quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Quando uma historiadora e um psicanalista deitam os portugueses no divã: "O amor não se diz, faz-se"

Um psicanalista, uma historiadora, várias horas de tertúlia. No divã do consultório estiveram os portugueses e a sua história de vida. Desses meses resultou um livro e uma proposta simples: as grandes mudanças resultam da capacidade de insurgir-se e de ações simples, mas continuadas no tempo. António Coimbra de Matos e de Raquel Varela defendem que isto se faz à escala coletiva, e começa em cada um de nós

Clara Soares
Jornalista e Psicóloga

Tão diferentes e, imagine-se, tão iguais. Ela dedica-se a investigar a história do trabalho e dos conflitos sociais. Ele, pioneiro no estudo e promoção da saúde mental infantil e juvenil, analisa pessoas há décadas.Nascidos com praticamente meio século (49 anos) de diferença, une-os a força de vontade para ir ao fundo das questões e fazer alguma coisa a seguir a isso. Move-os a capacidade de intervir na comunidade, local e global. Com várias obras científicas publicadas e vários textos e palestras dirigidos ao público em geral, Raquel e António decidiram percorrer e esmiuçar, a dois e face-a-face, os trilhos que conduzem às vulnerabilidades e forças da Nação. Conhecidos por dizerem o que entendem sem atender ao politicamente correto, ou seja, sem papas na língua, pensaram, fizeram e o resultado está no livro Do Medo À Esperança (Bertrand Ed., 181 págs., €15,50). Estivémos à conversa com eles no mesmo gabinete onde eles se encontraram durante os primeiros meses deste ano e, ao longo de uma hora (o tempo de uma sessão clínica), os autores falaram da arte do encontro, da capacidade de cooperar e do conflito criativo, que não podemos temer se quisermos resgatar a esperança e viver o presente com outro ânimo e propósito. E sim, é possível. Saiba como.

Querem contar como foi o ponto de partida para esta viagem a dois?
António Coimbra de Matos - Conhecemo-nos há três anos, num congresso organizado pelo Dr Mendes Pedro, em Coimbra. Fomono-nos encontrando e um dia surgiu a ideia de escrever um livro a quatro mãos. Sim, quatro, porque usamos o teclado do computador!

Raquel Varela – Cada um de nós tem uma visão particular da História, no registo individual e no coletivo. Quisemos transpor para livro estas conversas e fazer pontes, para refazer o passado e transformar o futuro.

“Quem tem cu tem medo”. Afirmam que ter medo é acomodar-se ao status quo. O medo tem classe social?
RV – Também tem, sim. Há medos saudáveis, como o medo de ser despedido, por exemplo. o problema é quando se fica paralisado, incapaz de reagir, com inibição da ação, para usar a expressão lapidar do António. Na Guerra Colonial, por exemplo, podia haver medo, mas uns manifestavam-se contra, outros desertavam e outros que ficaram mortos de medo e acabaram por morrer lá. Porque não reagiram.

ACM – O medo manifesta-se na relação: teme-se o social, o outro. Nas sociedades hierárquicas, com maior pressão para a submissão, o medo é maior.

Há já quem ironize com o culto da meditação, que está para a economia dos mercados como o paracetamol para as dores de cabeça... uma droga para manter a serenidade sem partir a loiça
RV - É uma proposta orientada para o indivíduo. Porém, só os outros nos salvam de nós próprios: Penso em ti, logo existo (título de obra de Coimbra de Matos). Não é fazendo yoga ou práticas meditativas que um problema vai deixar de nos magoar. Se me colocarem a trabalhar por turnos às seis da manhã e eu não puder estar com os filhos, é normal que eu não esteja bem. As pessoas têm razões para não estar bem.

Porém, houve alturas em que estivemos pior, como diz o professor nas suas aulas e palestras.
ACM – Sim, as sociedades têm evoluído para melhor, apesar de recuos vários. Houve um percurso ascendente e agora estamos a atravessar uma curva funda, pelo binómio de Schäuble: austeridade por um lado, não ser lamechas e aguentar com beatitude por outro.
José Caria
O que pensam do lema “faz a paz e não a guerra”, ou a revolta, já agora?
ACM – Ficar quieto é que não resolve nada!

RV – Se não reagirmos a uma situação violenta, estamos a violentar-nos. Um grupo de pessoas pode ter medo e ser o elo mais fraco mas se se unir consegue operar mudança à escala global.Veja o caso da fábrica que parou a construção de motores de arranque no Brasil e paralizou toda a General Motors.

As relações estão enfraquecidas porque os cidadãos têm medo?
ACM – Vivemos numa sociedade enganadora e sofisticada, em que as coisas se fazem às escondidas. Há uma aparente horizontalidade, a maior parte das pessoas até se trata por tu, mas por trás existem hierarquias rígidas. É a reverência ao comandante, ao chefe, ao professor catedrático.

