Foto: Gabriela Biló/Estadão
O escritor. Primeiro livro da trilogia vendeu mais de 20 mil exemplares
Escritor comprova que o passado
é quase sempre inventado
Borboletas brilhantes tingiam de luz o rio durante a noite escura.
“São as sombras da água”, diz um personagem do segundo livro da trilogia
As Areias do Imperador, chamado justamente de Sombras da Água,
em que o escritor moçambicano Mia Couto retoma a história de amor entre
a jovem africana Imani e o sargento português Germano de Melo. A
história se passa no fim do século 19, quando Moçambique está em guerra e
o sul do país era governado por Ngungunyane, último líder do Estado de
Gaza, o segundo maior império da África dirigido por um africano. Sobre a
obra, Couto respondeu por e-mail às seguintes questões.
Sua escrita sempre é marcada pela poesia na prosa. Como funciona o efeito poético em uma obra polifônica como essa?
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A poesia é um modo de abrir portas a essa multidão que foi sendo
silenciada dentro de cada um de nós. Fomos perdendo o acesso a essa
alteridade, mas a vida insiste em construir em cada um de nós uma
identidade múltipla. O que quer dizer que o trabalho do escritor se
cruza em duas direções aparentemente contraditórias: por um lado, é
imperioso que ele encontre a sua própria voz (que deve ser única e
singular). Por outro lado, essa voz deve dar vazão à multitude de vozes
que moram dentro de nós. No meu caso, tenho o privilégio de ter nascido e
viver em um país que é uma nação onde vivem muitas nações. Todas elas
pedem para ser faladas, lembradas e cantadas. Em qualquer lugar do
mundo, a obra de arte é sempre polifônica. Mas, no caso de Moçambique,
essa pluralidade é uma marca claramente vincada.
O colonizador português é mostrado de formas diferentes neste segundo volume, com Germano e Ayres de Ornelas. Por quê?
Pareceu-me que era preciso sublinhar que não existiu uma
categoria chamada “o colonizador” ou “os portugueses”. Neste segundo
volume, criei um diálogo entre dois militares para mostrar que, do lado
do colonizador, ocorriam visões díspares e em conflito. E não apenas
distintas visões, mas olhares particulares. Por razões da sua paixão por
uma mulher negra e africana, o personagem do sargento vai-se afirmando
como uma figura singular e em confronto com o seu mandato de militar
europeu.
A captura de Ngungunyane significa a fragilidade de um povo?
Foi uma vitória colonial e uma derrota para a soberania dos
africanos. Mas, uma vez mais, esse imperador africano que tanto
perturbava o domínio português era um peso fatal para algumas das etnias
que ele subjugava. Existiam diversas fragilidades que aqui se conjugam:
a de diferentes Áfricas, mas também ironicamente a dos próprios
portugueses que derrotaram militarmente esse poderia militar que lhe
fazia frente no sul de Moçambique. Mas eram vencedores com vitória
hipotecada. Porque era uma vitória apressada, sujeita a uma enorme
encenação midiática, para que os ingleses vissem que Portugal merecia um
fatia desse apetitoso bolo que era o território africano.
A trilogia trata de uma figura que foi
mitificada tanto pelos portugueses como pelos africanos. Como descrever
essa figura sem privilegiar um dos lados?
Tive que contrariar a facilidade de ir buscar inspiração apenas
nos documentos escritos, que foram todos eles deixados pelos
portugueses. Visitei profusamente os territórios de Inhambane e Gaza, no
sul de Moçambique, para recolher depoimentos orais que preservam a
lembrança desse conturbado período. No ano passado, passei três semanas
na ilha dos Açores, lugar onde foi exilado e acabou por morrer o
imperador e três dignitários da sua corte. Ali, nessas terras lusas,
esses quatro africanos penaram, mas também amaram e fizeram filhos.
Hoje, há descendentes desses africanos em território português, gente
mestiça, mas de nacionalidade portuguesa.
Nós somos muito aquilo que já fomos, você disse certa vez. Como saber disso a partir de versões provavelmente distorcidas?
As versões do passado não têm sempre que ser interrogadas do
ponto de vista da veracidade. Quase sempre elas são reinventadas. Sucede
o mesmo quando revisitamos um sonho. O seu relato nunca é fiel. Porque o
relato de um sonho pedia um idioma inventado. A única solução é
aceitarmos que cada um de nós somos muitos. E somos assim múltiplos no
presente porque, no passado, fomos sempre vários. O poeta moçambicano
dizia: eu não sou dividido; sou repartido.
SOMBRAS DA ÁGUA
Autor: Mia Couto
Editora: Companhia das Letras (392 págs.,R$ 44,90 papel, R$ 30,90 e-book)----------
Reportagem por Ubiratan Brasil, O Estado de S.Paulo
Fonte: http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,em-novo-livro-mia-couto-retoma-sua-trilogia-sobre-a-memoria,10000080933
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