João Carlos Brum Torres*
1/
Em O Conflito das Faculdades, depois de perguntar Se estará o gênero humano em constante progresso para o melhor[1], Kant acrescenta que só se poderá responder positivamente a essa interrogação se a experiência nos apresentar “um acontecimento que aponte”, ainda que “de modo indeterminado quanto ao tempo“, nossa “aptidão para sermos causa do progresso“, permitindo, assim, “inferir a progressão para o melhor (….).”[2] Um tal acontecimento, acrescenta Kant, deverá ser tido então “como signo histórico“, um signum rememorativum, demonstrativum, prognostikon”.[3]
Pois bem, o que estou querendo sugerir é que, mesmo sem ter a
pretensão de elevar uma constitucionalmente ordinária eleição
presidencial nos Estados Unidos à dignidade de um signo histórico,
cujas altíssimas exigências para qualificação foram parametrizadas pela
escolha de Kant de ter a Revolução francesa como exemplo, não tenho
dúvida de que o que está a ocorrer na conjuntura política americana é,
pelo menos, um signo histórico de segundo grau, pois nada parece ser
mais importante na cena internacional do que o que ali se está a
testemunhar.
A plausibilidade dessa avaliação se deixa perceber mesmo neste nosso
novo mundo de informações massivas, cuja multiplicação exponencial se
acumula como se acumulam esses montes de escombros à vista dos quais já
não se pode reconhecer a fachada das edificações aluídas. Mesmo assim,
mesmo em meio a essa imensa massa de informações instantâneas, logo
transformadas em detritos midiáticos, a importância do que está ali em
questão não deixa de sobressair. E os Sábios do século XXI ─ os
jornalistas que tudo sabem, os economistas que de tudo entendem e os
macro gestores que a tudo administram ─ não deixam de se aperceber de
que há algo de insólito e de inesperado acontecendo nos Estados Unidos e
também no mundo: algo perigoso com o qual é preciso preocupar-se e,
sobretudo, posicionar-se.
Para os mais lúcidos dentre esses novos sábios (é verdade que neste
nosso Brasil de hoje menos encontradiços do que seria de esperar, seja
porque a atenção a nossas muito graves questões domésticas lhes rouba o
tempo para prestar atenção ao que ocorre alhures, seja por um evidente e
inegável atraso de compreensão e agenda do que globalmente mais
importa) a questão central da conjuntura internacional é que a
possibilidade da vitória de Donald Trump é avaliada como a certeza de
uma regressão histórica, de um retorno às
condições de organização econômica, política e social do mundo vigentes
antes do grande avanço da globalização ocorrida nos últimos 40 anos. O
que, para ficar com a terminologia de inspiração kantiana com que
comecei, implicaria que estaríamos sim diante da iminência de
constituição de um novo signo histórico, ainda
que, segundo a lição vinda da velha Königsberg, muito impropriamente,
pois assim não deveriam ser classificados eventos de caráter negativo.
2/
Seja como for, o problema com tais análises não é que sejam
redondamente falsas, porque evidentemente não são. As falhas que as
fragilizam são outras. De um lado o falacioso aspecto da ignoratio elenchi,
uma descrição do fenômeno da globalização que a vê iluminada pelo sol
do meio dia e, assim, sem sombras. De outro, a superficialidade, uma
ignorância fundamental da política, mas, ainda mais fundamentalmente, do
político, do político enquanto
dimensão constitutiva da ordem social; de toda ordem social. Por fim, e é
onde se encontra a explicação para muito desses desvios de análise e
encurtamento da visão: o viés, a parcialidade, o fato de que as mais
lúcidas dessas análises são atos de militância, de engajamento na defesa
do que é tomado sem hesitações como extraordinários avanços, conquistas
de inaudito valor, que precisam a qualquer custo ser preservadas do
atraso histórico.
3/
Não há como me estender sobre o caráter arbitrariamente seletivo
desses retratos encomiásticos da globalização, mas, para dar uma ideia
geral dessas distorções do retratado, baste aqui a menção aos elementos
factuais arrolados a seguir. Em primeiro lugar a omissão sistemática da
desarticulação de padrões históricos de distribuição regional das
atividades econômicas ─ o que os franceses chamam de aménagement du territoire
─ cujo perfil atual caoticamente combina os bolsões de desocupação nas
muitas regiões precipitadas em decadência profunda, dos quais Detroit é o
exemplo maior, com a emergência de poucos novos polos dinâmicos, como
antipodamente se vê no Vale do Silício.
