Gabriel Ferreira*
O filósofo americano Richard Rorty: qual o futuro da filosofia?
Um espectro ronda as Humanidades – o espectro da sua inadequação. Em
um mundo de iPhones, sondas intergalácticas e de ressonância magnética,
parece não haver espaço para uma abordagem, seja da experiência humana
no mundo, seja daquilo a que, grosso modo, nos acostumamos a
chamar de realidade, que não seja gestada e desenvolvida no seio
daquelas áreas abarcadas pela sigla STEM, em inglês (Ciências,
Tecnologia, Engenharias e Matemáticas).
Se é assim para o senso comum, nas universidades pelo mundo a
situação não é muito melhor. Em setembro do ano passado, Hakubun
Shimomura, ministro da educação japonês, enviou um memorando às
universidades do país solicitando que convertessem seus departamentos de
humanidades – que incluem cursos como filosofia, sociologia,
antropologia, mas, por lá, também direito – em organismos que “sirvam
melhor às necessidades da nação”. E os exemplos se multiplicam nos EUA e
na Europa. Algumas universidades, como a de Pittsburgh, suspenderam a
admissão de novos estudantes para cursos de Letras e Ciências da
Religião. A de Middlesex, em Londres, fechou o seu curso de Filosofia.
Por aqui, a recente discussão acerca das mudanças no ensino médio – já tratada por Andrea Faggion neste mesmo Estado da Arte
– também deu ao tema cores mais vivas para nós, brasileiros. O fato é
que, embora pulsante e atual e com desdobramentos visíveis, a discussão
não apenas vai além da reforma de currículos ou do fechamento de
departamentos universitários, como remonta a um quadro que não é
particularmente novo.
Para entender o que se passa com mais propriedade, pode ser útil ver o
processo que se iniciou já no século XIX e que pode ser muito bem
caracterizado pela expressão, utilizada por historiadores da filosofia
como Léo Freuler e Frederick Beiser, “crise de identidade da filosofia”.
Com pequenas exceções, ao menos de Aristóteles (séc. IV a. C.) a Hegel
(falecido em 1831), a filosofia não apenas era vista como o centro
gravitacional daquilo que viríamos a chamar de Ciências Humanas ou
Humanidades, mas era tida como fundamento praticamente inamovível e
condição de possibilidade para todas as ciências. A partir de meados do
século XIX, isso alterou-se radicalmente. Com o desenvolvimento
crescente dos diversos ramos das ciências naturais, bem como da
psicologia, fisiologia e mesmo da história, o papel da filosofia como
mãe e guardiã das ciências específicas simplesmente ficou desacreditado.
Em 1870, o filósofo Jürgen Bona Meyer resumiu bem a situação: “As
filhas agora demandam independência de sua mãe comum, e elas não mais
sofrem caladas quando são supervisionadas ou corrigidas; preferem que
sua velha e morosa mãe deixe-se repousar em seu túmulo”. Não apenas a
filosofia e seus métodos mostravam-se insuficientes para a gloriosa
tarefa de fundar e assegurar a certeza das ciências, como emerge, de uma
vez por todas, a questão fundamental: frente a todo o desenvolvimento e
independência das ciências específicas, há ainda lugar para a filosofia
na explicação do mundo e da experiência humana do mundo? Que o escopo
de tal pergunta inconveniente se espalhe para as demais áreas das
famigeradas Humanidades é, com perdão do trocadilho, mais do que
natural.
O que apontei até aqui, ainda que de maneira esquemática, é uma
introdução suficiente para nos trazer àquilo que é o ponto nevrálgico
deste e do meu próximo texto no Estado da Arte e, por que não,
de todos os meus textos possíveis por aqui. Se é duvidoso que haja,
portanto, espaço para alguma contribuição da filosofia para como vemos o
mundo, há espaço, igualmente, para a filosofia no debate público? Dito
de outro modo, se não há lugar para uma explicação, descrição ou
compreensão filosófica daquilo que chamamos mundo, qual lugar haveria
para a filosofia, agora não apenas nas universidades e nas escolas, mas
nos jornais, blogs, portais e redes sociais? É essa questão que está por
trás de um recente artigo de Patrick Baert, chefe do departamento de
Ciências Sociais de Cambridge, que escreveu um capítulo especificamente
sobre a participação dos filósofos, em um livro sobre a presença dos
assim chamados intelectuais na esfera pública (Public Intellectuals in the Global Arena: Professors or Pundits?, University of Notre Dame Press) que está prestes a sair.
