Juremir Machado da Silva*
Romancista, jornalista e ensaísta, membro do Conselho
Deliberativo do CNPq, professor emérito da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), docente associado da Universidade de Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) e ex-presidente da Biblioteca Nacional, considerado um
dos mais importantes teóricos da comunicação e da mídia no Brasil, tendo
publicado livros de referência como Antropológicas do espelho – uma teoria da comunicação linear e em rede, A máquina de Narciso, Sociedade, Mídia e Violência, A Comunicação do Grotesco: introdução à Cultura de Massa no Brasil, O Monopólio da Fala e A narração do fato: notas para uma teoria do acontecimento,
natural de Feira de Santana, Muniz Sodré de Araújo Cabral, 74 anos,
amigo de Gilberto Gil e de outros velhos novos baianos, transita por
muitos mundos intelectuais. Ele veio a Porto Alegre palestrar, na última
segunda-feira, em homenagem aos 50 anos da Famecos, a faculdade de
comunicação da PUCRS. Nesta entrevista para o Caderno de Sábado, ele
disseca o Brasil e fala do seu último livro de ficção, o romance Bagulho.
Caderno de Sábado – Como é ser intelectual no Brasil de hoje
para um baiano e negro que escalou todos os degraus? Houve preconceito?
Muniz Sodré – Não. Diretamente, na universidade,
não. Eu mostro a radicalidade do meu pertencimento, da minha
ancestralidade e da minha negritude. Quando sofri preconceito, foi em
redação de jornal. Por exemplo, na editora Bloch. É difícil dizer isso,
pois fui chefe de reportagem e redator da revista Manchete. Mas foi um
percurso. Em me lembro de um cara negro, negro, negro, Tales Batista,
que já morreu, sendo rejeitado por ser preto demais. Era mais sentido do
que explicitado, mais em cima da minha baianidade e da nordestinidade
do que da cor. O baiano gosta de fazer discurso, fala “que dia
plúmbeo”. Entrei no Jornal do Brasil pelas mãos do Alberto Dines.
Queriam para a pesquisa alguém que traduzisse do inglês e do francês
para o lugar do Fernando Gabeira. Falei que eu traduzia também do alemão
e do russo. Eles me testaram. Eu era muito melhor em línguas do que
hoje.
CS – Quantas línguas?
Muniz Sodré – Eu falo sete línguas: francês, inglês,
alemão, italiano, espanhol, russo e sou iniciado em árabe. Mas também
conheço latim e falo o crioulo de Cabo Verde e o iorubá. Dá umas dez.
Mas eu reduzo, quando me perguntam, para não parecer algo espantoso.
Comecei aprendendo alemão com os franciscanos no pelourinho, em
Salvador.
CS – Uma pesquisadora estrangeira disse recentemente que o
Brasil é o país mais racista do mundo. Faz sentido essa afirmação
categórica?
Muniz Sodré – O mais racista, não sei, mas é muito
racista. Trata-se de um racismo diferente, na origem, dos racismo
sul-africano e americano, que eram de segregação e separação de lugares.
O racismo brasileiro foi de segregação durante o período escravista.
Depois, passou a ser um racismo de dominação. Os lugares são sociais,
não físicos. A última demonstração desse racismo foram as manifestações,
nos jornais, entre os quais os do Rio de Janeiro, contra as cotas.
Mexeu muito com a cabeça das pessoas até nas universidades. Jornalistas
brancos rejeitaram as cotas por racismo. As cotas são o tal mal
necessário. O lugar social é estabelecido pela cor da pele. As cotas
colorizaram os espaços colonizados. Até na Bahia, que tem uma população
negra enorme, e talvez seja mais racista que o Rio Grande do Sul. Quando
menino, fui contínuo de banco na Bahia. O diretor da agência não
deixava que negro tocasse no seu aparelho de telefone. Tinha nojo.
Limpava com álcool. Conheci gente em Salvador que fervia fruta tocada
por negro. Esse preconceito a elite baiana ainda tem. Ela se orgulha de
acarajé como elemento de turismo. Precisamos aprender mesmo a respeitar e
a conviver com diferenças.
CS – O Brasil está polarizado em questões de gênero e de racismo?
Muniz Sodré – Quando Benedita da Silva se tornou
governadora do Rio de Janeiro e formou uma equipe com negros, o jornal O
Globo me pediu para fazer um artigo. Queriam que eu dissesse que era
racismo aquilo. Eu disse que aceitava, mas que perguntaria: por que
quando só tem branco não dizem que é racismo? Desistiram do texto.
