domingo, 23 de outubro de 2016

AS ELEIÇÕES AMERICANAS DE 2016 COMO SINAL HISTÓRICO

João Carlos Brum Torres*

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Em O Conflito das Faculdades, depois de perguntar Se estará o gênero humano em constante progresso para o melhor[1], Kant acrescenta que só se poderá responder positivamente a essa interrogação se a experiência nos apresentar “um acontecimento que aponte, ainda que “de modo indeterminado quanto ao tempo“, nossa “aptidão para sermos causa do progresso“, permitindo, assim, “inferir a progressão para o melhor (….).”[2] Um tal acontecimento, acrescenta Kant, deverá ser tido então “como signo histórico“, um signum rememorativum, demonstrativum, prognostikon”.[3]

Pois bem, o que estou querendo sugerir é que, mesmo sem ter a pretensão de elevar uma constitucionalmente ordinária eleição presidencial nos Estados Unidos à dignidade de um signo histórico, cujas altíssimas exigências para qualificação foram parametrizadas pela escolha de Kant de ter a Revolução francesa como exemplo, não tenho dúvida de que o que está a ocorrer na conjuntura política americana é, pelo menos, um signo histórico de segundo grau, pois nada parece ser mais importante na cena internacional do que o que ali se está a testemunhar.

A plausibilidade dessa avaliação se deixa perceber mesmo neste nosso novo mundo de informações massivas, cuja multiplicação exponencial se acumula como se acumulam esses montes de escombros à vista dos quais já não se pode reconhecer a fachada das edificações aluídas. Mesmo assim, mesmo em meio a essa imensa massa de informações instantâneas, logo transformadas em detritos midiáticos, a importância do que está ali em questão não deixa de sobressair. E os Sábios do século XXI ─ os jornalistas que tudo sabem, os economistas que de tudo entendem e os macro gestores que a tudo administram ─ não deixam de se aperceber de que há algo de insólito e de inesperado acontecendo nos Estados Unidos e também no mundo: algo perigoso com o qual é preciso preocupar-se e, sobretudo, posicionar-se.

Para os mais lúcidos dentre esses novos sábios (é verdade que neste nosso Brasil de hoje menos encontradiços do que seria de esperar, seja porque a atenção a nossas muito graves questões domésticas lhes rouba o tempo para prestar atenção ao que ocorre alhures, seja por um evidente e inegável atraso de compreensão e agenda do que globalmente mais importa) a questão central da conjuntura internacional é que a possibilidade da vitória de Donald Trump é avaliada como a certeza de uma regressão histórica, de um retorno às condições de organização econômica, política e social do mundo vigentes antes do grande avanço da globalização ocorrida nos últimos 40 anos. O que, para ficar com a terminologia de inspiração kantiana com que comecei, implicaria que estaríamos sim diante da iminência de constituição de um novo signo histórico, ainda que, segundo a lição vinda da velha Königsberg, muito impropriamente, pois assim não deveriam ser classificados eventos de caráter negativo.

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Seja como for, o problema com tais análises não é que sejam redondamente falsas, porque evidentemente não são. As falhas que as fragilizam são outras. De um lado o falacioso aspecto da ignoratio elenchi, uma descrição do fenômeno da globalização que a vê iluminada pelo sol do meio dia e, assim, sem sombras. De outro, a superficialidade, uma ignorância fundamental da política, mas, ainda mais fundamentalmente, do político, do político enquanto dimensão constitutiva da ordem social; de toda ordem social. Por fim, e é onde se encontra a explicação para muito desses desvios de análise e encurtamento da visão: o viés, a parcialidade, o fato de que as mais lúcidas dessas análises são atos de militância, de engajamento na defesa do que é tomado sem hesitações como extraordinários avanços, conquistas de inaudito valor, que precisam a qualquer custo ser preservadas do atraso histórico.

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Não há como me estender sobre o caráter arbitrariamente seletivo desses retratos encomiásticos da globalização, mas, para dar uma ideia geral dessas distorções do retratado, baste aqui a menção aos elementos factuais arrolados a seguir. Em primeiro lugar a omissão sistemática da desarticulação de padrões históricos de distribuição regional das atividades econômicas ─ o que os franceses chamam de aménagement du territoire ─ cujo perfil atual caoticamente combina os bolsões de desocupação nas muitas regiões precipitadas em decadência profunda, dos quais Detroit é o exemplo maior, com a emergência de poucos novos polos dinâmicos, como antipodamente se vê no Vale do Silício.

