Onda conservadora
Silvio Caccia
Bava
Diretor
e editor-chefe
Como se forma o pensamento conservador?
Como ele ganha mais adeptos na sociedade?
Como ele pode vir a conformar maiorias?
Essa
discussão remete à questão da imposição de uma visão de mundo que é de uma
parte da sociedade como sendo a visão de toda a sociedade. Estamos no campo da produção da ideologia e da disputa pela hegemonia.
Não é pela força, mas pelo convencimento que a maioria da sociedade adota uma
visão de mundo, valores, um projeto de sociedade, uma forma determinada de
convivência social.
Se
a mobilização social pela redemocratização do país trouxe com a Constituição de
1988 um paradigma democrático e de respeito aos direitos humanos, a onda conservadora que se formou nos
últimos anos traz a proposta de uma sociedade em que predomina:
* o interesse das grandes
empresas sobre o dos cidadãos,
* do privado sobre o público,
* do individualismo sobre os
interesses coletivos,
* da competição sobre a
solidariedade,
* da intolerância sobre a
valorização da diversidade,
* da busca pela eliminação do
adversário transformando-o em inimigo.
Assistimos
ainda surpresos a manifestações cada vez
mais frequentes de intolerância com aqueles que pensam de modo diverso ou têm
outros valores. São expressão de uma direita que se viu estimulada por uma
campanha sistemática feita pela mídia, especialmente pela televisão aberta, e
por organizações da sociedade civil, como a Fiesp, e “saiu do armário”. Essas
manifestações passam a hostilizar aqueles identificados como seus inimigos,
sejam eles um partido político, uma religião afro, homossexuais, jovens negros
da periferia ou meninos de rua. Guido Mantega,
Chico Buarque, Leticia Sabatella, entre muitos outros, recentemente sofreram agressões gratuitas que expressam essa
polarização social e política em nossa sociedade.
Certamente
a mídia teve um papel muito importante nesse processo, mas seria ingenuidade
supor que ela seja a única responsável por essa maré conservadora. A construção
da hegemonia se dá no âmbito da sociedade civil, e é aí que devemos procurar
suas raízes.
Culto em um templo da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) |
Não é de repente que boa
parte da população se convence e assume uma narrativa em que se posiciona:
* contra o aborto,
* pela redução da maioridade
penal,
* criminaliza o consumo de
drogas,
* reafirma as discriminações
contra a mulher, os homossexuais, os negros,
* dá seu consentimento
silencioso ao extermínio da juventude negra da periferia dos grandes centros
urbanos.
Entre os fatores importantes
que precisam ser levados em conta para compreender a formação desse pensamento
conservador está o crescimento das Igrejas evangélicas, que nos anos 1970 atraíam
5,2% da população brasileira e, pelo Censo de 2010, passaram a reunir 22,2%. Esse crescimento se deveu principalmente às
Igrejas neopentecostais, como a Igreja
Universal do Reino de Deus (Igreja Universal do Reino de Deus), fundada em
1977. Hoje os evangélicos são mais de 42
milhões de brasileiros e brasileiras, e as projeções indicam que em 2030 eles serão tantos quanto os católicos.
Numa
sociedade marcada por profundas e históricas desigualdades, que se urbanizou
muito rapidamente e hoje concentra mais de 85% de sua população nas cidades,
sobretudo em grandes centros urbanos, as
Igrejas pentecostais focaram sua atenção no que a imprensa convencionou chamar
de “nova classe média”, ou seja, em 54% da população, um segmento que
compreende as famílias com renda entre R$ 1.200 e R$ 5.174.
A
vida dessas famílias está marcada pelos problemas de moradia inadequada,
precariedade dos serviços públicos, violência cotidiana e desagregação dos
laços familiares. É nas periferias das grandes cidades que essa população vive,
e é aí que se concentra o crescimento do neopentecostalismo. O perfil de seus fiéis mostra que na
verdade não se trata de uma classe média:
* 63,7% não ganham mais que
um salário mínimo;
* 8,6% são analfabetos;
* 42,3% têm ensino
fundamental incompleto. [1]
É na igreja que essas
pessoas vão encontrar apoio, proteção, um espaço de convívio e de pertencimento. Os pastores evangélicos
procuram enfrentar os problemas concretos de seus fiéis com propostas de
solução imediatas, e sua Teologia da
Prosperidade afirma que a superação
das dificuldades é a comprovação da fé em Deus. Não é casual que seu
crescimento recente coincida com a fase de aumento de renda desse segmento
social nos últimos anos.
EDIR MACEDO Fundador e chefe da Igreja Universal do Reino de Deus é um dos homens mais ricos e poderosos do Brasil! |
Entre os novos fiéis estão
milhares de jovens convertidos que se afastam do narcotráfico e passam a
frequentar o culto, deixam de beber e se drogar, resgatam sua dignidade, assumem um novo
papel de trabalhador honesto, encontram aí um espaço de valorização pessoal, de
convivência, de celebração. Nesse sentido, encontram
na igreja uma alternativa, um novo projeto de vida.