Também imperdoavelmente descontado é o alusivo tom das raras menções
aos enormes impactos no emprego e nas condições de vida das classes
trabalhadoras, inclusive nos ditos segmentos de colarinho branco,
provocado pela transformação da Ásia em base manufatureira do mundo, que
teve como fortíssimo efeito colateral, conforme corretamente apontado
por Trump, grande desindustrialização nos países centrais, notadamente
nos Estados Unidos. A omissão mais grave tem sido, porém, a minimização
sistemática do imenso processo de concentração de capital e de
incremento acelerado dos níveis de desigualdade econômica nos países
centrais em geral, que, no caso dos Estados Unidos, o Senador Sanders
ilustrou lembrando o escandaloso fato de que o estrato dos 0,10% mais
ricos da população americana tem uma riqueza equivalente a dos 90% de
menor renda, ainda mais surpreendentemente cruel sendo o estado dessa
relação no plano internacional, como evidenciado na informação do mesmo
Sanders, com base em dados do Crédit Suisse e da Forbes,
de que não mais do que 80 super-ricos do mundo detém um patrimônio
equivalente ao possuído pelo contingente de 3,5 bilhões de pessoas
integrantes do estrato mais pobre da população terrestre!
Contudo, para explicação do que há de curto nos comentários em que se
avalia o que, para o mundo todo, está em jogo na eleição americana o
mais importante não é essa estrategicamente omissiva defesa dos prêmios
da globalização. Antes, como dito acima, a incapacidade de enxergar a política,
de ver que os progressos em produtividade, em inovações, em
constituição de um sistema universal de trocas, de maximização do
aproveitamento de vantagens comparativas ─ vantagens de conhecimentos,
de recursos naturais, de diferenciais de salários ─ está se chocando com
as condições e planos de vida dos indivíduos reais, com as profissões
concretas, com os assentamentos geográficos determinados, com as
irredutíveis diferenças culturais, com as tradições nacionais e
regionais e sua expressão institucional em províncias, estados federados
e Estados nacionais, com as enormes diferenças de renda, oportunidades e
estabilidade social e suas consequências nos deslocamentos físicos das
pessoas no mundo, bem como, por último mas não com menor importância,
com a inevitável separação das religiões.
O que é dizer, contrariamente ao grande pressuposto implícito das
concepções objetivistas e reificadas do desenvolvimento histórico ─ das
quais um exemplo conspícuo é o do neoliberalismo, o vestido ideológico
que cobriu as vergonhas do processo de globalização ─ que há um nível
básico da vida em sociedade, frequentemente invisível, em que os
indivíduos, com seus interesses e crenças particulares, fazem valer sua
condição de substrato ontológico último de absolutamente tudo que
acontece na esfera humana. E é exatamente a partir desse plano que cabe
falar no político, neste nível de organização dos espaços societários
em que a identidade de um conjunto social se autodetermina, seja por via
de dispositivos representativos, seja por mudanças ativas ou mesmo
moleculares e passivas, como dizia Gramsci, no modo como a sociedade
avalia a si própria. Um referendo como o que decidiu a saída do Reino
Unido da União Europeia, uma disputa como a que tem lugar na eleição
americana são casos claros do modo como conformações sociais
inercialmente estratificadas são chamadas de volta ao espaço das
decisões fundamentais, provocando alterações históricas de grande monta,
como começa a ser possível divisar na configuração do quadro
político-econômico mundial de nossos dias.
4/
Bem entendido, na história não há jogo jogado e, mais concretamente,
resta por ver se isso que chamei de choque, de colisão vai produzir
alguma modificação nas tendências de fundo do desenvolvimento histórico
dos últimos quarenta anos. Trump e os enormes índices de aprovação de
sua proposta de guinada para um populismo de direita são indicadores de
que a batida é muito potente; por outro lado, a extraordinária força de
uma inédita campanha de esquerda no coração de um grande partido
americano, a campanha de Bernie Sanders, não o é menos, assim como
tampouco é insignificante os 14% de intenções de voto em um candidato
independente, libertário, Gary Johnson. Mas, mesmo se Hillary Clinton
for vencedora e as tendências de conservação do status quo mundial
prevalecerem, há elementos contextuais que sugerem que não se pode
esperar que tudo vá continuar do mesmo modo no quadro interno dos
Estados Unidos e na conformação do cenário internacional dos próximos
anos.
É que se somam às novidades da conjuntura americana grandes eventos
paralelos que também justificam pensar que está chegando ao fim a
crença, quase unânime, de que o processo de globalização e as posições
neoliberais que lhes são associadas reinam sobre a história do mesmo
modo como as leis da física regulam os processos naturais. Essa é a
indicação dada pela saída do Reino Unido da União Europeia, pelo
crescimento das barreiras à livre movimentação internacional das pessoas
em decorrência dos grandes fluxos migratórios gerados pelas guerras no
Iraque e na Síria, bem como a multiplicação de atos de terrorismo nos
centros do mundo desenvolvido, processos, estes últimos, que têm sido
acompanhados, como é notório, por um grande aumento dos partidos
nacionalistas de extrema direita.