Também imperdoavelmente descontado é o alusivo tom das raras menções aos enormes impactos no emprego e nas condições de vida das classes trabalhadoras, inclusive nos ditos segmentos de colarinho branco, provocado pela transformação da Ásia em base manufatureira do mundo, que teve como fortíssimo efeito colateral, conforme corretamente apontado por Trump, grande desindustrialização nos países centrais, notadamente nos Estados Unidos. A omissão mais grave tem sido, porém, a minimização sistemática do imenso processo de concentração de capital e de incremento acelerado dos níveis de desigualdade econômica nos países centrais em geral, que, no caso dos Estados Unidos, o Senador Sanders ilustrou lembrando o escandaloso fato de que o estrato dos 0,10% mais ricos da população americana tem uma riqueza equivalente a dos 90% de menor renda, ainda mais surpreendentemente cruel sendo o estado dessa relação no plano internacional, como evidenciado na informação do mesmo Sanders, com base em dados do Crédit Suisse e da Forbes, de que não mais do que 80 super-ricos do mundo detém um patrimônio equivalente ao possuído pelo contingente de 3,5 bilhões de pessoas integrantes do estrato mais pobre da população terrestre!

Contudo, para explicação do que há de curto nos comentários em que se avalia o que, para o mundo todo, está em jogo na eleição americana o mais importante não é essa estrategicamente omissiva defesa dos prêmios da globalização. Antes, como dito acima, a incapacidade de enxergar a política, de ver que os progressos em produtividade, em inovações, em constituição de um sistema universal de trocas, de maximização do aproveitamento de vantagens comparativas ─ vantagens de conhecimentos, de recursos naturais, de diferenciais de salários ─ está se chocando com as condições e planos de vida dos indivíduos reais, com as profissões concretas, com os assentamentos geográficos determinados, com as irredutíveis diferenças culturais, com as tradições nacionais e regionais e sua expressão institucional em províncias, estados federados e Estados nacionais, com as enormes diferenças de renda, oportunidades e estabilidade social e suas consequências nos deslocamentos físicos das pessoas no mundo, bem como, por último mas não com menor importância, com a inevitável separação das religiões.

O que é dizer, contrariamente ao grande pressuposto implícito das concepções objetivistas e reificadas do desenvolvimento histórico ─ das quais um exemplo conspícuo é o do neoliberalismo, o vestido ideológico que cobriu as vergonhas do processo de globalização ─ que há um nível básico da vida em sociedade, frequentemente invisível, em que os indivíduos, com seus interesses e crenças particulares, fazem valer sua condição de substrato ontológico último de absolutamente tudo que acontece na esfera humana.  E é exatamente a partir desse plano que cabe falar no político, neste nível de organização dos espaços societários em que a identidade de um conjunto social se autodetermina, seja por via de dispositivos representativos, seja por mudanças ativas ou mesmo moleculares e passivas, como dizia Gramsci, no modo como a sociedade avalia a si própria. Um referendo como o que decidiu a saída do Reino Unido da União Europeia, uma disputa como a que tem lugar na eleição americana são casos claros do modo como conformações sociais inercialmente estratificadas são chamadas de volta ao espaço das decisões fundamentais, provocando alterações históricas de grande monta, como começa a ser possível divisar na configuração do quadro político-econômico mundial de nossos dias.

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Bem entendido, na história não há jogo jogado e, mais concretamente, resta por ver se isso que chamei de choque, de colisão vai produzir alguma modificação nas tendências de fundo do desenvolvimento histórico dos últimos quarenta anos. Trump e os enormes índices de aprovação de sua proposta de guinada para um populismo de direita são indicadores de que a batida é muito potente; por outro lado, a extraordinária força de uma inédita campanha de esquerda no coração de um grande partido americano, a campanha de Bernie Sanders, não o é menos, assim como tampouco é insignificante os 14% de intenções de voto em um candidato independente, libertário, Gary Johnson. Mas, mesmo se Hillary Clinton for vencedora e as tendências de conservação do status quo mundial prevalecerem, há elementos contextuais que sugerem que não se pode esperar que tudo vá continuar do mesmo modo no quadro interno dos Estados Unidos e na conformação do cenário internacional dos próximos anos.

É que se somam às novidades da conjuntura americana grandes eventos paralelos que também justificam pensar que está chegando ao fim a crença, quase unânime, de que o processo de globalização e as posições neoliberais que lhes são associadas reinam sobre a história do mesmo modo como as leis da física regulam os processos naturais. Essa é a indicação dada pela saída do Reino Unido da União Europeia, pelo crescimento das barreiras à livre movimentação internacional das pessoas em decorrência dos grandes fluxos migratórios gerados pelas guerras no Iraque e na Síria, bem como a multiplicação de atos de terrorismo nos centros do mundo desenvolvido, processos, estes últimos, que têm sido acompanhados, como é notório, por um grande aumento dos partidos nacionalistas de extrema direita.

