Contado Calligaris*
Mariza/Editoria de Arte/Folhapress
Em 1995, durante um programa da TV Record, um bispo da Igreja
Universal chutou uma estátua de Nossa Senhora Aparecida. Não sei se era
uma manifestação contra Nossa Senhora (para mostrar que ela não é Deus)
ou contra as imagens em geral (para mostrar que elas não contêm nenhuma
faísca da divindade).
O bispo foi condenado por vilipêndio e discriminação da religião dos
outros. Três anos depois, Marcello Crivella, outro bispo da Universal,
cantor, senador e hoje candidato à Prefeitura do Rio de Janeiro, lançou a
canção "Um Chute na Heresia", na qual ele defende o bispo chutador e
conclui assim repetidas estrofes: "Se ela é Deus, ela mesmo me castiga".
Ou seja, deixem nós bispos chutarmos as estátuas dos outros e recebermos
a conta no reino dos céus. Então, eu poderia chutar a canela de
Crivella e esperar para ver: se tiver uma parcela de divindade nele,
Deus me punirá, certo?
Enfim, Crivella expressou diante de seus rebanhos outras ideias
interessantes. Por exemplo, sugeriu que filho de mãe que pensou em
abortar pode crescer homossexual ou traficante. Também ele declarou que a
Igreja Universal elegerá um presidente da República "que vai trabalhar
por nós e por nossas igrejas" (eu achava que um presidente, uma vez
eleito, trabalhasse pelo Brasil e por seu povo).
Enfim, o discurso que serve para arregimentar um rebanho é quase sempre
boçal: ele propõe ideias mínimas que possam ser compartilhadas pelo
maior número. A maioria dos presentes desaprova a homossexualidade, o
tráfico e o aborto? Pois é, vamos combinar tudo numa ideia só: a mãe que
pensa em aborto etc.
Mas voltemos à "heresia" de quem venera as imagens. Existe uma tragédia
de Eurípides (480 - 406 antes de Cristo), "Helena", que é encenada
raramente.
Para entender o enredo, é preciso lembrar como dizem que começou a
guerra de Troia (entre 1.300 e 1.200 antes de Cristo). Páris, filho do
rei de Troia, viajou para Esparta e se apaixonou por Helena, mulher do
rei local, Menelau. Páris raptou Helena (ou Helena fugiu com ele, tanto
faz). Menelau e todos os gregos foram para Troia e sitiaram a cidade por
dez anos, até Ulisses inventar o famoso cavalo de Troia, que os
troianos trouxeram para dentro de sua cidade sem saber que escondia
soldados gregos.
Essa guerra é contada na "Ilíada" de Homero. Na volta para casa, os
gregos, e especialmente Ulisses, tiveram percalços infinitos, contados
na "Odisseia", também de Homero.
Agora, na origem dessa história toda, três deusas gregas estavam
brigando para saber quem era a mais bonita, e Páris foi chamado para ser
juiz. Ele escolheu Afrodite, a qual o recompensou com o amor de Helena.
Só que, na tragédia de Eurípides, as duas perdedoras conspiraram para
que a Helena que foi para Troia com Páris não fosse a mulher de Menelau,
mas um ídolo –uma cópia perfeita, como um robô de "Westworld", a nova
série da HBO.
Gregos e troianos se estriparam durante dez anos por um ídolo, enquanto a
verdadeira Helena estava escondida no Egito (no fim, "happy ending":
Menelau a reencontra).
Em suma, a guerra de Troia inaugura a literatura e a cultura ocidentais com dois ídolos: Helena e o famoso cavalo.
Não é de estranhar; seria possível contar toda nossa história (ou, no
mínimo, a história da arte ocidental) como uma meditação sobre as
manifestações possíveis do que é ausente ou invisível. O objeto amado
que idealizamos está no corpo aparente de quem amamos? E nosso corpo é
um ídolo de nossa alma? E os mortos, seus retratos e seus monumentos, o
que são? E como se manifesta Deus no mundo?
A cristandade nunca parou de debater como, em Jesus, a natureza humana
convivia com a divina –justamente para evitar que ele fosse considerado o
ídolo (visível e encarnado) de um Deus invisível. Também discutimos
para saber se o pão e o vinho na eucaristia são o corpo e o sangue de
Cristo –mesma pergunta: seriam ídolos?
Claro, somos sempre tentados pela possibilidade de tomar os ídolos pela
coisa mesma. Há quem sonhe com bonecos de silicone, há quem venere um
imagem como se fosse Deus e há quem ache que Deus pode estar nas letras
da Escritura, mas nunca nas imagens.
É possível ser idólatra ou iconoclasta, amar ou odiar as imagens, à
condição de não renunciar à maravilhosa complexidade da experiência
humana. Ou seja, à condição de não ser boçal.
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* Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor.
Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito
contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2016/10/1826498-e-possivel-ser-idolatra-ou-iconoclasta-a-condicao-de-nao-ser-bocal.shtml
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