E é
nesses templos que acolhem seus fiéis que os
pastores fazem sua pregação de valores e, mais recentemente, também sua pregação política. É aí que recolhem o dízimo e amealham fortunas,
como Edir Macedo, fundador da Igreja Universal
do Reino de Deus e presente na lista dos bilionários publicada pela revista
internacional Forbes.
SILAS MALAFAIA Famoso pastor não teve dúvidas em apoiar abertamente candidatos a Deputado Estadual e Federal nas últimas eleições no Rio de Janeiro |
O
pastor Silas Malafaia, líder da Assembleia de
Deus Vitória em Cristo, prega contra os
candidatos que defendem princípios “não cristãos”:
* como liberalização do
aborto,
* casamento entre
homossexuais,
* descriminalização das drogas
etc., e
* combate abertamente
candidatos do Psol e do PT. [2]
A teoria pentecostal diz que
cabe à Igreja salvar as pessoas do mal e se pôr em luta contra Satanás e o
pecado. Se
nos anos 1950-1970 essas Igrejas evangélicas procuravam a cura divina, a partir dos anos 1980 o que predomina
nesses cultos são os rituais de exorcismo. É uma guerra contra o mal e
contra o diabo, na qual os fiéis são soldados. A intolerância manifesta para
com as religiões afro-brasileiras bebe dessa ideologia, pois identifica nelas
Satanás e o pecado.
Segundo
o reverendo Carlos Eduardo Calvani,
da Igreja Anglicana no Brasil, o movimento evangélico é um dos maiores
perigos para a sociedade brasileira. Seu fundamentalismo elabora discursos
para enganar analfabetos funcionais e levá-los a cometer barbaridades em nome
da fé. Calvani acredita que os
evangélicos têm um projeto de tomada de poder na sociedade brasileira. [3]
O
crescimento dessas Igrejas neopentecostais as coloca como uma das mais
importantes instituições que tratam do cotidiano dos moradores das periferias.
Na década passada, os evangélicos, especialmente as Igrejas neopentecostais,
conquistaram 16 milhões de novos fiéis:
* A Assembleia de Deus é a maior, com 12,3 milhões de fiéis.
* A Congregação Cristã do Brasil é a segunda, com 2,2 milhões de fiéis.
* A Igreja Universal do Reino de Deus é a terceira, com 1,9 milhão de fiéis.
REV. CARLOS EDUARDO CALVANI Da Igreja Anglicana no Rio de Janeiro, não tem dúvidas de que os neopentecostais possuem um projeto para a conquista de sempre mais poder e influência política no Brasil |
Esse crescimento se explica
pela retração da Igreja Católica, que nos anos 1970 e 1980 organizava a sociedade em
comunidades eclesiais de base [CEBs], mas
também pela impotência da sociedade em resolver seus problemas pela via social,
política e econômica. Apela-se ao sobrenatural para a solução dos problemas
da vida. [4]
A ideia de que os
evangélicos pentecostais têm um projeto de poder não é descabida. A disputa por corações e
mentes na sociedade para converter a população para suas crenças e valores e
afirmar sua hegemonia na sociedade parece nortear sua atuação no plano da
comunicação e junto às instituições políticas.
As Igrejas evangélicas
controlam 25% das rádios FM. Todo pastor importante tem
um templo, uma rádio, um canal de TV. Algumas Igrejas têm editoras, produtoras
de discos, agências de viagem. É cada vez maior o número de horas compradas por
essas Igrejas na TV aberta.
Se
tomarmos como referência a Igreja
Universal, podemos observar que ela
é uma potência em comunicação:
* Distribui gratuitamente nas
ruas um semanário com 1,8 milhão de
exemplares;
* comprou em 1989 a TV Record, a segunda maior rede de televisão do país;
* controla mais de vinte emissoras de TV;
* transmite seus programas
através de mais de quarenta estações de
rádio.
Esse investimento em
comunicação parece sincronizado com seu crescente envolvimento na política. Foi no começo da década de
1990 que a Universal assumiu um protagonismo na política. A cúpula da Igreja
indica candidatos com base em critérios como o número de eleitores de uma
igreja ou distrito. Cada templo tem um
candidato para deputado federal e um para estadual. Esses candidatos são
líderes religiosos carismáticos, com habilidades de comunicação, e estavam
distribuídos por vários partidos antes de a Universal ter seu próprio partido, o PRB,
que conta hoje com dez deputados
federais e 21 estaduais.
O
crescimento constante dos parlamentares da Universal tornou-a um modelo para
outras Igrejas, como a Assembleia de Deus, e deu ensejo à criação da Confederação dos Conselhos de Pastores do
Brasil, em 2009. Esta organização, de caráter nacional, visa consolidar a
força política dos evangélicos, principalmente os pentecostais e
neopentecostais, dando suporte a candidaturas de prefeitos e vereadores este
ano. Das 52 candidaturas a prefeito acompanhadas por esse conselho nas eleições
deste ano, 43 são do PRB. A mais importante delas neste momento é a do sobrinho de Edir Macedo, o senador Marcelo
Crivella, que tem boas chances de se tornar prefeito do Rio de
Janeiro. Crivella foi bispo da Igreja
Universal do Reino de Deus antes de se tornar senador. Outro candidato do
PRB foi Celso
Russomanno, que permaneceu em primeiro lugar nas pesquisas em São
Paulo durante quase toda campanha eleitoral.