A evidência desse cenário de abalo, dessa conjuntura em que o modo de organizar a economia, a sociedade e a política mundial nos últimos quarenta anos estala por todos os lados ─ à direita, à esquerda e mesmo no centro ─ não é por certo suficiente para conferir às eleições americanas, mesmo se acompanhada das demais evidências que acabamos de referir, o caráter de um signo histórico no sentido dado por Kant à expressão, pois sua lição é que o caráter distintivo dos acontecimentos a que esse conceito faz referência requer que estes sejam fortes o bastante para apontar, ainda que “de modo indeterminado quanto ao tempo“, para nossa “aptidão a sermos causa do progresso”, como explicado no texto que citamos ao começar. O que é prudentemente reconhecer que não há garantia alguma de que a reestruturação das relações internacionais que ora se anuncia se faça no rumo do progresso, o crescimento dos partidos e opiniões de extrema direita no contexto europeu sugerindo mesmo a conclusão oposta. Porém, não é menos verdade que tampouco é certo que essas tendências virão a prevalecer e que a relação de forças que temos hoje aponte inexoravelmente para o regressivo passo de preservação de formas de sociabilidade injustas, profundamente desequilibradas e que já não têm nada a nos prometer.

Ora, essa indeterminação, se olharmos com mais atenção o modo como Kant introduz o conceito de signo histórico, não nos deve inclinar ao abandono da possibilidade de aplicar esse conceito aos acontecimentos em meio aos quais nos encontramos, pois é preciso lembrar que, segundo a lição do filósofo, não são os eventos em e por si próprios que possuem o caráter de signo, mas antes sua relação com nossa capacidade de sermos causas do progresso. De modo que ser signo do progresso é uma propriedade relacional, cuja constituição depende de nossa capacidade de conferir aos eventos em que estamos envolvidos os caracteres de serem rememorativos, demonstrativos e prognósticos. Sendo assim, o que nos cabe concluir é que está no domínio da vontade dos homens vir a fazer com que certas mudanças, que a superveniência de certos eventos, se constituam em um signo histórico.

Tudo bem pesado, creio que a lição a tirar do que está em questão no dinâmico desdobramento da situação histórica atual é a de que se encontra, irrecusavelmente, nas mãos das gerações presentes fazer com que as mudanças que se avizinham no padrão das relações internacionais não nos levem a uma espécie de nova balcanização do mundo, nem congelem o quadro de instabilidade e profunda desigualdade econômica e social que hoje vemos por toda parte. Nosso desafio, nossa responsabilidade e nossa tarefa é antes a de converter os abalos, as incertezas atuais no primeiro momento de constituição do sinal histórico que estamos a antever, o inicial passo adiante na direção da criação no correr deste jovem século de uma sociedade mundial ao mesmo tempo dinâmica, inovadora e também diversa, plural e, sobretudo, mais justa e esclarecida, uma sociedade mais generalizadamente capaz de oferecer aos homens condições de vida dignas e as bases materiais e culturais indispensáveis para uma vida mais feliz. Desiderato cuja factibilidade, como todos sabemos, tem como absolutamente indispensável base a prevalência da paz, seja nos contextos nacionais e regionais, seja, ainda mais importantemente, no plano das relações internacionais.

Este, pois, é o conteúdo do signo histórico que precisamos ao mesmo tempo antever e constituir ao ensejo desta inequívoca abertura na couraça que até agora parecia blindar inexpugnavelmente quaisquer mudanças no processo de globalização e em suas não menos reforçadas contrapartes políticas e ideológicas. A verdade é que a crise em que hoje nos encontramos é uma oportunidade de revisão de nosso destino, uma oportunidade cujas virtualidades precisamos entender e explorar e a cujo endereçamento para o melhor quem quer que tenha responsabilidades de qualquer escala neste nosso complexo e diverso mundo não pode deixar de lutar.
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* Professor no Departamento de Filosofia da Universidade de Caxias do Sul e professor Titular aposentado da UFRGS.
[1] Logo depois de observar que a “mescla do bem e do mal na disposição” dos homens, ao mesmo tempo em que nos proibe atribuir-lhes “uma vontade inata e invariavelmente boa“, por isso mesmo também nos impede de “vaticinar com certeza a progressão de sua espécie para o melhor“. V. Immnuel Kant, O Conflito das Faculdades, trad. de A. Morão, Edições 70, Lisboa, 1993, p. 100-101. (AA 7: 84-85).
[2] Id.ib.
[3] Id., 101 (AA, 7: 84).

Fonte:  http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2016/10/9189/ensaio-sobre-as-eleicoes-dos-estados-unidos-no-caderno-de-sabado/

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