"É uma luz. Única no fim do longo e escuro túnel que estamos
atravessando. É uma luz misteriosa e brilhante".
Repete duas vezes, em
duas frases, quando fala do Papa Francisco e do encontro de Assis, no mês passado.
A entrevista é de David Perillo, diretor da revista Tracce, publicada por L’Osservatore Romano, 14-10-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
Noventa e um anos no próximo mês, judeu de origem, polonês de
nascimento e cosmopolita por vocação (viveu entre Varsóvia, Londres e
Tel Aviv, antes de radicar-se em Leeds, no Reino Unido), Bauman
é um dos mais famosos intelectuais - e prolíficos - do mundo. Um homem
capaz de fotografar o mundo e seus habitantes, em detalhes, olhar afiado
e, ao mesmo tempo, carregado de empatia. Como o que está dirigindo, há
algum tempo, ao fenômeno da imigração. Melhor ainda, que dirige aos
migrantes, que minam nossas certezas, tornam-se alvo fácil em quem
descarregar a insegurança surda, profunda e impossível de travar com as
soluções propostas por esta política feita de muros e homens fortes.
Vamos começar a partir daí, então. O que é essa "insegurança existencial"? De onde vem?
Kant, o explorador mais incansável dos mistérios da
forma exclusivamente humana de estar no mundo, - a cuja sabedoria, todos
nós, de alguma forma, somos devedores, herdeiros excitados ou
desesperados -, na Crítica da Razão Prática escreveu a célebre frase:
"Duas coisas enchem a mente de maravilha e veneração, sempre novas e
crescentes, quanto mais frequentemente e mais longamente a reflexão se
ocupa delas: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim". O
"céu estrelado" significa aquilo que está além da capacidade humana, da
nossa capacidade de enfrentar; e a "lei moral" indica os dilemas entre
os quais os seres humanos estão condenados a escolher. Porém, mais do
que um século antes dessas palavras, Blaise Pascal
tinha-se aprofundado naquela angustiante e assustadora inadequação:
"Quando considero a curta duração da minha vida, absorvida pela
eternidade que a precede e por aquela que lhe segue, o pequeno espaço
que ocupo e que vejo, mergulhado na imensidão infinita de espaços que
ignoro e que me ignoram, assusto-me e surpreendo-me por ver-me aqui, em
vez de lá, agora ao invés de então. Quem me colocou? Pela vontade de
quem este lugar e este tempo me foram destinados?". Para então chegar à
conclusão: "Sendo incapaz de eliminar a morte, a miséria e a ignorância,
os homens decidiram, para serem felizes, não pensar sobre essas
coisas". O problema é que, à medida que tentamos furiosamente seguir
essa decisão, reflexão e pensamento, eles permanecem teimosamente partes
inevitáveis de nossa condição. Daí a ''insegurança existencial" esculpida de forma indelével na maneira do homem estar no mundo. Este é o lugar de onde vens e do qual não podes escapar.
O primeiro reflexo dessa insegurança é o "medo do outro". O
senhor explicou muito bem por que os “estrangeiros às nossas portas" nos
assustam tanto. Mas, não será por que, no fundo, há também o medo de
interrogarmo-nos sobre nós mesmos? O outro que bate à minha porta
interpela-me inevitavelmente sobre quem sou, que ideia tenho da vida,
dos relacionamentos, sobre o que tem valor ou não... Levantar muros é
também uma forma de escapar destas perguntas?
A sensação de "insegurança" deriva de uma mistura de incerteza e
ignorância: sentimo-nos humilhados, porque inadequados à nossa tarefa, e
o resultado é o colapso da estima e da confiança em nós mesmos. É algo
que afeta a todos. Agora, "o outro" - especialmente aqueles que
classificamos como desconhecidos, estranhos ou estrangeiros - são
particularmente fecundos em reforçar uma sensação como essa.
Por quê?
O que transforma estrangeiros em perigos - perigos assustadores,
sinistros, exatamente devido à sua repreensível impossibilidade de serem
identificados - é a ausência do conhecimento real de
suas intenções e do seu código de conduta. Faltam-nos as habilidades
necessárias para enfrentá-los adequadamente e responder às suas jogadas.
Além disso, há também aquele outro fator crucial que o senhor observava
antes. Os estrangeiros – sobretudo os migrantes, os recém-chegados -
tendem a questionar o que "nós", os nativos, somos, ao menos no reino
das opiniões (ou seja, querem saber no que cremos, mas sobre isso nunca
refletimos). Eles nos estimulam, na verdade, quase nos forçam a explicar
como perseguimos nossos objetivos de vida. Para dar as razões das
convicções e comportamentos que nos parecem óbvios, evidentes, e por
isso autoexplicativos. Ao fazer isso, portanto, nos atrapalham.
Perturbam nossa paz espiritual e afetam nossa segurança, tão necessária
para uma ação decisiva. Quantos de nós gostaríamos de desfrutar de uma
tal situação?
Em "Conversazioni su Dio e l’uomo”, o senhor disse que "o
momento em que nasce a incerteza é o momento em que nasce a moralidade,
e, o eu moral, consciente de caminhar sobre uma corda bamba. Condenando
os homens a escolher, (...) Deus os convida a tomar parte na obra da
criação". Não é que, diante de problemas tão grandes, revela-se também
que temos medo deste "convite"? Em essência, estamos com medo da nossa
liberdade? E, se sim, por quê?
