, bebeu, cheirou, dançou e inalou Bob Dylan tem a dizer.
Querem fazer-me do grande Bob Dylan um pequeno e obscuro escritor.
Bob Dylan é grande por ter sido
transgressor, profeta assimétrico, rebelde contra os conservadores,
rebelde outra vez contra os iconoclastas de feira, mas sobretudo por ter
marcado a música popular do século XX. Usou para isso palavras e
escreveu-as, à mão, à máquina, para aí num Remington de escritor.
Ultimamente num laptop, quem sabe. Mas as grandes e
maravilhosas palavras que escreveu, escreveu-as para uma arquitectura
que envolve sons, para uma construção a que chamamos música. Soprou
palavras e as palavras mudaram um tempo. Em cima de um palco incendiou
um tempo. Não dentro de um livro.
Eu bem sei que, hoje, a um homem já não
se chama um homem, a uma mulher já não se chama uma mulher, a nada se
chama nada, porque a tudo se chama tudo. Confundem-se as estradas. Mas
Bob Dylan caminhou tanto na mesma estrada que merece que dela se diga o
nome. A enigmática estrada da Literatura não foi a estrada de Dylan.
Porque há uma estrada da Literatura: faz-se escrevendo para o papel,
para a publicação em páginas, para a emergência das palavras numa folha
de papel, criando tessituras dramáticas que só existem nessa forma
autónoma e só nessa forma específica, de papel e letras, geram o
mistério de um inexplicável tumulto emocional. Alfabeto e lábios
imóveis, um par de nervosos olhos que lê, são essas as loucas
ferramentas dessa nação. A Literatura é uma imensa montanha com 25
séculos e tem uma tradição – ó raio de palavra que me saíste
descomandada e ainda me vais perder!
A arte de Dylan é feita de som, com
fúria ou sem fúria. A arte pela qual lhe deram, hoje, o Nobel é feita do
silêncio íntimo de uma página de papel. Mesmo os silêncios da música de
Dylan, na tradição de todos os silêncios da música, são distintos do
silêncio da palavra cativa do papel. E é essa diferença entre os
silêncios que faz a grandiosidade da tradição de tantas artes. São
diferentes, mas se as chamarmos pelo nome, elas vêm. Procuram o mesmo
instante, têm a mesma aspiração de sublime ou de caos, uma danada
vontade de beleza, destruição e eternidade, mas são diferentes: uma, a
Música; outra, a Literatura; outra, a Pintura. Cada uma com o seu
silêncio, nem o silêncio da Arquitetura rima com os silêncios das
outras.
Dylan escreveu. Escreveu contra a morte,
contra o esquecimento, como todos os escritores, Mas escreveu numa
barca de Caronte de cordas e percussão, de graves e agudos. A épica
montanha que se chama Literatura, do alto dos seus 25 séculos, dispersa
em epopeias ou elegias, lendas e narrativas, romances e haikus, odes ou
epigramas, tem outra identidade. E não me venham com a conversa de que
eu estou a levantar barreiras ou compartimentos estanques. Não é dizendo
que a Literatura é o que não é, que se lhe renova a grandeza. Ou, nome
que parece que foi usado, a universalidade.
Talvez um dia o mar desfaça e arraste essa montanha a que um dia chamámos Literatura – how many years can a mountain exist / Before it is washed to the sea?
Não devia é o Prémio Nobel da Literatura ter atirado, como uma pequena
vaga, Bob Dylan contra a montanha. Ele não se chama, nunca se chamará,
Nob Dylan.
---------------
* Escritor português.
Fonte: Site português: http://www.escreveretriste.com/2016/10/em-defesa-de-bob-dylan/13/10/2016
Exatamente!
ResponderExcluir