Não estamos numa sociedade paritária, como mostra o estudo da FFMS, Portugal Desigual.
RV – O incrível, no meio disto tudo, é que ainda encontramos flores. Vou a escolas públicas e vejo professores a fazerem exposições, muitas vezes conseguidas ao final da noite, depois de um dia esgotante, porque acumulam o trabalho dos administrativos que foram despedidos e conseguem gerir os comportamentos insolentes de alunos que têm mau ambiente familiar e em que um terço dos pais estão desempregados. Ou seja, as pessoas têm coisas muito boas dentro delas para dar.

Ainda não percebi porque se fica enredado no medo, sem imaginar ou criar outro cenário.
ACM - É mais fácil lidar com um medo visível, uma ditadura militar, do que com um medo invisível. É o caso da economia de mercado, um simulacro assente em dinheiro falso e não na produção de bens e serviços.

RV - As sociedades estão numa transição história: o novo ainda não é, mas o velho já não é. Das associações mutualistas e de sociedades agrárias familiares passou-se para sociedades urbanas onde todo o bem-estar coletivo foi colocado na mão do Estado, que está a desagregar-se. Cada vez se conta menos com o partido e o sindicato, que antes tinham funções sociais protetoras.

E não foi sempre um pouco assim, ao longo da História?
(os dois, em uníssono) Não!
ACM – Houve as sociedades da Idade Média, da culpa e do castigo. As do princípio do século XX, marcadas pela depressão e pela vergonha, veja os suicídios ameaçados e os concretizados por não conseguir estar à altura, por não ser suficientemente bom para entrar na faculdade, num concurso para emprego. Agora estamos num período de total solidão, o medo de ficar desamparado. Na família, na escola, nas instituições. Se nos zangarmos com alguém, desligamos.

Descontinuam-se as relações pessoais?
ACM – Adelgaçam-se. Nas sociedades atuais a espessura dos laços afetivos é muito menor, as ligações são mais ténues e diluídas, o que facilita o desenvolvimento das psicoses.

RV – Há presos que veem mais sol do que as crianças, li num estudo, porque ficam a brincar sozinhas num quarto. Damos por adquirido que um divórcio excecional é aquele em que as pessoas ficam amigas. É normal que as pessoas recebam mais flores na morte do que em vida.

Como chegámos aqui, ao sentimento de impotência e ao clássico “quem espera desespera”?
ACM - Essa era a posição do Freud, a de que as coisas vêm do próprio umbigo. Mas as coisas vêm do ambiente. Se temos um ambiente que não responde, perdemos a esperança. Isto penetra as próprias famílias. O interesse dos pais pelos filhos é menor, o que interessa aos filhos passa-lhes ao lado, querem é que eles não lhes deem problemas e tenham resultados. É a sociedade do lucro.

Sai-se do contentamento descontente pela via do desassossego? Da desobediência?

ACM - Só há uma forma de lidar contra a opressão, que é a insurreição.
RV – E a insurreição pode ser é um ato de força contra a violência. Quando dizemos “não”…

ACM (interrompe) – Olhe, a propósito disso: num congresso realizado lá fora, se uma pessoa defende uma ideia diferente ou discorda isso é normal, mas se for cá, é logo apelidada de agressiva.

RV – As pessoas não se afirmam. O violento é o que acontece depois: os cochichos e calúnias nos locais de trabalho… Quem se sente mais vivo não é quem tem um trabalho melhor ou ganha mais, é quem reage e assume responsabilidades. Querem, levantam-se e fazem. Já os que só se queixam…

ACM - Sofrer não é bom, é masoquismo.

No livro centram-se na importância do amor, a semente da esperança. Podem explicar melhor?
ACM - Há que olhar em frente sem se focar nas causas dos problemas e criar algo novo, com menos hierarquias e cadeias de comando e mais cooperação. Sem fugir ao conflito nem alimentar a luta.
RV – É mudando o ambiente que nos mudamos a nós próprios. Pensar menos e agir mais muda a forma como pensamos. Eu não amo alguém porque o digo, mas porque chego a casa e em vez de ficar catatónica no sofá a ver televisão sugiro dar um passeio à beira-rio e digo “vamos conversar”. E porque ao sábado, mesmo cansada, digo aos meus filhos “vamos andar de skate e comer um gelado, em vez de ficar no sofá.”

ACM – O amor não se diz. Faz-se!

RV - (ri-se e acrescenta) Não é por acaso que se diz “fazer amor”.