A evidência desse cenário de abalo, dessa conjuntura em que o modo de
organizar a economia, a sociedade e a política mundial nos últimos
quarenta anos estala por todos os lados ─ à direita, à esquerda e mesmo
no centro ─ não é por certo suficiente para conferir às eleições
americanas, mesmo se acompanhada das demais evidências que acabamos de
referir, o caráter de um signo histórico no
sentido dado por Kant à expressão, pois sua lição é que o caráter
distintivo dos acontecimentos a que esse conceito faz referência requer
que estes sejam fortes o bastante para apontar, ainda que “de modo indeterminado quanto ao tempo“, para nossa “aptidão a sermos causa do progresso”,
como explicado no texto que citamos ao começar. O que é prudentemente
reconhecer que não há garantia alguma de que a reestruturação das
relações internacionais que ora se anuncia se faça no rumo do progresso,
o crescimento dos partidos e opiniões de extrema direita no contexto
europeu sugerindo mesmo a conclusão oposta. Porém, não é menos verdade
que tampouco é certo que essas tendências virão a prevalecer e que a
relação de forças que temos hoje aponte inexoravelmente para o
regressivo passo de preservação de formas de sociabilidade injustas,
profundamente desequilibradas e que já não têm nada a nos prometer.
Ora, essa indeterminação, se olharmos com mais atenção o modo como Kant introduz o conceito de signo histórico,
não nos deve inclinar ao abandono da possibilidade de aplicar esse
conceito aos acontecimentos em meio aos quais nos encontramos, pois é
preciso lembrar que, segundo a lição do filósofo, não são os eventos em e
por si próprios que possuem o caráter de signo, mas antes sua relação com nossa capacidade de sermos causas do progresso. De modo que ser signo do progresso
é uma propriedade relacional, cuja constituição depende de nossa
capacidade de conferir aos eventos em que estamos envolvidos os
caracteres de serem rememorativos, demonstrativos e prognósticos.
Sendo assim, o que nos cabe concluir é que está no domínio da vontade
dos homens vir a fazer com que certas mudanças, que a superveniência de
certos eventos, se constituam em um signo histórico.
Tudo bem pesado, creio que a lição a tirar do que está em questão no
dinâmico desdobramento da situação histórica atual é a de que se
encontra, irrecusavelmente, nas mãos das gerações presentes fazer com
que as mudanças que se avizinham no padrão das relações internacionais
não nos levem a uma espécie de nova balcanização do mundo, nem congelem o
quadro de instabilidade e profunda desigualdade econômica e social que
hoje vemos por toda parte. Nosso desafio, nossa responsabilidade e nossa
tarefa é antes a de converter os abalos, as incertezas atuais no
primeiro momento de constituição do sinal histórico que estamos a
antever, o inicial passo adiante na direção da criação no correr deste
jovem século de uma sociedade mundial ao mesmo tempo dinâmica, inovadora
e também diversa, plural e, sobretudo, mais justa e esclarecida, uma
sociedade mais generalizadamente capaz de oferecer aos homens condições
de vida dignas e as bases materiais e culturais indispensáveis para uma
vida mais feliz. Desiderato cuja factibilidade, como todos sabemos, tem
como absolutamente indispensável base a prevalência da paz, seja nos
contextos nacionais e regionais, seja, ainda mais importantemente, no
plano das relações internacionais.
Este, pois, é o conteúdo do signo histórico que precisamos ao mesmo
tempo antever e constituir ao ensejo desta inequívoca abertura na
couraça que até agora parecia blindar inexpugnavelmente quaisquer
mudanças no processo de globalização e em suas não menos reforçadas
contrapartes políticas e ideológicas. A verdade é que a crise em que
hoje nos encontramos é uma oportunidade de revisão de nosso destino, uma
oportunidade cujas virtualidades precisamos entender e explorar e a
cujo endereçamento para o melhor quem quer que tenha responsabilidades
de qualquer escala neste nosso complexo e diverso mundo não pode deixar
de lutar.
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* Professor no Departamento de Filosofia da Universidade de Caxias do Sul e professor Titular aposentado da UFRGS.
[1] Logo depois de observar que a “mescla do bem e do mal na disposição” dos homens, ao mesmo tempo em que nos proibe atribuir-lhes “uma vontade inata e invariavelmente boa“, por isso mesmo também nos impede de “vaticinar com certeza a progressão de sua espécie para o melhor“. V. Immnuel Kant, O Conflito das Faculdades, trad. de A. Morão, Edições 70, Lisboa, 1993, p. 100-101. (AA 7: 84-85).
[2] Id.ib.
[3] Id., 101 (AA, 7: 84).
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2016/10/9189/ensaio-sobre-as-eleicoes-dos-estados-unidos-no-caderno-de-sabado/
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