Embora de caráter evidentemente sociológico, o artigo de Baert
fornece algumas boas pistas. Segundo Baert, o século XX conheceu três
espécies de participação de filósofos na esfera pública, a saber, o
autoritativo, o especialista e o dialógico. O autoritativo garantia sua
penetração no debate devido ao reconhecimento geral de sua autoridade
intelectual e moral que se impunha como justificativa da relevância de
sua participação. Os exemplos paradigmáticos desse tipo são, justamente,
dois dos mais influentes filósofos do século passado, a saber, o
francês Jean-Paul Sartre e o britânico Bertrand Russell; se tal
influência foi ou não benéfica é outra história. Thomas Sowell, em seu
excelente Intelectuais e sociedade, fornece um bom arrazoado
sobre os dois. O fato é que, cada um a seu modo e com seu escopo de
ação, ambos foram exemplos de um tipo de filosofia pública que, como o
próprio Baert reconhece, embora tenha sido muito influente, simplesmente
não tem mais espaço. Pelas razões apontadas acima, o filósofo não goza
mais da credibilidade e do prestígio que lhe podiam ser atribuídos por
olhar o mundo e a sociedade “de cima”. Assim, o artigo apresenta então o
segundo tipo, o especialista, que deriva sua credibilidade na arena
pública precisamente por ser reconhecidamente um especialista em sua
área. Foucault, em suas manifestações a favor de reformas do sistema
penitenciário a partir de suas reflexões consignadas em Vigiar e punir,
é um dos principais exemplos arrolados por Baert. No entanto, pelas
mesmas razões que enfraqueceram a postura autoritativa, o especialista
filósofo é um especialista suspeito; é um especialista de armchair.
Por fim, do crepúsculo dessas duas figuras, surge o tipo dialógico. Ao
contrário dos dois anteriores, o tipo dialógico não se apresenta a
partir de uma posição superior em relação ao seu público, mas coloca-se
em pé de igualdade discutindo e debatendo as questões simplesmente como
um interlocutor a mais. Para Baert, as incursões públicas do filósofo
americano Richard Rorty seriam exemplos dessa postura.
Com poucas adições, o quadro que emerge do capítulo de Patrick Baert
sobre o papel do filósofo na esfera pública parece apontar então para
que sua participação, para além de sua mais evidente contribuição nas
aulas e universidades, dá-se por excelência naquilo que podemos chamar
de tomada de posição. Em geral, ao escrever ou falar, o filósofo deve,
sobretudo, posicionar-se sobre um problema, tema ou questão e
argumentar, defender ou criticar este ou aquele lado. De fato, nomes
atuais como Alan Badiou ou Slavoj Žižek são bons exemplos de
dialogadores-posicionadores.
Todo esse quadro final mostra contudo outro aspecto extremamente
importante. Atualmente, o campo que por excelência se abre a esse tipo
de participação baseado primordialmente na tomada de posição é o da
política. Como se pode facilmente ver, no entanto, o filósofo perde
então seu espaço próprio ou, ainda, em nada se difere do cientista
político ou social e, portanto, nada teria de particularmente novo a
acrescentar ao debate público, sendo apenas mais um interlocutor a
manifestar sua tomada de posição. Seria esse, por fim, o lugar – que é,
praticamente, um não-lugar – destinado àquele acostumado a pensar
grandes questões sub specie æterni? Ou ainda, haverá ainda
alguma função e utilidade pública para alguém treinado ou versado em
fazer filosofia? Continuaremos a explorar esse problema no próximo
artigo.
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* Gabriel Ferreira é doutor em Filosofia e professor da Unisinos. Sua tese de doutorado acaba de receber o prêmio CAPES “menção honrosa” na área de Filosofia de 2015.
Fonte: http://cultura.estadao.com.br/blogs/estado-da-arte/o-que-a-filosofia-ainda-pode-nos-dizer/
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