José de Souza
Martins*
Foto: Carvall
Há um ativo
comércio imobiliário, de aluguéis até a compra e venda de barracos
Os institutos Data
Favela e Locomotiva divulgaram resultados da pesquisa “Economia das Favelas -
Renda e Consumo nas Favelas Brasileiras”. Ela nos permite ver aspectos desse
mundo, que a ideologia da pobreza tem considerado um outro Brasil, com os olhos
e os valores do Brasil da prosperidade.
Tanto a pesquisa
quanto a conceituação situam-se na motivação de gerar entre nós uma outra
consciência do que a favela é. A começar da sua designação como “comunidade”.
Sociologicamente, comunidade conceitua o padrão de organização social baseado
na apropriação em comum e pré-capitalista das condições de existência. Mas a
estrutura social das favelas é uma estrutura de classes desiguais, nada
comunitária, que vai da extrema pobreza à surpreendente riqueza, o que a média
não permite ver.
Os resultados da
pesquisa aparentemente confirmam outros de 2013, que mostravam o crescimento da
baixa classe média nesses redutos de habitações consideradas precárias e aquém
do socialmente aceitável. A classe média das favelas havia pulado de 33% para
65% em dez anos. Basicamente, o que a pesquisa de agora revela é a vitalidade
da sociedade de consumo nos redutos de pobreza.
O fato de os
moradores serem pobres não quer dizer que sejam irrelevantes para o
capitalismo. A média do rendimento por pessoa nas favelas é de R$ 714 por mês,
o que é pouco e as situa na periferia da sociedade de consumo. Mas o capital
não quer saber o que as pessoas consomem. Na reprodução ampliada do capital, o
que interessa é o volume de dinheiro gasto pela sociedade, seja lá em que for.
É isso que importa.
Para um país
subdesenvolvido como o Brasil, essa economia das favelas movimenta quase R$ 120
bilhões por ano. A economia de um verdadeiro Estado sem governo nem regulação.
Como se fosse um tipo de neoanarquismo, empreendedor e inventivo, com alta
proporção de pretos e de mulheres chefes de família. Em confronto com os
tormentos econômicos e políticos do neoliberalismo.
Uma pesquisa
longitudinal, porém, indicaria que o que parece a prosperidade dos favelados é,
muito provavelmente, resultado do empobrecimento de milhões de pessoas. Com a
crise de desemprego, optaram pela redução do próprio custo de vida na habitação
barata e precária e na supressão dos gastos com eletricidade e água. Levaram
consigo o que sobrou dos tempos de segurança e estabilidade. Aqui e ali,
notícias de aluguel da casa própria para custear a vida barata da favela
sugerem uma estratégia de sobrevivência na opção pela decadência social.
É possível ver
nessa geografia da pobreza indícios de um capitalismo paralelo que não se
enquadra no capitalismo do grande capital. Nem a favela se enquadra nos
estereótipos da ideologia da pobreza. E não é de agora.
Há 12 anos, o
caderno econômico do jornal “O Estado de S. Paulo” publicou reportagem sobre
economia de favelas do Rio de Janeiro. Uma das maiores agências bancárias do
país era a da favela da Rocinha. Por sua vez, a favela de Heliópolis, em São
Paulo, tinha 2.500 pontos comerciais.
Hoje, na favela de
São Remo, ao lado da Cidade Universitária, há hotel e supermercado e igrejas
famosas pela prosperidade do dízimo generoso. Na favela de Heliópolis, por
iniciativa do maestro Sílvio Baccarelli e apoio de fora, há sala de concerto e
orquestra sinfônica. Sinal do terreno propício à difusão de valores da classe
média.
Há nas favelas ativo
comércio imobiliário, de aluguéis até a compra e venda de barracos. Uma curiosa
inovação é a da venda da laje da casa para que o comprador sobre ela construa
sua própria casa, vendendo, por sua vez, sua laje a um terceiro comprador, que
venderá sua laje a um quarto proprietário. A economia da favela inventa sua
própria espacialidade, imita o capitalismo e cria dele sua própria versão.
Na favela, o
urbanismo e a arquitetura são outros, como é outra a forma da economia. Uma
variante do capitalismo subdesenvolvido, que é caracteristicamente o nosso. A
que se expande precária e mutiladamente na modalidade de inclusão social que
promove. A favela desdobrou o que os antropólogos há algumas décadas
conceituavam como capitalismo do tostão. Uma lógica capitalista adaptada às
condições limitadas da pobreza.
Em boa parte,
resulta de um capitalismo rentista, de base territorial e não produtiva, que
alcança pessoas cujos ganhos, mesmo salários, não lhes permite pagar a renda da
terra embutida no preço dos terrenos de que carecem para construir suas casas.
Não é pequeno o número de pessoas cujas casas de alvenaria crua têm
internamente as características de uma casa razoavelmente boa, o oposto do que
se vê de fora. Esse capitalismo de menos nasce da renda fundiária de mais.
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* José de Souza
Martins é Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP, Pesquisador
Emérito do CNPq e membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é
autor de “Linchamentos A Justiça Popular no Brasil” (Contexto).
Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/coluna/jose-de-souza-martins-economia-de-favela.ghtml07/02/2020
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