O
projeto da Confederação dos Conselhos de
Pastores do Brasil é que a partir de 2017 os políticos evangélicos passem a trabalhar de maneira mais articulada,
com as mesmas pautas, independentemente dos partidos em que estejam. [5]
O Fórum Evangélico Nacional de Ação Social e
Política contabiliza cerca de 10 mil
“vereadores de Deus”, algo como um quinto do total; no plano estadual já
existem frentes parlamentares evangélicas em quinze estados; a bancada evangélica na Câmara dos
Deputados é de 73 parlamentares e no Senado conta com três senadores. [6]
No
Congresso, os parlamentares evangélicos se reúnem toda quarta pela manhã para o
culto, depois discutem projetos de lei e a pauta. O acompanhamento legislativo é feito por assessores, muitos deles
indicados pela Igreja Universal do Reino de Deus, que orientam a ação dos
parlamentares.
Os
parlamentares evangélicos formam uma presença importante em Comissões do
Congresso, como Seguridade Social, Direitos Humanos, Constituição, Justiça e
Cidadania. Têm aí uma postura ideológica e se posicionam contra todos os
projetos que, em seu entender, ferem seus valores. É o que vimos com o deputado Marco Feliciano (PSC-SP),
pastor da Catedral do Avivamento, uma
Igreja neopentecostal ligada à Assembleia de Deus, e que esteve na presidência da Comissão de Direitos Humanos. Aí eles
utilizam a Bíblia para propor ou alterar leis e atacar cláusulas pétreas de
nossa Constituição. Se fazem presentes também na Comissão de Tecnologia e Comunicação, com catorze dos 42 assentos, para impedir
qualquer iniciativa que venha a limitar seu poder midiático.
Segundo
Silas Malafaia, existem centenas de
projetos de lei no Congresso Nacional para detonar a família e os bons
costumes, como os direitos LGBT, e cabe à bancada evangélica combater esses
projetos. Mas seus interesses vão além
disso, eles buscam:
* isenções fiscais,
* a cessão de terrenos
públicos para seus templos,
* alvarás de funcionamento
das igrejas,
* o reconhecimento da cultura
evangélica e seu financiamento com recursos públicos,
* a manutenção das leis de
radiodifusão,
* a concessão de canais de
rádio e TV.
GLADIADORES DO ALTAR Grupo de jovens bem treinado e preparado pela Igreja Universal do Reino de Deus, com possibilidade de tornarem-se futuros pastores |
Com
uma atuação significativa no Congresso, os evangélicos, no entanto, não
descuidam da importância de seu trabalho no seio da sociedade. Em janeiro de
2015, a Universal criou os Gladiadores do
Altar, um grupo selecionado entre os
integrantes da Força Jovem Universal.
A Igreja Universal do Reino de Deus declara que eles já são 4.300 e compõem-se de homens de até 26 anos, que marcham
fardados, batem continência para um líder, juram dar a vida pelo altar,
valorizam a disciplina e a hierarquia. São reuniões semanais que ensinam na
teoria e na prática a importância da Obra de Deus.
Marcio
Alexandre, coordenador do Coletivo de Entidades Negras, alerta que no âmago da
teoria pentecostal está presente a ideia de uma guerra contra o mal e que cabe
às Igrejas salvar as pessoas desse mal. “Se
a linguagem deles é de guerra, a prática também pode ser.” [7]
N O T A S
[ 1 ] –
Adriano Senkevics, “A ‘nova classe média’ e o crescimento das Igrejas
evangélicas”, 24 out. 2013. Disponível em:
.
[ 2 ] –
“Pastor grava vídeos para explicar em quem ‘cristãos não devem votar’”, Folha de S. Paulo, caderno Eleições, p. 4,
21 set. 2016.
[ 3 ] –
Dan Martins, “Pastor compara políticos cristãos a fundamentalistas islâmicos, e
afirma que ‘evangélicos têm um projeto de tomada de poder na sociedade
brasileira’”, 1º set. 2013. Disponível em:
.
[ 4 ] –
Lamia Oualalu, “El poder evangélico en Brasil”, Nueva Sociedad, Buenos Aires, n. 260, nov.-dez. 2015.
[ 5 ] –
Thais Arbex, “Evangélicos buscam atuação política mais coesa com campanha”, Folha de S. Paulo, caderno Eleições, p. 6,
19 set. 2016.
[ 6 ] –
Piero Locatelli e Rodrigo Martins, “O poder dos evangélicos na política”, Carta Capital, 12 ago. 2014. Disponível
em: .
[ 7 ] –
“‘Exército’ da Universal preocupa religiões afro-brasileiras”, Carta Capital, 5 abr. 2015. Disponível
em:
.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil – Editorial – Ano 10 – Número 111 – Outubro
2016 – Págs. 3 e 4 – Internet: clique aqui.
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