Lya Luft*
Que somos animais predadores com vernizinho de
civilidade, ou de humanidade, se quiserem, isso me parece óbvio. Basta
soltar as amarras num impulso de raiva, num momento de ódio, num
fanatismo qualquer, e lá vamos nós, nada bonzinhos, matando,
esquartejando, estuprando, aniquilando com mísseis ou espalhando morte e
tripas com algum homem-bomba. Lá vamos nós treinar menininhos para
matarem com fuzis maiores do que eles. Lá vamos nós queimar prisioneiros
vivos dentro de jaulas aos olhos de uma multidão, ou matar nas ruas só
porque “hoje deu vontade”.
Onde, quando ouvi ou li coisas parecidas? Foi no Holocausto? Está sendo em tantos holocaustos atuais? Foi Nero, que mandou matar a mãe e matou com pontapés na barriga sua mulher grávida, que mandava empalar cristãos cobertos de óleo em postes, para queimarem iluminando seus jardins? Nero, incompreensivelmente discípulo do meu amado filósofo Sêneca, cujos pensamentos sábios, harmoniosos, nobres e tranquilizadores leio e releio desde adolescente? Comentei com um de meus filhos, quando falávamos mais uma vez sobre a violência no Brasil e também aqui, que, lendo um bocado de História, até acho que melhoramos muito. Não havia imprensa, não havia organizações, não havia democracia que botasse limite na ferocidade humana.
Mas hoje, mesmo tendo avançado em relação às barbáries passadas, aqui nas nossas ruas não temos sossego. A cada dia, alguém que conheço ou que é conhecido de algum amigo é assaltado, e tudo termina com o suspiro de alívio: “Ainda bem que só levaram minha carteira, meu carro, não minha vida nem minha mulher ou meus filhos. Tivemos sorte”.
Que vida é essa, que pensamento funesto? Terrível atestado da nossa vergonha e conformidade, e da incompetência de quem deveria administrar o país. O crime começa a compensar. O criminoso nos controla. Saímos pouco à noite, e com receio; não paramos o carro nos sinais vermelhos a altas horas, o que aliás nos foi há tempos sugerido por uma autoridade de segurança, se não me engano. Em cidades como Rio, e lugares do Norte e Nordeste, está vivo o espírito dos jagunços, tiroteios, mortes, roubos de grandes quantias, bancos arrombados, cofres explodidos. Criminosos fugidos, às vezes mortos eles e os policiais. Mas a loucura prossegue, e cresce.
Meus filhos brincavam nos terrenos baldios perto de casa, há algumas décadas, e ninguém se preocupava com a possibilidade de tragédias hoje banais. Ao escurecer, a gente chegava na esquina, chamava “Venham tomar banho e jantar!”. E vinham, suados, cansados e felizes, os pais de nossos netos, que já não andam sozinhos nem até a escola. Sei que é ingenuidade querer de volta aqueles tempos, mas podíamos estar mais civilizados.
O consolo é que essa humanidade sedenta de sangue também produz milagres como as obras de arte e seus autores. Van Gogh, Monet, Mozart e Bach, Shakespeare e Pessoa, todos os sublimes: os artistas. Mas também os mais cotidianos gestos dos jovens alegres e saudáveis, das crianças carinhosas, dos pais maravilhados, tudo o que nos faz acreditar que não produzimos só barbárie e repulsa, mas claridade, beleza e – apesar de tudo – esperança.
Onde, quando ouvi ou li coisas parecidas? Foi no Holocausto? Está sendo em tantos holocaustos atuais? Foi Nero, que mandou matar a mãe e matou com pontapés na barriga sua mulher grávida, que mandava empalar cristãos cobertos de óleo em postes, para queimarem iluminando seus jardins? Nero, incompreensivelmente discípulo do meu amado filósofo Sêneca, cujos pensamentos sábios, harmoniosos, nobres e tranquilizadores leio e releio desde adolescente? Comentei com um de meus filhos, quando falávamos mais uma vez sobre a violência no Brasil e também aqui, que, lendo um bocado de História, até acho que melhoramos muito. Não havia imprensa, não havia organizações, não havia democracia que botasse limite na ferocidade humana.
Mas hoje, mesmo tendo avançado em relação às barbáries passadas, aqui nas nossas ruas não temos sossego. A cada dia, alguém que conheço ou que é conhecido de algum amigo é assaltado, e tudo termina com o suspiro de alívio: “Ainda bem que só levaram minha carteira, meu carro, não minha vida nem minha mulher ou meus filhos. Tivemos sorte”.
Que vida é essa, que pensamento funesto? Terrível atestado da nossa vergonha e conformidade, e da incompetência de quem deveria administrar o país. O crime começa a compensar. O criminoso nos controla. Saímos pouco à noite, e com receio; não paramos o carro nos sinais vermelhos a altas horas, o que aliás nos foi há tempos sugerido por uma autoridade de segurança, se não me engano. Em cidades como Rio, e lugares do Norte e Nordeste, está vivo o espírito dos jagunços, tiroteios, mortes, roubos de grandes quantias, bancos arrombados, cofres explodidos. Criminosos fugidos, às vezes mortos eles e os policiais. Mas a loucura prossegue, e cresce.
Meus filhos brincavam nos terrenos baldios perto de casa, há algumas décadas, e ninguém se preocupava com a possibilidade de tragédias hoje banais. Ao escurecer, a gente chegava na esquina, chamava “Venham tomar banho e jantar!”. E vinham, suados, cansados e felizes, os pais de nossos netos, que já não andam sozinhos nem até a escola. Sei que é ingenuidade querer de volta aqueles tempos, mas podíamos estar mais civilizados.
O consolo é que essa humanidade sedenta de sangue também produz milagres como as obras de arte e seus autores. Van Gogh, Monet, Mozart e Bach, Shakespeare e Pessoa, todos os sublimes: os artistas. Mas também os mais cotidianos gestos dos jovens alegres e saudáveis, das crianças carinhosas, dos pais maravilhados, tudo o que nos faz acreditar que não produzimos só barbárie e repulsa, mas claridade, beleza e – apesar de tudo – esperança.
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* Escritora.
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a7888104.xml&template=3916.dwt&edition=29944§ion=70
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