É uma velha e longa história... Talvez até mesmo uma constante, visto
que as rebeliões contra a liberdade, afinal, se repetem com
surpreendente regularidade; parece impossível, mas toda intrépida luta contra a escravidão, a opressão e a restrição da liberdade,
mais cedo ou mais tarde, inevitavelmente, empurram o pêndulo das
disposições e paixões para uma virada de 180 graus, aumentando o número
daqueles que estão dispostos a aceitar – até mesmo a querer - o advento
de nova "repressão". Assim, as portas fechadas tendem a aumentar. Este
fenômeno foi descrito, em detalhes, por Erich Fromm, em seu clássico Fuga da Liberdade.
Hoje - pelo menos aqui no Ocidente, e entre as gerações felizes por
nunca terem provado, em primeira pessoa, das delícias de uma vida sob o
peso do despotismo e da tirania - estamos vivendo um outro giro
semelhante do pêndulo, desencadeado pelos mesmos fatores do passado. O
fato é que a liberdade só pode vir casada com o peso e o risco da
responsabilidade. Para um número crescente de pessoas incitadas,
convencidas e instigadas por um número crescente de aspirantes (e
frequentemente bem sucedidos) caçadores de voto, como os vários Trump, Marianne Le Pen, Orban ou Fico,
parece um bom negócio trocar o direito de escolher, ligado à
responsabilidade, pesado demais para ficar muito tempo sobre os ombros
de um indivíduo, por cortes na ordem das liberdades pessoais. Quanto
mais fracos os ombros de cada indivíduo, mais pesadas são as
responsabilidades descarregadas sobre ele, com fenômenos como a
privatização e a mercantilização das funções sociais, patrocinadas pelo
Estado e reforçadas pelo mercado. O resultado que podemos esperar é o
crescimento de uma multidão de "homens e mulheres fortes", que
vislumbram a oportunidade de ganhos eleitorais, e não esperam outra
coisa senão ceder a essa tentação.
É um grande risco...
A verdade é que cresce, sempre mais, o número de pessoas expostas,
todos os dias, aos riscos, às armadilhas e às emboscadas de uma vida
vivida sob as regras do mercado, cuja nostalgia do "Paraíso perdido"
coincide com o libertar-se de ter que escolher; mais precisamente, com o
cancelamento do dever de cuidar e de contribuir para o bem-estar do
mundo, e pela hospitalidade dos seres humanos que aqui vivem. Mas, o
sonho de seguir o exemplo de Pôncio Pilatos,
e lavar as mãos na batalha entre o bem e o mal, moral e indiferença,
verdade e falsidade, significa renunciar a dignidade humana. Ou seja
(como nos foi ensinado por Kant e por Pico della Mirandola),
renunciar exatamente àquele preciso "convite de Deus", dirigido
exclusivamente à espécie humana, de participar na conclusão do ato da
criação. E que, afinal das contas, é o motivo pelo qual foi dado aos
homens a razão, a sociabilidade e a liberdade de escolha.
O que pode superar o medo?
Certamente, não objetivos a curto prazo, cortes e soluções instantâneas. Neste ponto, fiquei impressionado com a intervenção do Papa Francisco ao Prêmio Carlos Magno.
Depois de destacar o aumento, a assimilação e a prática diária da
"cultura do diálogo", como a estrada mestra para a coexistência pacífica
entre os homens - e, ao mesmo tempo, para um gradual, mas constante
desvanecimento dos medos recíprocos - salientou a necessidade de
introduzir a arte do diálogo em todos os níveis de ensino. Claro, a
educação é uma estratégia oposta às campanhas una tantum; é
programada para ter efeitos duradouros e, de preferência, irreversíveis,
precisa de tempo - talvez até um tempo que se estenda a mais gerações;
ela exige paciência e firme determinação, capacidade de resistir ao
impacto congelante dos tropeço, erros e falhas ocasionais, inevitáveis.
Além disso, deve-se notar que, numa época como a nossa, marcada pelo
acesso universal aos meios de informação e, por uma maciça e onipresente
pressão de publicidade e "relações públicas", a educação já não é
mais(como tinha sempre sido) uma atividade limitada à escola; por mais
que os programas escolares possam ser bem elaborados, não são mais os
únicos a incidir na formação da mentalidade e do caráter. Que tenham
sucesso sobre a superabundância dos concorrentes, está bem longe de ser
óbvio.
O senhor fez alusão até mesmo ao Papa. Nos últimos tempos o
senhor falou dele, muitas vezes, com admiração. O Papa disse que, para
abordar a questão da migração "devemos estudar e aplicar sua análise" e
"esperar que a sua palavra se encarne em nossas ações". Por quê? O que o
senhor pensa dele?
Penso que Francisco é o dom mais precioso que a
Igreja Cristã ofereceu ao nosso conturbado mundo, perdido em seus
caminhos, confuso, sem bússola e agora à deriva. Ele deu vigor à
esperança, já murcha, de um mundo alternativo e melhor, feito para
atender às necessidades e sonhos do homem. Creio que seja a única figura
pública em cena movido por este desejo e capaz de persegui-lo. Sua voz
vai muito além do círculo incestuoso das elites políticas: alcança as
massas que os gestores dos alto-falantes não conseguem, ou não se
preocupam em atingir, aquelas deixadas sozinhas à procura de uma maneira
de sair da atual incerteza.
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Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/561375-medo-do-outro-e-de-si-mesmo-entrevista-com-zygmunt-bauman - 20/10/2016
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