Luiz Felipe Pondé*
A vocação totalitária em política não é algo fácil de se entender. O
primeiro erro é achar que o governo totalitário o é porque deseja o mal
para seus súditos. Não: o que caracteriza um governo totalitário é
querer cuidar cada vez mais da vida de seus súditos.
Se você perguntar para um prefeito totalitário a razão de ele querer
mandar em sua vida, ele dirá apenas que você não o entende e que ele
quer apenas o seu bem. O totalitarismo moderno é o pecado dos
governantes que têm grandes projetos para sua vida. E isso é muito
difícil de entender, porque quase todo mundo hoje pensa que governantes
com projetos de mundo ou sociedade são bons.
O filósofo britânico Michael Oakeshott (século 20), um desconhecido
entre nós, costumava dizer que se mede a qualidade positiva de um
governante pela ausência de teorias de mundo em sua mente.
A rigor, um governante "ideal" seria alguém que não tem qualquer projeto
para a sociedade que governa a não ser manter a ordem, a
infraestrutura, a garantia de que a economia seja livre (sem
protecionismos ou assistencialismos). Enfim, o "ideal" seria garantir
que ele atrapalhará a vida das pessoas o mínimo possível.
Nesse sentido, a pior coisa do mundo seria um governante que tem uma
"visão de cidade", uma "visão de sociedade" ou uma "visão de educação"
para seus súditos. O totalitarismo é fruto de um projeto de bem social e
político. A primeira marca de um totalitário é ele ter certeza que
representa o bem para todos.
O filósofo romeno Emil Cioran (século 20) costumava dizer que vizinhos
muito preocupados com o prédio se tornam facilmente vizinhos
autoritários. Basta alguém achar que sabe como você deveria viver para
essa pessoa ou governo se tornar totalitário.
O que ninguém quer entender é que o fascismo sempre se viu como um
projeto para o bem do mundo. Enquanto o "amor" que o fascismo nutria
pelo mundo não for reconhecido plenamente, o risco da "bondade do bons"
jamais será plenamente identificado. É necessário vermos o prefeito
fascista com os olhos que ele (e seu seguidores) o veem: com os olhos do
"amor" que ele nutre em ensinar a você como você deve viver.
Vejamos um exemplo dramático disso. A cidade de Roterdã, na Holanda, tem
um novo projeto de lei proposto por um dos tipos mais totalitários do
mundo moderno: o "educador". Segundo esse projeto, mulheres "incapazes
para a maternidade" serão obrigadas a tomar contraceptivos. Essas
mulheres são mulheres que usam drogas, que não têm domicílio fixo,
portadoras de alguma doença importante diagnosticada ou prostitutas. Os
"inteligentinhos", na pobreza de espírito que os caracteriza, não
percebem aqui o totalitarismo porque na Holanda se anda de bike.
Essas mulheres seriam "acompanhadas" por psicólogos e assistentes
sociais a fim de determinar a capacidade delas em exercer uma possível
maternidade.
Os proponentes da lei entendem que há um risco totalitário na ideia,
porém "escolhem respeitar o direito das crianças" em detrimento do
direito das mulheres de serem mães. Você pode, talvez, se perguntar onde
estariam essas crianças cujo direito deveria ser respeitado. Você
pergunta isso porque não entendeu (e a culpa não é sua, é duro mesmo
perceber quais crianças são essas a serem respeitadas) que o direito
aqui em jogo é "o direito de uma criança não nascer".
Evidente que estamos aqui muito além do aborto. Estamos aqui diante de
uma lei que decide quem deve ou não nascer em nome de um estatuto que
diz cuidar dos direitos das crianças.
A intenção por trás desse blá-blá-blá é limpar a cidade de crianças que
poderão custar caro para o Estado. Mas, de novo, os "inteligentinhos"
ficam confusos porque na Holanda se anda de bike e, quando se anda de
bike, creem eles, sempre se carrega o bem no coração.
A mentira é que não se trata de "direito" de criança nenhuma, mas, sim,
de um forma de higienizar o mundo. O "amor" pelo mundo melhor é uma das
maiores misérias modernas. Não confio em gente que "ama" o mundo. Uma
obsessão que custará a passar, mas passará, como tudo mais.
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* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela
Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião,
ciência. Escreve às segundas
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2016/10/1821444-totalitario-e-o-governo-que-quer-cuidar-cada-vez-mais-dos-suditos.shtml
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