Contudo, referem que os casais levam vidas divididas e se gerem como num local de trabalho.
RV – O problema é esse. Não resolvem as questões laborais no local de trabalho e levam-nas para casa. Os meus colegas não têm de infernizar-me a vida porque tiveram uma avaliação chata, ou o marido ou o filho, têm que resolver com a hierarquia, com quem manda, têm que enfrentar o touro! As pessoas ainda têm muito medo de errar, de falhar… este livro, por exemplo: podia ter dado errado? Podia. O nosso país já foi cobarde, atrasado e medroso e transformou-se com a democracia. As pessoas mudaram com a mudança que fizeram. Também podem ter retrocedido a partir daí, porque as pessoas estão, mas não são.

Pergunto, de novo, como se cria ou restaura a esperança quando tudo arde? E até foi um ano de muitos incêndios…
RV – Dou-lhe um exemplo. Colocaram parquímetros na minha rua. Eu coloquei um papel nas caixas de correio do bairro de Paço de Arcos e pedi uma reunião com todos. Eles foram, incluindo o administrador dos parquímetros, votámos contra a medida. O administrador foi despedido e a câmara de Oeiras retirou os parquímetros. E ainda se resolveram outros problemas! E digo-lhe mais: o padre Martins, conhecido por ser o padre vermelho da Madeira, acabou com a confissão e explicou-me porquê: “Então as pessoas não se encontram nem falam e vêm-me fazer queixa do vizinho? Que falem directamente com Deus!” Dizem que quem tem medo compra um cão. Eu defendo: quem tem medo, constrói uma relação! O problema é que as pessoas não se encontram. Se eu sair com um cão, falam comigo, se sair com os filhos já não.

E porque há o medo de relacionar-se, de envolver-se?
RV - É a primeira vez na História que temos uma sociedade maioritariamente urbana, igualdade entre homens e mulheres. Será que hoje os homens ainda continuam à procura de uma mãe? Se calhar não, há um desejo de mais e de melhor e a receptividade ao livro mostra isso.

ACM – Nós somos aquilo que vivemos. Neste momento, somos flexíveis e transformáveis.

RV – Conheço um psiquiatra e psicanalista famoso nas Astúrias, onde existem 20 mil pessoas em consultas de saúde mental. Ele defende que os problemas mentais não aumentaram. Aumentaram, sim, os problemas sociais. “Quando chegam e me dizem que estão desempregados eu respondo ‘Não precisa de mim, precisa é de uma comissão de trabalhadores’, e não de um psiquiatra.” Isso não se resolve com comprimidos.

"Quando a coisa mais importante que temos no nosso dia não é criar, amar, construir, inventar, mas comer, dormir, é porque estamos desumanizados. O que muda isto é programar encontros, fazer coisas, meia hora por dia, relacionar-se no bairro, com a família e as pessoas próximas."

Mas continua a ser a solução mais à mão, além do futebol, da religião, do fado. E da comida...
RV – Tenho um amigo que explica isso muito bem: em tempos de alienação, os instintos vêm ao de cima. Quando a coisa mais importante que temos no nosso dia não é criar, amar, construir, inventar, mas comer, dormir, é porque estamos desumanizados. O que muda isto é programar encontros, fazer coisas, meia hora por dia, relacionar-se no bairro, com a família e as pessoas próximas. Problemas complexos pedem soluções complexas, mas há coisas que estão ao alcance de todos e fazem a diferença na vida de cada um.

ACM – As pessoas têm uma grande capacidade para observar, reflectir e investigar. No fundo é isto que cada um pode fazer e que chega a ser mais importante do que ir à procura de uma resposta nos livros, no psiquiatra, no mestre, no pai. E lembro: criar implica sempre uma relação a dois, complementar e insaturada.

Ou seja?
ACM - Uma relação onde há lugar para as diferenças e um espaço aberto para criar coisas novas, senão entra-se na rotina. A rotina mata. Há que acreditar nos recursos próprios, sem medo de aprender com o erro. De falhar melhor.

Por fim, como dar a volta ao medo e iniciar mudanças, aqui e agora mesmo? Sem desesperar?
RV – Ocorre-me o que diz uma amiga minha, que já pensou no epitáfio: “Só estou aqui obrigada!” (risos) Correu mal um namoro? Não vá a correr comprar um cão. A primeira greve não funcionou? A próxima correrá melhor, embora cometa outros erros, porque nada é perfeito.

ACM – Outra forma de dizer isso é: “Insista, porque o melhor amor é o próximo!” Perante o desconhecido, temos medo, desejo e fascínio. E é preciso não esquecer que quando somos mais doentes temos mais medo. Quando temos mais saúde fascinamo-nos mais.
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Fonte:  http://visao.sapo.pt/actualidade/sociedade/2016-10-09-Quando-uma-historiadora-e-um-psicanalista-deitam-os-portugueses-no-diva-O-amor-nao-se-diz-faz-se

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