Existem posições quase automáticas. Nos governos de Lula se
intensificaram as políticas de afirmação social. Eu fui, durante cinco
anos, presidente da Biblioteca Nacional. Gustavo Capanema, no período
Vargas, construiu 700 bibliotecas municipais no país. Eu, a pedido de
Lula e acompanhado de perto por ele, fiz 1800. Não saiu uma só nota na
mídia. Pena que a Biblioteca Nacional perdeu agora parte das suas
atribuições. Passou a ser apenas uma instituição de guarda de livros.
Mas a fala foi liberada. Abriu-se a fala da diversidade de gênero e de
cor. Pode ter recuos. Acho que vai ter. Mas não acaba mais.
CS – Isso aumenta a decepção com a corrupção que atingiu o PT?
Muniz Sodré – Certamente. O maior problema é que
tudo foi feito sem um projeto de nação. O último que tivemos, com viés
na educação, foi de Vargas. Depois disso, Juscelino e os militares
esboçaram algo. A educação é o ponto crucial, mas continua fossilizada.
Os economistas tornaram-se os nossos pedagogos. São ignorantes. Só sabem
de verbas. Aí vem essas reformas, como essa proposta de cima para baixo
por Michel Temer. É ridícula. Uma coisa de técnicos. Os alunos não vão
escolher. Não há avanço. A escola ainda é a do século XIX, reguladora e
prisão. Esse modelo permanece apesar do computador. Haverá uma escola
dos que serão dirigentes e outra dos que serão dirigidos.
CS – Há essa vertente que prega uma “escola sem partido”…
Muniz Sodré – É mais um sintoma da direita
emergente. Esses aí querem uma escola sem partido de esquerda. A escola é
sempre ideológica. A ideologia não está nos conteúdos, mas na forma.
Dizer que os operários devem tomar o poder é considerado ideológico. O
contrário, não. A escola não é lugar de litígio, como a fábrica, mas de
disputa. Há espaço para a fala do outro desde que ela nada possa mudar.
Classifica por classe, cor, gênero e origem. Talvez as novas tecnologias
possam ajudar a transformar isso. As redes sociais estão subutilizadas.
Só servem para fofocas. Precisam mobilizar e incluir.
CS – O livro digital também está subutilizado no Brasil?
Muniz Sodré – O preço do livro é dado pela escala de
produção. Lula baixou impostos para o setor livreiro, mas o preço não
caiu. As tiragens são mínimas. Ninguém quer perder. Editar livro é uma
coisa de coragem. Os e-books seguem a mesma linha. A situação do livro
no Brasil é trágica. Os autores precisam sair do caminho institucional.
CS – Como fazer isso?
Muniz Sodré – O jornal O Globo deu um grande espaço para meu romance Bagulho. É um livro que tem um policial negro. Desestabiliza muito. Eu tenho outro romance, O bicho chegou à Feira,
de 1990. Publiquei pela Francisco Alves. É a história de um capelão que
chega a Feira de Santana em 1964. Alemão, passa a dominar a cidade.
Cortava cabelo de hippie e perseguia os comunistas. Ensinou até como
carregar galinha, com a cabeça para cima. Mobilizei o mito da cidade de
que um dia o bicho chegaria. Fiz o golpe militar chegar a Feira de
Santana enquanto eles esperavam o bicho. Ninguém deu muita bola. Mas
virou o romance da cidade, tem duas teses sobre ele e vai virar história
em quadrinhos. O livro precisa de outro percurso não institucional.
CS – Qual a transformação maior da comunicação nos últimos 50 anos?
Muniz Sodré – A ideia da comunicação se difratou de
tal maneira que do ponto de vista acadêmico se perdeu um pouco o sentido
do conceito. Comunicação tomou o sentido de jornalismo a partir da
escola americana. É um sentido religioso, de communicatio. Em latim, communicatio era outra maneira de dizer societas, que é a sociedade dos homens. Já aquela é articulação do humano com o divino. A internet leva a refletir sobre o fim da societas e sobre o começo de uma communicatio. Ainda está no caos, na transição, mas é promissor. Walter Benjamin fala, em Rua de mão única, numa tecnologia que não seja apenas destrutiva da natureza. Talvez tenhamos isso agora.
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* Jornalista. Escritor.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2016/10/9170/muniz-sodre-o-intelectual-tropical/
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